terça-feira, 15 de outubro de 2013

Norma Bengell (1935 - 2013)


Norma Bengell (Paris, 1973)

Publicado em 13/10/2013 por [*] Rui Martins
Berna (Suiça) - Às vezes é importante desenterrar o passado, principalmente quando se pode dele tirar lições para o futuro. Nestes dias, tenho vivido revoltado e tenho mesmo perdido o sono com um intolerável retrocesso na política brasileira da emigração, digna dos tempos da ditadura.
Em síntese, vai se gastar dinheiro público e se promover num hotel caro perto de Salvador na Bahia, uma encenação chamada IVª Conferência Brasileiros no Mundo, sob o pretexto de se estabelecer uma interlocução entre o governo e os emigrantes, intermediada pelo Itamaraty. Como se os engravatados do Instituto Rio Branco tivessem algum gene que os identifique com os trabalhadores emigrantes, como se sair do Brasil num voo de primeira classe tivesse alguma coisa a ver com a viagem sofrida de um emigrante brasileiro.
Por que chamo de encenação esse circo que vai se montar em Salvador? Se não fosse só pela tutela dos diplomatas, que inclui inclusive o controle da agenda e a proibição de visitantes indesejáveis, proibidos de falar e de votar, a ignomínia está no fato de 85% dos chamados representantes dos emigrantes chamados à conferência terem sido "nomeados" pelos Consulados. Entre 60 desses convidados, menos de 10 foram escolhidos pela comunidade brasileira local.
Minha primeira palavra foi de "pelegos", as figuras que representavam os antigos governos nos sindicatos. Alguns acharam muito forte a palavra e me sugeriram "biônicos", como se designavam aqueles prefeitos e governadores nomeados pelos militares durante a ditadura. De qualquer forma, pelegos ou biônicos, todos esses convidados são ilegítimos.
Mas o que a atriz Norma Bengell, falecida há pouco, tem a ver com essa história?
Pouca coisa talvez, mesmo se nos anos 72 e 73 foi atriz emigrante na França, tendo mesmo trabalhado na televisão francesa, ex-ORTF. Mas o episódio lembra o comprometimento de diplomatas do Itamaraty com a ditadura, capítulo que esperamos seja devidamente apurado pela Comissão da Verdade.
E podem nos ajudar a entender como e por que, em pleno governo voltado para os segmentos até então marginalizados da população, o ex-ministro Patriota conseguiu substituir um texto preparado durante a administração Lula, que não era perfeito, por outro não apenas imperfeito, mas reacionário e que faz a política brasileira da emigração parecer ter sido elaborada por gente ainda saudosa da época em que a elite brasileira dividia a população em pessoas capazes e, lá embaixo, os pobres dos infelizes juridicamente incapazes.
Porque a tutela dos emigrantes pelos diplomatas rima com censura.
E fica ainda mais indecente quando são eles que escolhem os representantes dos emigrantes, desvirtuando até os Conselhos de Cidadania, cujos membros são convidados por eles e não eleitos pelos emigrantes. E os poucos conselhos eleitos, 7 ou 8, não são dirigidos pelos emigrantes mas pelos cônsules ou vice-cônsules.
E agora vamos à Norma Bengell.
Assim que Norma chegou a Paris, com intenções de ficar, consegui fazer uma reportagem comprada pela antiga revista Manchete - uma entrevista com a atriz, gravada numa praça perto do Boulevard St. Michel, com vista para a Notre Dame.
Naquela época, a Manchete era dirigida em Paris por Sílvio Silveira (um dos primeiros emigrantes brasileiros na França, na época fazia parte de um grupo musical), que reunia também as funções de contador e de vendedor de publicidade dessa revista da família Bloch.
Entregues as laudas datilografadas com a entrevista, fiquei surpreso ao constatar que não tinham sido colocadas no malote cortesia da Varig para chegar rapidamente à Redação, no Rio de Janeiro, naquela época chefiada pelo Justino Martins.
E perguntei ao Sílvio, preocupado em receber logo meu frila: por que a entrevista não seguiu no malote?
E ele muito calmamente me explicou ser praxe naquela casa, quando se tratasse de questões mais delicadas, se levar ao embaixador em Paris, que poderia fazer os cortes necessários antes de ser enviada ao Rio. “Eu não nasci ontem, aqui não quero confusão!”, disse Silvio com um sorriso debochado.
Por que estou irritado? Porque tudo que se deixar discutir em Salvador terá de passar pelo crivo do Itamaraty, como minha entrevista com Norma Bengell.
A diferença é que não vivemos mais na época da Operação Condor, da denúncia vinda de Santiago que levou à morte o deputado Rubens Paiva e do apoio logístico dado à ditadura uruguaia contra os Tupamaros.
Minha luta pela emancipação política dos emigrantes tem também no seu bojo esse gosto amargo dos anos de chumbo. 


[*] Rui Martins é natural de Santos, SP e atualmente reside em Berna, Suiça. É jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão; exilado durante a ditadura, é líder emigrante, membro eleito do Conselho Provisório e do atual Conselho de emigrantes (CRBE) junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes. Escreveu o livro Dinheiro Sujo da Corrupção sobre as contas suíças secretas de Maluf. Colabora com o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.

Enviado por Direto da Redação


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