25/10/2013,
[*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Mikhail Gorbachev - 2013 |
Os que
viveram e trabalharam como diplomatas ou correspondentes estrangeiros na Moscou
dos anos finais da era de Mikhail Gorbachev nos últimos anos da década dos 80s
estão condenados a carregar, para sempre, na vida, uma curiosidade intelectual
sobre a dialética da reforma e da transição democrática em sistemas políticos
autoritários. No meu caso, pelo menos, isso explica a curiosidade que tenho
sobre como a China operará nessa via.
Na própria
China, a comparação que se ouve com mais frequência é, mesmo, com essa era
Gorbachev da história soviética e a dissolução da União Soviética. Disse deliberadamente “dissolução”, porque se tratou de ato
consciente, unilateral e pessoal de Boris Yeltsin, sem qualquer traço de
inevitabilidade. A “dissolução” interessava a Yeltsin. Ponto. Parágrafo. Não
consultou, seriamente, ninguém, nem seu grupo de seguidores nas repúblicas da
então União Soviética concordaria.
Assim,
para começar, a comparação com a experiência soviética é viciosa, se se fala em
comparação de base empírica. Nunca houve qualquer “queda
soviética”, como os discursos chineses insistem em imaginar que tenha havido.
No mais
recente Congresso do Partido, a nova liderança chinesa falou abertamente sobre
esse tema. O debate continua, sobretudo agora que o crucial 3º Pleno do Partido
Comunista da China se aproxima, marcado para novembro, com foco na agenda de
reformas do Partido.
Em agosto, Xinhua publicou
um comentário sobre isso, [5/8/2013,
“Soviet fiasco a lesson for China”] assinado por um Wang Xiaoshi (presumivelmente, pseudônimo), que
provocou muita excitação na China e noutros pontos. O principal argumento é que
Gorbachev oferecia liderança “fraca” e, assim, a reforma escapou a qualquer
controle. Para o autor, o tumulto que se viu na Rússia pós-soviética no início
dos anos 1990s deve servir como “sinal alarmante”, para a China, das coisas
terríveis que pode acontecer, se a China entrar em tumultos ou cair em
anarquia.
Interessante,
pinta negativamente o legado de Yeltsin, que teria democratizado a Rússia pela
primeira vez na história; e muito elogia as realizações de Vladimir Putin, que
levou o país na direção da “prosperidade” sem perder muito sono com a
“democratização”, embora como potência diminuída no cenário mundial.
Roy Medvedev |
Também o
jornal do Partido Comunista Chinês, Global Times, publicou hoje uma entrevista com o famoso dissidente soviético, historiador Roy
Medvedev, a extrair “lições” da experiência soviética. Mais ou menos endossa o
pensamento que parece ser o mais bem-sucedido na China hoje, a saber, que a
China deve pisar com muita cautela no pedal da reforma política, e deve
confinar-se às reformas econômicas.
Sim, sim,
com certeza, foquem-se nas reformas econômicas, no próximo “Plenum”, mas, em nome de Deus, não se metam a “democratizar” coisa
alguma! Deixem que o tempo e as marés operem nessa direção – isso é o resumo da
entrevista de Medvedev. Disse o que a China quer ouvir.
Para mim,
foi surpresa. Medvedev
poderia e deveria ter destacado que a comparação entre União Soviética e China
– exceto a comparação nocional, de os dois países serem nominalmente “socialistas”
– absolutamente não cabe. Ainda se Gorbachev quisesse praticar o exemplo chinês
de reforma econômica e deixasse a “glasnost” [ru. “transparência”] no forno,
não teria funcionado. Essa é a simples, honesta verdade.
O ponto é
que o crescimento econômico da China pode ser tão dinâmico porque pôde explorar
a “globalização”; e a União Soviética existiu em mundo absolutamente diferente,
desprezada pelo ocidente e desonrada em boa parte do oriente. Foi deixada em ostracismo.
Abertura do Jogos Olímpicos de Moscou em 1980 |
Não
esqueçam que o ocidente boicotou os Jogos Olímpicos de Moscou em 1980. Os remanescentes da
Emenda Jackson-Vanik ainda assombram as relações russo-norte-americanas. Assim
sendo, a latitude que a “comunidade internacional” permitiu à China nos anos
1970s, 80s e 90s e já entrada a era pós guerra fria, para exploração ótima de
sua economia, foi um luxo não acessível para Gorbachev.
Em segundo lugar, não havia meio pelo qual o estagnado sistema soviético
pudesse energizar outras economias, além de agitar a fossa, que foi o objetivo da “glasnost”
de Gorbachev. Como ele próprio disse, em tom de lamento, o gerente soviético
era como um pássaro com medo de voar e empreender aos céus, mesmo depois de
aberta a gaiola.
