Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Ernest Hemingway (E) e Scott Fitzgerald (D) |
“Os ricos
são diferentes de nós”, dizem que F. Scott Fitzgerald teria dito a Ernest
Hemingway, e ao que, se diz, Hemingway teria respondido “São. Eles têm mais
dinheiro”.
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O diálogo,
embora não tenha acontecido, resume uma sabedoria que Fitzgerald tinha, mas que
escapava a Hemingway. Os ricos são diferentes. O casulo de riqueza e privilégio
permite que os ricos convertam todos que há à volta deles em trabalhadores
dóceis, serviçais, serventes, aduladores e parasitas. A riqueza alimenta, como
Fitzgerald ilustrou em O Grande Gatsby [1] e no conto O
moço rico, [2] uma classe de
gente para quem os serem humanos são mercadoria descartável. Colegas, sócios,
empregados, pessoal da cozinha, criados, jardineiros, tutores, personal trainers, até amigos e
família, curvem-se aos desígnios dos ricos, ou sumam. Tão logo os oligarcas
alcançam riqueza não fiscalizada e poder econômico idem, como alcançaram nos
EUA, os cidadãos também se tornam descartáveis.
A face
pública da classe oligárquica pouca parecença tem com sua face privada. Eu,
como Fitzgerald, fui lançado nos braços da crosta superior quando jovem.
Embarcaram-me, aos dez anos, como aluno bolsista, para um exclusivíssimo
internato na Nova Inglaterra. Tive colegas cujos pais – que os filhos viam
raramente – chegavam à escola em limusines, acompanhados de fotógrafos pessoais
(e, vez ou outras, das amantes), para que a imprensa fosse alimentada de
imagens de ricos e famosos desempenhando o papel de bons pais. Passei dias em
casas de ultra ricos e poderosos, assistindo aos meus colegas, também crianças,
a dar ordens em tom de desprezo a homens e mulheres que trabalhavam para eles,
choferes, cozinheiros, babás e criados em geral.
Quando os
filhos e filhas dos ricos metiam-se em confusões, havia sempre advogados,
relações públicas e políticos conhecidos a protegê-los – a vida de George W.
Bush é caso a ser estudado - da viciosa ação afirmativa para os ricos. Os ricos
têm o mais snob desdém pelos pobres – apesar da muita
filantropia sempre fotografada e publicada – e pela classe média. Essas classes
baixas são vistas como vagabundos e parasitas, incômodo que tem de ser
suportado, às vezes aplacado, às vezes controlado na busca para acumular mais
poder e mais dinheiro.
Mansão em Connecticut onde no ex-presidente George W. Bush passou a 1ª infância |
O ódio que a autoridade me inspira, além da ira que me inspiram
as pretensões, a maldade, o nenhum afeto positivo, o senso de “é meu direito” dos
ricos, nasceram de ter vivido cercado por privilegiados. Foi experiência
profundamente desagradável. Mas ali fui exposto ao insaciável egoísmo, ao
infinito hedonismo daquela gente. Já de menino, aprendi quem são os meus
inimigos.
A
incapacidade para compreender a patologia dos nossos governantes oligarcas é
uma das nossas falhas mais graves. Fomos blindados à depravação da elite
governante nos EUA pela incansável propaganda das empresas de Relações Públicas
que trabalham para as empresas e para os ricos. Políticos covardes, “celebridades”
ocas e nossa vã, viciosa, rasa cultura popular financiada por empresas, que
ensina que os ricos devem liderar para nos convencer de que com dedicação e
trabalho duro chegaremos “lá”, nos impedem de ver a verdade.
São pessoas descuidosas, Tom e Daisy,
Fitzgerald escreveu do casal rico no centro da vida de Gatsby. Esmagaram coisas e criaturas e voltaram ao
dinheiro deles, ou à sua vasta indiferença, ou a seja lá o que os mantém
juntos, e os outros que limpem a sujeira que fizeram.
Aristóteles |
Aristóteles,
Maquiavel, Alexis de Tocqueville, Adam Smith e Karl Marx todos começaram da
premissa segundo a qual há um antagonismo natural entre os ricos e as
multidões.
Os que têm excessos de bens de sorte,
força, riqueza, amigos e que tais, nem desejam nem sabem submeter-se à
autoridade, escreveu Aristóteles, em sua Política. O mal começa em casa; porque quando meninos, em razão da luxúria na qual
são criados, jamais aprendem, nem na escola, o hábito da obediência.
