sábado, 26 de outubro de 2013

O que a China pode aprender da “queda” da URSS

25/10/2013, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Mikhail Gorbachev - 2013
Os que viveram e trabalharam como diplomatas ou correspondentes estrangeiros na Moscou dos anos finais da era de Mikhail Gorbachev nos últimos anos da década dos 80s estão condenados a carregar, para sempre, na vida, uma curiosidade intelectual sobre a dialética da reforma e da transição democrática em sistemas políticos autoritários. No meu caso, pelo menos, isso explica a curiosidade que tenho sobre como a China operará nessa via.

Na própria China, a comparação que se ouve com mais frequência é, mesmo, com essa era Gorbachev da história soviética e a dissolução da União Soviética. Disse deliberadamente “dissolução”, porque se tratou de ato consciente, unilateral e pessoal de Boris Yeltsin, sem qualquer traço de inevitabilidade. A “dissolução” interessava a Yeltsin. Ponto. Parágrafo. Não consultou, seriamente, ninguém, nem seu grupo de seguidores nas repúblicas da então União Soviética concordaria.

Assim, para começar, a comparação com a experiência soviética é viciosa, se se fala em comparação de base empírica. Nunca houve qualquer “queda soviética”, como os discursos chineses insistem em imaginar que tenha havido.

No mais recente Congresso do Partido, a nova liderança chinesa falou abertamente sobre esse tema. O debate continua, sobretudo agora que o crucial 3º Pleno do Partido Comunista da China se aproxima, marcado para novembro, com foco na agenda de reformas do Partido.

Em agosto, Xinhua publicou um comentário sobre isso, [5/8/2013, “Soviet fiasco a lesson for China”] assinado por um Wang Xiaoshi (presumivelmente, pseudônimo), que provocou muita excitação na China e noutros pontos. O principal argumento é que Gorbachev oferecia liderança “fraca” e, assim, a reforma escapou a qualquer controle. Para o autor, o tumulto que se viu na Rússia pós-soviética no início dos anos 1990s deve servir como “sinal alarmante”, para a China, das coisas terríveis que pode acontecer, se a China entrar em tumultos ou cair em anarquia.

Interessante, pinta negativamente o legado de Yeltsin, que teria democratizado a Rússia pela primeira vez na história; e muito elogia as realizações de Vladimir Putin, que levou o país na direção da “prosperidade” sem perder muito sono com a “democratização”, embora como potência diminuída no cenário mundial.

Roy Medvedev
Também o jornal do Partido Comunista Chinês, Global Times, publicou hoje uma entrevista com o famoso dissidente soviético, historiador Roy Medvedev, a extrair “lições” da experiência soviética. Mais ou menos endossa o pensamento que parece ser o mais bem-sucedido na China hoje, a saber, que a China deve pisar com muita cautela no pedal da reforma política, e deve confinar-se às reformas econômicas.

Sim, sim, com certeza, foquem-se nas reformas econômicas, no próximo “Plenum”, mas, em nome de Deus, não se metam a “democratizar” coisa alguma! Deixem que o tempo e as marés operem nessa direção – isso é o resumo da entrevista de Medvedev. Disse o que a China quer ouvir.

Para mim, foi surpresa. Medvedev poderia e deveria ter destacado que a comparação entre União Soviética e China – exceto a comparação nocional, de os dois países serem nominalmente “socialistas” – absolutamente não cabe. Ainda se Gorbachev quisesse praticar o exemplo chinês de reforma econômica e deixasse a “glasnost” [ru. “transparência”] no forno, não teria funcionado. Essa é a simples, honesta verdade.

O ponto é que o crescimento econômico da China pode ser tão dinâmico porque pôde explorar a “globalização”; e a União Soviética existiu em mundo absolutamente diferente, desprezada pelo ocidente e desonrada em boa parte do oriente. Foi deixada em ostracismo.

Abertura do Jogos Olímpicos de Moscou em 1980
Não esqueçam que o ocidente boicotou os Jogos Olímpicos de Moscou em 1980. Os remanescentes da Emenda Jackson-Vanik ainda assombram as relações russo-norte-americanas. Assim sendo, a latitude que a “comunidade internacional” permitiu à China nos anos 1970s, 80s e 90s e já entrada a era pós guerra fria, para exploração ótima de sua economia, foi um luxo não acessível para Gorbachev.