Medvedev,
além disso, também foi parcial, ao dizer que a alienação do cidadão soviético,
em relação ao sistema, começou com Gorbachev. No meu modo de ver, Gorbachev
herdou a crise de credibilidade do partido comunista soviético.
Bem
claramente, uma década inteira antes da era Gorbachev, em 1975, quando pela primeira vez cheguei à União
Soviética para trabalhar na embaixada [da Índia] como diplomata, o que mais me
chamou a atenção foi a profunda desconexão entre o sistema soviético e o
cidadão soviético, e o modo como o cidadão se autoconfinava num mundo surreal,
carregado de cinismo.
Para mim,
francamente, foi um choque, porque não era o que esperava ver. (Não estou convencido de que o fenômeno do cinismo soviético
tenha acabado, sequer depois de dissolvido o sistema soviético. Quem eram os “oligarcas”?).
Quando a URSS afundou salvaram-se todos |
Uma
terceira grande diferença é a natureza da economia chinesa, muitíssimo
diferente da economia soviética (e russa)
que depende criticamente da renda das exportações de petróleo. É útil lembrar
que Gorbachev, provavelmente, jamais teria tido de ajoelhar-se e suplicar que o
ocidente o “resgatasse”, se o petróleo estivesse sendo vendido, digamos, a $15
o barril, em vez dos $8 daquele momento crítico.
Além
disso, a União Soviética não tinha indústria de manufaturas fazendo jorrar
produtos exportados para o mercado mundial. Para piorar, a União
Soviética carregava o peso do “internacionalismo proletário” – farinha de trigo
e petróleo para o governo socialista de Najibullah no Afeganistão, por exemplo.
A China, por sua vez, preferiu
chamar-se ela própria de “país emergente”, o que a absolve da necessidade de
operar como rede de providência para toda a humanidade. A China tampouco está
promovendo o socialismo pelo mundo. De fato, a China cuida clinicamente de
garantir que praticamente todo o seu dinheiro excedente seja posto só onde se
vejam feitos e efeitos que a China deseja obter do que a China faz [1]...
Seja na África ou no Sri Lanka.
Mais uma
vez, é preciso falar sobre a “formação social”. A URSS esteve muito à frente da
China em termos de desenvolvimento social, e mesmo hoje a Rússia tem padrão de
vida muitíssimo superior ao do povo chinês, em termos per capita. A questão é que a mente humana precisa ser motivada.
Os
cidadãos soviéticos bem letrados, bem educados e intelectualmente lúcidos
jamais teriam aceitado o que hoje passa por “reforma econômica”. Esse é o ponto
no qual a China tem uma vantagem. Mas o que acontece quando o
desenvolvimento social chinês avançar, fizer crescer as expectativas e, claro,
no caso de o mercado ser real e genuinamente desamarrado?
Massacre de Gwangiu - milhares de manifestantes foram mortos e feridos pela repressão na Coreia do Sul em maio de 1980 |
Por acaso,
eu morava e trabalhava em Seul no final dos anos 1970s e início dos anos 1980s. Com a
sociedade ganhando melhor educação, tornando-se mais próspera, mais dona de
suas opiniões, o velho paradigma deixou de funcionar – em outras palavras,
enquanto o regime saiu-se bem no front econômico,
e enquanto funcionou bem a estratégia de crescimento orientado para a
exportação, a política foi irrelevante.
Eu estava
lá quando do assassinato
do presidente Park Chung-hee em outubro de 1979 (pai do atual presidente democraticamente
eleito Park Geun-hye) e do sangrento “caso Gwangju” em maio de 1980. Vistos
em retrospecto, foram as dores do parto da democracia na Coreia do Sul.
A China não tem muito a ganhar
com estudar a “queda” da União Soviética – exceto, talvez, sobre os perigos de
uma nova Guerra Fria. A União Soviética foi parte da tradição intelectual
ocidental; e, a consciência histórica da China e os pontos de atracação
cultural são vastamente diferentes. Pode-se dizer que esse é o motivo pelo qual
o ocidente põe a barra democrática num ponto muito mais alto para a Rússia,
hoje, do que parece interessado em demarcar para a China.
Considerando que é
historiador, a entrevista de Medvedev desaponta.
Nota dos tradutores
[1] Orig. put
your money where your mouth is: “mostrar, por ações e não só por
palavras, que você apoia ou defende alguma coisa”.
__________________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da
Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha,
Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do
Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para
várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online, Strategic Culture, Global
Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK
Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.