Norma Bengell (Paris, 1973) |
Publicado
em 13/10/2013 por [*] Rui Martins
Berna
(Suiça)
- Às vezes é importante desenterrar o passado, principalmente quando se pode
dele tirar lições para o futuro. Nestes dias, tenho vivido revoltado e tenho
mesmo perdido o sono com um intolerável retrocesso na política brasileira da
emigração, digna dos tempos da ditadura.
Em
síntese, vai se gastar dinheiro público e se promover num hotel caro perto de
Salvador na Bahia, uma encenação chamada IVª Conferência Brasileiros no Mundo,
sob o pretexto de se estabelecer uma interlocução entre o governo e os
emigrantes, intermediada pelo Itamaraty. Como se os engravatados do Instituto
Rio Branco tivessem algum gene que os identifique com os trabalhadores
emigrantes, como se sair do Brasil num voo de primeira classe tivesse alguma
coisa a ver com a viagem sofrida de um emigrante
brasileiro.
Por
que chamo de encenação esse circo que vai se montar em Salvador? Se não fosse só
pela tutela dos diplomatas, que inclui inclusive o controle da agenda e a
proibição de visitantes indesejáveis, proibidos de falar e de votar, a ignomínia
está no fato de 85% dos chamados representantes dos emigrantes chamados à
conferência terem sido "nomeados" pelos Consulados. Entre 60 desses convidados,
menos de 10 foram escolhidos pela comunidade brasileira
local.
Minha
primeira palavra foi de "pelegos", as figuras que representavam os antigos
governos nos sindicatos. Alguns acharam muito forte a palavra e me sugeriram
"biônicos", como se designavam aqueles prefeitos e governadores nomeados pelos
militares durante a ditadura. De qualquer forma, pelegos ou biônicos, todos
esses convidados são ilegítimos.
Mas
o que a atriz Norma Bengell, falecida há pouco, tem a ver com essa
história?
Pouca
coisa talvez, mesmo se nos anos 72 e 73 foi atriz emigrante na França, tendo
mesmo trabalhado na televisão francesa, ex-ORTF. Mas o episódio lembra o
comprometimento de diplomatas do Itamaraty com a ditadura, capítulo que
esperamos seja devidamente apurado pela Comissão da
Verdade.
E
podem nos ajudar a entender como e por que, em pleno governo voltado para os
segmentos até então marginalizados da população, o ex-ministro Patriota
conseguiu substituir um texto preparado durante a administração Lula, que não
era perfeito, por outro não apenas imperfeito, mas reacionário e que faz a
política brasileira da emigração parecer ter sido elaborada por gente ainda
saudosa da época em que a elite brasileira dividia a população em pessoas
capazes e, lá embaixo, os pobres dos infelizes juridicamente incapazes.
Porque
a tutela dos emigrantes pelos diplomatas rima com censura.
E
fica ainda mais indecente quando são eles que escolhem os representantes dos
emigrantes, desvirtuando até os Conselhos de Cidadania, cujos membros são
convidados por eles e não eleitos pelos emigrantes. E os poucos conselhos
eleitos, 7 ou 8, não são dirigidos pelos emigrantes mas pelos cônsules ou
vice-cônsules.
E
agora vamos à Norma Bengell.
Assim
que Norma chegou a Paris, com intenções de ficar, consegui fazer uma reportagem
comprada pela antiga revista Manchete - uma entrevista com a atriz, gravada numa
praça perto do Boulevard St. Michel, com vista para a Notre Dame.
Naquela
época, a Manchete era dirigida em Paris por Sílvio Silveira (um dos primeiros
emigrantes brasileiros na França, na época fazia parte de um grupo musical), que
reunia também as funções de contador e de vendedor de publicidade dessa revista
da família Bloch.
Entregues
as laudas datilografadas com a entrevista, fiquei surpreso ao constatar que não
tinham sido colocadas no malote cortesia da Varig para chegar rapidamente à
Redação, no Rio de Janeiro, naquela época chefiada pelo Justino
Martins.
E
perguntei ao Sílvio, preocupado em receber logo meu frila: por que a entrevista não seguiu
no malote?
E
ele muito calmamente me explicou ser praxe naquela casa, quando se tratasse de
questões mais delicadas, se levar ao embaixador em Paris, que poderia fazer os
cortes necessários antes de ser enviada ao Rio. “Eu não nasci ontem, aqui não
quero confusão!”, disse Silvio com um sorriso debochado.
Por
que estou irritado? Porque tudo que se deixar discutir em Salvador terá de
passar pelo crivo do Itamaraty, como minha entrevista com Norma Bengell.
A
diferença é que não vivemos mais na época da Operação Condor, da denúncia vinda
de Santiago que levou à morte o deputado Rubens Paiva e do apoio logístico dado
à ditadura uruguaia contra os Tupamaros.
Minha
luta pela emancipação política dos emigrantes tem também no seu bojo esse gosto
amargo dos anos de chumbo.
[*] Rui Martins é natural de Santos,
SP e atualmente reside em Berna, Suiça. É jornalista, escritor, ex-CBN e
ex-Estadão; exilado durante a ditadura, é líder emigrante, membro eleito do
Conselho Provisório e do atual Conselho de emigrantes (CRBE) junto ao Itamaraty.
Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes. Escreveu o
livro Dinheiro Sujo da Corrupção
sobre as contas suíças secretas de Maluf. Colabora com o Expresso, de Lisboa,
Correio do Brasil e agência BrPress.
Enviado por Direto da
Redação
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