Os
oligarcas, como esses filósofos sabiam, são escolados nos mecanismos da
manipulação, da repressão sutil e acintosa e na exploração para proteger a
riqueza e o poder deles, à nossa custa. O principal, dentre seus mecanismos
para controlar, é o controle das ideias. As elites governantes asseguram-se de
que a classe intelectual estabelecida seja subserviente a uma ideologia – nesse
caso, o capitalismo de livre mercado e globalização –, que justifica a ganância
e a cobiça.
Karl Marx |
As ideias dominantes nada são além da
expressão ideal das relações materiais dominantes, Marx
escreveu, as relações materiais dominantes objetivadas como ideias. [3]
A ampla,
insistente disseminação da ideologia do capitalismo de livre mercado pela
imprensa, e o expurgo, especialmente nas universidades, de vozes críticas,
permitiram que nossos oligarcas orquestrassem aqui a maior desigualdade social,
em todo o mundo industrializado. O 1% mais rico nos EUA é proprietário de 40%
da riqueza da nação; e os 80% abaixo possuem apenas 7%, como Joseph E. Stiglitz
escreveu em O Preço da
Desigualdade [4]. Para cada dólar
que o 1% mais rico acumulou em 1980 receberam outros três dólares em renda
anual em 2008, como David Cay Johnston explicou no artigo publicado em 13/4/2011 “9
Things the Rich Don’t Want You to Know About Taxes” [9 coisas que os ricos não querem que você saiba
sobre impostos].
Os 90% de
baixo, disse Johnson, no mesmo período, só acrescentaram 1 centavo aos próprios
ganhos. Metade da população dos EUA está hoje na faixa dos pobres, ou de baixa
renda. O valor real do salário mínimo caiu $2,77 desde 1968. Os oligarcas não
acreditam em autossacrifício pelo bem comum. Não se sacrificam. Jamais se
sacrificarão. Os oligarcas são o câncer da democracia.
Wendell Berry |
Nós, os norte-americanos não somos
vistos como povo submisso, mas é claro que somos submissos – escreve
Wendell Berry. Por que outra razão
aceitaríamos que nosso país seja destruído? Por que outra razão nós todos – por
procuração que demos a políticos corruptos e empresas gananciosas – estaríamos
colaborando para a destruição dos EUA? Muitos de nós ainda nos mantemos
suficientemente sãos para não mijar na própria caixa d’água, mas deixamos que
outros mijem e ainda os recompensamos. Recompensamos tão bem, de fato, que os
que mijam na nossa caixa d’água são muito mais ricos que nós. Como nos
submetemos? Não sendo suficientemente radicais. Ou por não nos sentirmos
suficientemente fartos deles e do que nos fazem, o que é a mesma coisa.
A ascensão
de um estado oligárquico oferece à nação duas vias, segundo Aristóteles. Ou as
multidões empobrecidas revoltam-se para corrigir o desequilíbrio de riqueza e
poder, ou os oligarcas estabelecem uma tirania brutal para manter as multidões
escravizadas à força. Os EUA escolhemos a segunda dessas vias. Os lentos
avanços que conseguimos no início do século 20, mediante os sindicatos, as
regulações sobre atos do governo, o New
Deal, os tribunais, uma imprensa alternativa e movimentos de multidões,
todos esses avanços foram revertidos. Os oligarcas estão nos convertendo – como
já fizeram uma vez, nas fábricas de aço e tecidos no século 19 – em seres
humanos descartáveis. Estão construindo o mais invasivo aparato de segurança e
de vigilância de toda a história da humanidade, para nos manter submissos.
Os Pais Fundadores dos EUA |
Esse
desequilíbrio não teria perturbado a maioria dos Pais Fundadores dos EUA.
Nossos Pais Fundadores, escravistas super-ricos, temiam a democracia direta.
Distorceram o processo político nos EUA para esvaziar a possibilidade de
governos populares e proteger os direitos de propriedade da aristocracia
nativa. As multidões tinham de ser mantidas à margem. O Colégio Eleitoral,
poder original dos estados para indicar senadores, o enfraquecimento eleitoral
das mulheres, dos nativos norte-americanos, dos afro-americanos e dos homens
não proprietários prenderam a maioria dos norte-americanos do lado de fora do
processo democrático já desde o início da república. Tivemos de lutar muito
para ganharmos alguma voz. Centenas de operários foram mortos e milhares foram
feridos, nas guerras trabalhistas nos EUA. A violência agrediu mais o trabalho
e as batalhas trabalhistas nos EUA, que em qualquer outra nação
industrializada.
