29/9-4/10/2013
(publicado em 11/10/1013) [*] Conflicts
Forum
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Graham Fuller |
Em
artigo recente, Graham Fuller,
ex-vice-presidente do Conselho de Inteligência Nacional dos EUA, especulava
sobre se “é possível que o presidente Obama – sem articulação alguma e, talvez,
até, sem que essa fosse sua intenção clara ou completa – tenha iniciado uma
re-formatação radical da política externa dos EUA?”. Fuller referia-se à recente
repentina reviravolta: um dia, as bombas logo começariam a chover sobre a Síria;
e, de repente, somos informados de contatos cordiais entre os presidentes do Irã
e dos EUA –, acrescentando que um corpo conectado de axiomas intocáveis da
política externa dos EUA podem também estar sendo silenciosamente revertidos: o
excepcionalismo norte-americano, o unilateralismo norte-americano e os EUA como
arquitetos da “ordem global”.
De
fato, Fuller incluiu outros dois axiomas em sua lista de axiomas que poderiam
estar sendo revertidos: “os EUA como policiais do mundo, como comentadores
morais [itálicos de Conflicts Forum] e como hegemon mundial”.
Esses últimos são particularmente interessantes, porque provavelmente explicam
mais do por quê estaria ocorrendo mudança de tal importância. Esses
últimos axiomas podem ter sido os motores da mudança – em vez de aí estarem,
simplesmente, como consequências da mudança. Pode estar aí sugerido
também que a mudança talvez não seja tão “repentina” como se supôs. Fuller
sugere isso.
O que se tornou tão aparente em relação à Síria foi que o “sistema
dos EUA” foi “contido” [no sentido de parou ali (NTs)], antes de qualquer
intervenção na Síria, por mais limitada que fosse. A opinião pública e o
Congresso dos EUA afastaram-se decididamente da posição de policiais e árbitros
morais das sociedades do Oriente Médio, e do papel de potência hegemônica
global. O público, depois de concluídas as pesquisas, dava “polegares para
baixo” para toda a tal missão, a toda aquela narrativa da
raison-d’être dos EUA, ao mesmo tempo em que a maioria dizia “não” à
chuva de bombas contra Damasco.
Obama mostra "verdadeira sabedoria" |
O
que Fuller sugere é que Obama não está mostrando fraqueza, mas “verdadeira
sabedoria”, ao reconhecer que os EUA simplesmente não podem persistir na mesma
linha, num momento em que o unipolarismo está em visível erosão ante repetidos e
crescentes revides; e que o desarranjo moral dentro dos EUA está minando a
confiança da opinião pública norte-americana e seu apetite para intrometer-se,
com lições de moral, em cada um e em todos os conflitos pelo mundo.
A
mudança é mais diretamente aparente em termos de política exterior (a abertura
para o Irã), mas as implicações para a evolução da ordem internacional são
também importantes – se não mais importantes.
Em
termos da mudança da política dos EUA na direção do Irã, pode parecer que seja
“subproduto” do acordo com os russos sobre as armas químicas sírias, e a nova
direção política que se vê hoje no Irã. Mas essa mudança também pode ter raízes
mais profundas no modo como os EUA percebem hoje diretamente os seus próprios
interesses nacionais – mesmo que ainda não seja politicamente aceitável
articular muito publicamente esses novos interesses.
Mike Morrell Ex - nº 2 da CIA |
O n. 2 da CIA recentemente
aposentado deu uma entrevista, na qual disse explicitamente que,
embora não seja ameaça direta contra os EUA hoje (porque ainda é mais uma ameaça
regional), parecia-lhe que a crescente ameaça jihadista na Síria tem de ser vista,
desde já, como a principal ameaça potencial contra os EUA no longo prazo. Quis
dizer que um objetivo comum – uma meta comum – abre-se para o Irã e os EUA:
lutar contra a crescente ameaça que vem dos movimentos sunitas extremistas
(takfiri) na Síria e na região. Veem-se sinais já há algum tempo em
alguns setores do sistema nos EUA, de que já se reconhece claramente a ineficácia do ilusório Exército Sírio
Livre, e de que o braço armado do Conselho Nacional Sírio e o
Conselho Militar Sírio são impotentes para “derrubar” os movimentos
jihadistas na Síria. A única força capaz de conseguir esse resultado (e
que, de fato, já o está conseguindo) é o Exército Sírio (com ajuda, embora
limitada e específica, do Hezbollah e do Irã).
