28/10/2013,
Dmitry MININ, Strategic
Culture
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Edward Snowden em 9/10/2013 na Rússia |
Regra
geral, as discussões relacionadas ao que Edward Snowden revelou sobre a vigilância
eletrônica global praticada
pelos EUA têm-se resumido a violações de direitos humanos e interferência
ilegal na vida privada de milhões, em diferentes partes do mundo. Se fosse só
isso, a Casa Branca não se empenharia tanto em arquivar tanta coisa nem poria a
questão da extradição de Snowden como principal item de discussões entre
estados, nem iria ao ponto de cancelar reuniões
internacionais de cúpula. Barack Obama assustou-se, a ponto de cancelar sua
participação em fóruns internacionais, como se viu recentemente no caso da
reunião de cúpula dos países APEC,
por exemplo.
A causa
dos temores dos EUA é outra: Snowden revelou ao mundo a extensão do controle
exercido sobre países e povos, um movimento que modifica o próprio modo como se
percebe o mundo contemporâneo e reforça o ânimo e os esforços da humanidade
“sob observação e teste” para buscar meios para se autopreservar e defender-se
contra essas ações daninhas.
Muitos
creem que Edward Snowden não teria revelado nada que já não se soubesse, ou do
que já não se desconfiasse há muito tempo. Mas o que chama a atenção é a escala
da invasão, que deixa boquiabertos até os especialistas profissionais.
O
principal é que, dessa vez, o que se vê no radar do mundo não são conjecturas
conspiracionistas, nem histórias montadas por marginais, mas documentos genuínos,
de pleno valor legal, produzidos para que todos sejam informados.
Há muitas
definições para o termo “geopolítica”, e todas elas se resumem na noção de que
há uma ciência dedicada ao controle sobre terra e mar e, atualmente, também ar
e espaço. Hoje, se têm de acrescentar à lista também a informação e o
ciberespaço, o que exige um tipo de controle diferente do que o que se
aplicava aos domínios tradicionais.
Como domínio
geopolítico, o espaço informacional destaca-se por sua característica de ser,
ao mesmo tempo, objeto e sujeito.
Em grande
medida, o domínio é virtual, mas se torna questão muito real, quando
relacionado a coordenadas geográficas. No século 19 – e primeira metade do
século 20 – os especialistas discutiram a importância relativa do poder em
terra (Halford Mackinder, a heartland
theory) ou no mar (Nicolas John Spykman, a concepção da Rimland) para a liderança global. O
controle sobre o ar e o espaço começou a ser regularmente visto como crucial,
na segunda metade do século 20. O século 21 começou por definir-se o controle
sobre o ciberespaço como a chave para dominar o mundo.
A primeira
lição de importância crucial que se tem de extrair das revelações de
Snowden é o fato de que os EUA estão envolvidos na vigilância clandestina e
declarada sobre o ciberespaço, para manter sua liderança e obter vantagens para
suas políticas externas. Não é só a coleta de informação confidencial sobre a
humanidade em escala jamais vista. Os EUA estão usando o ciberespaço para
adquirir capacidade para infligir grave dano material e militar a qualquer
inimigo potencial e para influenciar a ação de outros atores mundiais.
Perguntado
sobre o que os EUA declararam formalmente, que seriam vítimas de
ciberespionagem praticada por vários países, com a China no topo da lista,
Snowden respondeu, muito razoavelmente, que os EUA até aqui haviam grampeado
praticamente todas as mensagens. Não importa o que façam os
EUA para inventar diferenças, a verdade é que os EUA, hoje, espionam de fato
tudo e todos, sem distinção. Basta lembrar que a Internet, a pedra inaugural do
ciberespaço contemporâneo, foi criada e financiada como “Projeto ARPANET”, pela
Agência de Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa [orig. Defense Advanced
Research Projects Agency (DARPA)], que integra a estrutura do Departamento
de Defesa dos EUA. Oficialmente, o projeto teria “deslizado” e gradualmente se
teria convertido no que é hoje. Sempre houve dúvidas sobre esse “livre
deslizamento”. Hoje, já se vê claramente que esse cordão umbilical genérico que
une todas as agências de segurança dos EUA e o espaço da nova informação sempre
permaneceu intacto, como o vemos hoje. A Internet é a base da World Wide Web [Rede Mundial (de computadores)] (www)
e de muitos outros sistemas de comunicação.