As
aberturas democráticas que alcançamos foram conquistadas e pagas com o sangue
dos abolicionistas, dos afro-americanos, das sufragistas, dos operários e de
todos nos movimentos antiguerra e pelos direitos civis. Nossos movimentos
radicais, reprimidos e violentamente desmantelados em nome do anticomunismo,
foram os verdadeiros motores da igualdade e da justiça social. A dor e o
sofrimento infligidos aos trabalhadores pela classe dos oligarcas no século 19
só se comparam ao que sofremos hoje, agora que já nos tiraram todas as
proteções sociais. Divergir é, outra vez, ato criminoso. Os Mellons, Rockefellers e Carnegies
na virada do século passado tentaram criar uma nação de senhores e escravos. A
moderna encarnação empresarial dessa elite oligárquica do século 19 criou um
neofeudalismo mundial, no qual os trabalhadores por todo o planeta vivem em
miséria, enquanto os empresários oligarcas acumulam fortunas pessoais de
milhões e milhões.
Não há
meio, dentro do sistema, para recusar as demandas de Wall Street, da indústria dos combustíveis fósseis ou dos que
lucram com as guerras. A única via de escape para nós, como Aristóteles sabia,
é a revolta.
Oswald Spengler |
A luta de
classes define quase toda a história da humanidade. Nisso, Marx acertou
completamente. Quanto antes nos dermos conta de que estamos presos numa guerra
mortal contra a elite corrupta, empresarial que nos governa, mais depressa nos
daremos conta de que essas elites têm de ser derrubadas. Agora, os oligarcas
empresariais já tomaram conta de todos os sistemas de poder nos EUA. A política
eleitoral, a segurança nacional, o Judiciário, nossas universidades, as artes,
as finanças, além de todas as formas de comunicação, já está, tudo isso, nas mãos
das empresas e dos empresários.
A
democracia nos EUA, com falsos debates entre dois partidos de empresários, é
teatrinho sem sentido algum. A única via de escape para nós, como Aristóteles
sabia, é a revolta.
Nada disso
é novidade. Os ricos, ao longo da história, sempre encontraram meios para
subjugar e re-subjugar as multidões. E as multidões, ao longo da história,
sempre despertaram, ciclicamente, para livrar-se de suas cadeias. Essa luta
incessante nas sociedades humanas entre o poder despótico dos ricos e o clamor
por justiça e igualdade está no âmago do romance de Fitzgerald, que usa a
história de Gatsby para construir uma dura denúncia contra o capitalismo.
Willa Cather |
Enquanto
escrevia O Grande Gatsby,
Fitzgerald estava lendo O declínio
do ocidente, de Oswald Spengler. Spengler previu que, conforme as
democracias ocidentais se fossem calcificando e morressem, uma classe de
“bandidos endinheirados” substituiria as elites políticas tradicionais. Nisso,
Spengler acertou.
Só há duas ou três histórias humanas,
escreveu Willa Cather, e elas seguem a
repetir-se e repetir-se, tão furiosamente como se jamais antes tivessem
acontecido.
A gangorra
vai-e-vem da história pôs agora lá em cima, outra vez, os oligarcas. Cá estamos
nós, quebrados e humilhados, sentados no chão. É uma luta que foi lutada outra
e outra vez na história humana. Parece que nunca aprendemos. É hora de
empunharmos outra vez nossas foices e ancinhos.
Notas dos tradutores
[1] FITZGERAL, Scott [1925], O
Grande Gatsby, Lisboa: Ed. Tordesilhas, 2012.
[2] Revista Senhor [1959-64], trad. Ivo Barroso (ed. Paulo Francis), citado em “Belos e
Malditos”, Helio Pólvora.
[3] MARX,
Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã [1846], São Paulo: Boitempo. Trad. Rubens Enderle, Nélio
Schneider e Luciano Cavini Martorano, 2007, 616 pp.
[4] STIGLITZ , Joseph E. O
Preço da Desigualdade, Lisboa: Bertrand Editora, 2013
______________________
[*] Chris Hedges escreve regularmente coluna no
blog Truthdig.com. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas
correspondente no exterior do The New
York Times. É autor de muitos livros, incluindo: War
Is A Force That Gives Us Meaning, What
Every Person Should Know About War, e American
Fascists: The Christian Right and the War on America. Seu livro mais recente é Empire
of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.
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