Há
também interesses partilhados entre EUA e Rússia (que vê a Síria como a “linha
de frente” - que tem de ser seduzida – se os dois países desejam conter a
expansão de uma nova fase do extremismo islâmico em crescimento). Nessa
empreitada, o Irã pode ajudar. Em resumo, é possível que a hostilidade dos EUA à
ascensão do extremismo sunita na Síria e em outros pontos seja hoje uma causa
comum que aproxima Washington e Teerã – a qual estaria superando largamente
qualquer interesse comum que os EUA tivessem algum dia partilhado com os estados
do Golfo – particularmente se os EUA vão-se tornando menos dependentes do
petróleo do Oriente Médio, e em vista do relacionamento equívoco e de certo modo
dúbio que os estados do Golfo mantêm com aqueles movimentos extremistas. Os
interesses dos EUA estão em metamorfose.
Em
termos da ordem internacional, Fuller sugere que, enquanto o unilateralismo vai
evanescendo, Obama estaria efetivamente inaugurando uma nova compreensão,
segundo a qual doravante será preciso negociar com as preocupações e interesses
legítimos de outros estados – deixando para trás a confortável certeza de que os
interesses dos EUA seriam “um bem universal”.
Para
compreender as amplas implicações dessa mudança que parece permanecer não
noticiada, temos de compreender como a ordem internacional vinha evoluindo. É
precisamente a evolução futura que torna o reconhecimento de Obama
potencialmente tão significativo.
Depois
da Guerra Europeia (2ª Guerra Mundial), uma ordem internacional – e seu
concomitante arcabouço legal – foi criada mediante o consenso de estados
soberanos independentes. É o que os especialistas em Direito Internacional
chamam de abordagem “positivista” da ordem global, pela qual as regras das
relações internacionais (lei internacional) são criadas mediante o consenso de
estados soberanos independentes, e devem ser interpretadas em sentido estrito.
Direito Internacional "made in USA", Inglaterra & França |
Mas
esse entendimento vem discrepando do modelo que EUA e alguns países europeus
(especialmente Grã-Bretanha e França) têm preferido, o qual dá ênfase maior a
uma visão da ordem internacional mais política, ou mais orientada para
resultados. Por essa visão, o que interessa na resposta a determinados desafios
internacionais identificados é a formulação de metas ou “resultados” a buscar.
Não a lei internacional per se, mas as novas metas ou missão, mesmo que
atropelem a lei internacional. Essa abordagem atribui papel especial aos estados
mais poderosos, que passam a poder interpretar como as tais “metas” devam ser
buscadas – o que equivale a dizer: atribuindo o “direito” de decidir aos países
que tenham os recursos e, especialmente, a disposição para agir de modo a fazer
acontecer um “resultado” desejado.
Dessa abordagem “orientada para metas” emergiu, inter
alia, o que já parece ser uma revisão unilateral do Tratado de Não
Proliferação [de armas nucleares, ing. NPT], pela qual a afirmação da
“meta” prioritária da não proliferação foi inflada, até alterar as próprias leis
do NPT referentes aos direitos de cada país signatário ao enriquecimento
de urânio para finalidades pacíficas. Assim se chegou hoje à afirmação de que,
para realizar aquela meta, só os “estados armados” e outros com indústrias nucleares poderiam decidir quais
estados não armados seriam autorizados possuir tecnologias de ciclo completo de
combustível nuclear.