Os serviços de
inteligência dos EUA e do Reino Único sabem quebrar os códigos de encriptação
que protegem mensagens eletrônicas e dados de contas de banco e relatórios
médicos. A Agência de Segurança Nacional dos EUA e o Quartel-general das
Comunicações do Governo do Reino Unido [orig.
UK Government Communications Headquarters (GCHQ)] conseguiram
acesso aos mais confiáveis sistemas de proteção de dados; o mais disseminado é
o SSL; portanto, mereceu atenção especial. Foi quebrado por um programa top secret especialmente desenhado,
o Bullrun. O similar britânico é chamado Edgehill. A tecnologia 4G sem fio
[orig. wireless] foi tratada
como prioridade. O programa XKeyscore da Agência de Segurança Nacional dos EUA
é a ferramenta
que coleta “praticamente tudo que qualquer usuário faça na internet”.
O programa
PRISM, formalmente lançado em 2007, é a base da vigilância global pelos EUA; a
existência do PRISM foi revelada por Snowden. O programa entrou em plena
operação já sob o governo do presidente Barack Obama. Foi o presidente Obama,
precisamente, que deu e dá preferência às tecnologias de “soft and smart
power” [poder suave e inteligente], quem viu o programa PRISM como “um
cristal mágico” que revelaria todos os segredos do mundo.
Em vermelho os pontos de coleta de de dados do Programa XKeyscore |
Em 2009,
por ordem do presidente Obama, criou-se uma estrutura especial para levar
adiante a missão – o Ciber Comando dos EUA [orig. United States Cyber Command, Cybercom].
O general Keith B. Alexander (diretor da Agência de Segurança Nacional dos EUA
– a entidade mais secreta da comunidade de inteligência dos EUA) foi nomeado
para presidir o Ciber Comando dos EUA. Em 2010, os EUA foram o primeiro país a
considerar o ciberespaço como mais um domínio, que acrescentaram a terra, mar
e ar. Em 2011, o Congresso dos EUA aprovou a verba para que o Cybercom desenvolvesse as tecnologias de ataque. Em
agosto de 2012, ao que se sabe, pela primeira vez o Pentágono tomou as medidas práticas para colocar online aquelas tecnologias.
A Agência
de Segurança Nacional dos EUA trabalhou secretamente para adquirir a capacidade
necessária para quebrar os códigos de encriptação mais usados para proteção de
dados na internet: de mensagens eletrônicas às transações financeiras. Para
alcançar seu objetivo, usaram-se vários métodos: desde criar as chamadas
“portas dos fundos” [orig. back
doors] e “caixas pretas” [orig. black
boxes] em programas populares, até usar supercomputadores, ordens judiciais
secretas e manipular procedimentos internacionais de encriptação. A Agência
consome anualmente mais de $250 milhões no Projeto SIGINT Enabling [habilitação de inteligência de sinais]
para envolver ativamente empresas de Tecnologia da Informação (TI) dos EUA e de
outros países, seja pressionando-as clandestinamente, ou usando abertamente
seus produtos comerciais, para propósitos práticos.
A Agência
de Segurança Nacional dos EUA é capaz de interceptar cerca de 75% do tráfego de
internet que passa pelos EUA. O país é um centro de distribuição do tráfego internacional:
a quantidade de tráfego ultrapassa, em muito, a que é oficialmente declarada e
reconhecida. O sistema funciona assim: a Agência de Segurança Nacional faz com
que empresas de TI redirecionem os fluxos de tráfego com alta probabilidade de
conter dados que a inteligência considere valiosos. As empresas (Microsoft,
Yahoo!, Google, Facebook, AOL, Skype, YouTube, Apple, PalTalk) são obrigadas a
aceder às ordens da Agência de Segurança Nacional dos EUA, nos termos de
decisões da Corte Judicial dos EUA Para Vigilância de Inteligência Estrangeira
[orig. US Foreign Intelligence
Surveillance Court].
Algumas das empresas que fazem espionagem na internet para os EUA |
Segundo
Snowden, os interesses da Agência de Segurança Nacional dos EUA vão bem além da
missão de defender o país contra “penetração inamistosa” ou terrorismo, temas
dos quais os funcionários da Casa Branca sempre falam para justificar suas
atividades. De fato, aqueles interesses cobrem todo o espectro de informação
considerada relevante em questões chaves, domésticas e no exterior. Num caso
específico, essa foi a abordagem que os EUA adotaram recentemente, para
‘'contornar'’ as implicações da crise financeira mundial, em prejuízo de estados
parceiros, tanto quanto de estados rivais. Extraindo vantagens do fato de ter
informação abundante sobre a situação dos negócios mundiais, os EUA conseguiram
manter à tona a própria economia, e redirigiram o processo da própria
desindustrialização “na hora certa e para o lugar certo”, mantendo-se sempre um
passo à frente dos concorrentes, em vários tipos de concorrências.