Em segundo lugar, não havia meio pelo qual o estagnado sistema soviético pudesse energizar outras economias, além de agitar a fossa, que foi o objetivo da “glasnost” de Gorbachev. Como ele próprio disse, em tom de lamento, o gerente soviético era como um pássaro com medo de voar e empreender aos céus, mesmo depois de aberta a gaiola.

Medvedev, além disso, também foi parcial, ao dizer que a alienação do cidadão soviético, em relação ao sistema, começou com Gorbachev. No meu modo de ver, Gorbachev herdou a crise de credibilidade do partido comunista soviético.

Bem claramente, uma década inteira antes da era Gorbachev, em 1975, quando pela primeira vez cheguei à União Soviética para trabalhar na embaixada [da Índia] como diplomata, o que mais me chamou a atenção foi a profunda desconexão entre o sistema soviético e o cidadão soviético, e o modo como o cidadão se autoconfinava num mundo surreal, carregado de cinismo.

Para mim, francamente, foi um choque, porque não era o que esperava ver. (Não estou convencido de que o fenômeno do cinismo soviético tenha acabado, sequer depois de dissolvido o sistema soviético. Quem eram os “oligarcas”?).

Quando a URSS afundou salvaram-se todos
Uma terceira grande diferença é a natureza da economia chinesa, muitíssimo diferente da economia soviética (e russa) que depende criticamente da renda das exportações de petróleo. É útil lembrar que Gorbachev, provavelmente, jamais teria tido de ajoelhar-se e suplicar que o ocidente o “resgatasse”, se o petróleo estivesse sendo vendido, digamos, a $15 o barril, em vez dos $8 daquele momento crítico.

Além disso, a União Soviética não tinha indústria de manufaturas fazendo jorrar produtos exportados para o mercado mundial. Para piorar, a União Soviética carregava o peso do “internacionalismo proletário” – farinha de trigo e petróleo para o governo socialista de Najibullah no Afeganistão, por exemplo.

A China, por sua vez, preferiu chamar-se ela própria de “país emergente”, o que a absolve da necessidade de operar como rede de providência para toda a humanidade. A China tampouco está promovendo o socialismo pelo mundo. De fato, a China cuida clinicamente de garantir que praticamente todo o seu dinheiro excedente seja posto só onde se vejam feitos e efeitos que a China deseja obter do que a China faz [1]... Seja na África ou no Sri Lanka.

Mais uma vez, é preciso falar sobre a “formação social”. A URSS esteve muito à frente da China em termos de desenvolvimento social, e mesmo hoje a Rússia tem padrão de vida muitíssimo superior ao do povo chinês, em termos per capita. A questão é que a mente humana precisa ser motivada.

Os cidadãos soviéticos bem letrados, bem educados e intelectualmente lúcidos jamais teriam aceitado o que hoje passa por “reforma econômica”. Esse é o ponto no qual a China tem uma vantagem. Mas o que acontece quando o desenvolvimento social chinês avançar, fizer crescer as expectativas e, claro, no caso de o mercado ser real e genuinamente desamarrado?

Massacre de Gwangiu - milhares de manifestantes foram mortos e feridos pela repressão na Coreia do Sul em maio de 1980
Por acaso, eu morava e trabalhava em Seul no final dos anos 1970s e início dos anos 1980s. Com a sociedade ganhando melhor educação, tornando-se mais próspera, mais dona de suas opiniões, o velho paradigma deixou de funcionar – em outras palavras, enquanto o regime saiu-se bem no front econômico, e enquanto funcionou bem a estratégia de crescimento orientado para a exportação, a política foi irrelevante.

Eu estava lá quando do assassinato do presidente Park Chung-hee em outubro de 1979 (pai do atual presidente democraticamente eleito Park Geun-hye) e do sangrento caso Gwangju em maio de 1980. Vistos em retrospecto, foram as dores do parto da democracia na Coreia do Sul.

A China não tem muito a ganhar com estudar a “queda” da União Soviética – exceto, talvez, sobre os perigos de uma nova Guerra Fria. A União Soviética foi parte da tradição intelectual ocidental; e, a consciência histórica da China e os pontos de atracação cultural são vastamente diferentes. Pode-se dizer que esse é o motivo pelo qual o ocidente põe a barra democrática num ponto muito mais alto para a Rússia, hoje, do que parece interessado em demarcar para a China. 

Considerando que é historiador, a entrevista de Medvedev desaponta.



Nota dos tradutores
[1] Orig. put your money where your mouth is: “mostrar, por ações e não só por palavras, que você apoia ou defende alguma coisa”.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online, Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.


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