Áreas livres de armas nucleares e respectivos tratados internacionais (clique na imagem para visualizar) |
Do
mesmo modo, a doutrina do “direito de proteger” foi apresentada de tal modo que
“provava” que seria admissível atropelar a soberania nacional. Só para
esclarecer e ao contrário do que tem sido sugerido, NÃO HÁ dois corpos de lei
que competiriam entre eles: (a) o da
lei internacional clássica e (b)
essa nova formulação dita “humanitária” ou dos direitos humanos. A formulação (b) não passa de “opinionismo” muito controverso introduzido por alguns
estados, advogados, políticos e “especialistas” de think-tanks. Nenhuma
dessas mudanças foi jamais negociada com estados soberanos e, portanto, a
formulação (b) só é promovida por
quem busque uma brecha unilateral para quebrar o “contrato” original.
O que está acontecendo no contexto
da Síria é uma luta concertada, sob a liderança de Rússia, China e alguns BRICS, para resgatar a ordem
internacional, da orientação viciosa, unilateral, para “metas e resultados”; e
para reconduzi-la de volta à ideia de uma estrutura para as relações
internacionais enraizada no consentimento soberano e na primazia da lei
internacional.
Sergey Lavrov |
Esse é o projeto e a ambição aos quais o ministro
das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov tem-se referido repetidas vezes,
sempre que diz que o resultado na Síria é evento chave para redefinir o futuro
da ordem internacional – e o modo como, doravante, serão resolvidos os conflitos
internacionais. De fato, Lavrov parece ter sido bem-sucedido, pelo menos em
parte. Os russos querem pôr fim à prática de alguns países ocidentais, de
resolverem seus conflitos à revelia da ONU e da lei internacional, movidos só
por “coalizões de vontades” criadas ad hoc.
Parece,
sim, que o presidente Obama, silenciosamente, empurra os EUA na direção de
reconhecerem a realidade de uma nova era global – a inevitabilidade de ter de
pagar mais caro para, no futuro, trabalhar sob o consenso de estados soberanos,
em vez de agir sozinhos, como a única potência unipolar.
Essa
“volta” tentativa ao consenso dos estados soberanos impõe um ponto de
interrogação radical na tal “responsabilidade de proteger” (dado que a detonação
da soberania de um estado, para atender à meta da “responsabilidade de
proteger”, jamais foi definida; nem, de fato, jamais foi aprovada ou reconhecida
coletivamente por estados soberanos).
Mas
a atual aparente disposição de Washington para aceitar o direito do Irã ao
enriquecimento de urânio para finalidades pacíficas (a ser monitorado e
supervisionado), pode ser visto como movimento consistente com essa nova
orientação dos EUA. E toca diretamente no ponto crucial dos princípios originais
subjacentes ao Tratado de Não Proliferação.
Deve-se
esperar que a ideia receba amplo apoio global e tenha melhores chances de
sucesso.
Obviamente,
conectada a essa ideia, é impossível não ver que a própria base para a “meta” de
não proliferação supra-Tratado continua a ser perseguida, ainda hoje, nos dois
eventos gêmeos: na destruição dos estoques químicos sírios; e na desistência,
pelo Irã, da possibilidade de vir a ter armas nucleares. E tem de ser vista como
“meta” ainda mais duvidosa e suspeita, que, de fato, cancela todos os direitos
assegurados pelo Tratado de Não Proliferação, porque deixa Israel sozinha, como
a única potência nuclear no Oriente Médio (o país jamais reconheceu a existência
de seu arsenal nuclear).
Os
impactos da reorientação – se se confirmar – serão vários. Israel será obrigada
a reconsiderar vários itens; os estados do Golfo terão de reconfigurar suas
relações com o Irã – e, de fato, também com a Síria - e a Europa terá de também reconfigurar suas relações com o Golfo.
Porque,
se o “sistema” norte-americano foi derrotado na Síria, e se os EUA tiveram de
pôr fim repentino à doutrina Carter (com o fim, de fato, do guarda-chuva dos EUA
sempre a proteger os estados do Golfo), por que, doravante, os estados do Golfo
continuariam obrigados a comprar aquelas armas caríssimas, que lá ficam,
enferrujando no deserto? Por que se interessariam em continuar a pagar por um
guarda-chuva já fechado e posto de lado?
[*] Conflicts Forum visa mudar a opinião
ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e
compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas
por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e
interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas
anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se
escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de
“extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos,
movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos
no mundo.
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