Segunda lição. [1] O controle
sobre o ciberespaço é exercido em cerrada aliança com os países seletos de
língua inglesa – Grã Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Nesse caso, a
interação é muito mais extensiva que com outros parceiros, especialmente no campo
da troca de informação. Essa aliança informal extrai vantagem do fato de o
inglês ser absolutamente dominante como língua das comunicações internacionais,
e usa essa vantagem para alcançar alvos geopolíticos.
Vez ou
outra, a aliança informal é chamada de “anglosfera”. Para alguns, essa união,
mantida coesa por interesses comuns no domínio das comunicações, especialmente
a Internet, conduzirá o resto da humanidade no século 21. [2] Na linha da obra-prima da visão antiutópica
de George Orwell, 1984, essa
comunidade de nações pode ser comparada a Oceania. A coalizão das nações
“anglo” baseia-se na interoperabilidade de suas forças armadas. A ideia de
desenvolver íntima cooperação militar nasceu dos generais Dwight Eisenhower e
Bernard Montgomery. Nessa aliança “anglo”, a interoperabilidade é ainda mais
alta que na OTAN. O ciberespaço é reconhecido como mais um domínio para
operações de combate.
Conforme
documentos divulgados por Snowden, os estados aliados dos EUA, como Dinamarca,
Países Baixos, França, Alemanha, Espanha e Itália, tem acordos com os EUA, para
partilhamento de dados de comunicações. Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia são, para os EUA, as nações mais confiáveis. Países maiores, como
Alemanha e França, aparecem na terceira posição na lista de países confiáveis,
no que tenha a ver com inteligência de sinais (SIGINT); deve-se entender
que os EUA
confiam menos nesses países e não têm qualquer plano de partilhar
ganhos.
Entrada da sede da NSA, do US Cyber Command e Central Security Service |
A reação
internacional às revelações de Snowden tornou visível o relacionamento especial
entre os países “anglo”. Grã Bretanha, Canadá e Austrália são os principais
participantes e beneficiários do programa PRISM e de outros programas filiados.
Esses são os países que mais ferozmente condenaram Snowden como “traidor”. Em
Londres, aconteceu até de uma equipe de agentes de serviços especiais invadir a
redação do jornal Guardian e destruir equipamento, num claro ato de
revide por o jornal ter publicado declarações de Snowden. Antes da invasão, o Guardian publicara as revelações de Snowden sobre
Grã-Bretanha e EUA terem espionado juntas em Londres, durante a reunião do G20
em 2009. Altos funcionários e políticos estrangeiros tiveram suas mensagens
interceptadas e suas chamadas telefônicas gravadas durante o evento. A operação
foi executada pela agência de escuta eletrônica dos britânicos (GCHQ) e
a Agência de Segurança Nacional dos EUA.
Soube-se também que a Grã-Bretanha mantém uma enorme estação de escuta e vigilância
no Oriente Médio, destinada a interceptar telefonemas, mensagens eletrônicas e
tráfego de Internet. As agências de inteligência britânica mantêm grampeados os
cabos submarinos de fibra ótica que cruzam a região. E a informação é
partilhada com os parceiros norte-americanos. O programa tem custo estimado de
um bilhão de libras esterlinas (aproximadamente 3,5 bilhões de reais)
[Continua]
Notas dos tradutores
[1] Esse é assunto à parte, sobre o qual ainda não se discute, mas é
tema crucialmente importante para a discussão do “imperialismo linguístico”:
toda essa vastíssima rede de espionagem planetária é tão mais eficiente quanto
mais as comunicações se deem em idioma inglês, o hoje chamado “mundo Anglo”, nos
chamados “países Anglo”. E o trabalho de traduzir vai ganhando traços que,
antes, jamais teve, ou não teve, com certeza, na extensão e na profundidade que
hoje tem. Para pensar.
[2] James
C. Bennett, The Anglosphere
Challenge: Why the English-Speaking Nations Will Lead the Way in the
Twenty-First Century (Lanham, Md.:
Rowman & Littlefield, 2004).
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