21/10/2013,
[*] MK Bhadrakumar, Strategic Culture
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu (revisado por João Aroldo)
Saudi Arabia e a ONU |
A Arábia
Saudita está divulgando que a rejeição ao posto de membro não permanente do
Conselho de Segurança da ONU é questão de altos princípios. Mas a grande
pergunta é: quem, de fato, Riad está querendo desqualificar? Pode talvez ser o
sistema das Nações Unidas, mas as aparências podem enganar.
Fato é que
Riad muito trabalhou para obter o privilégio de ver-se representada no Conselho
de Segurança pela primeira vez, nos 60 anos de existência da organização
mundial. Aplicou-se dedicadamente por mais de um ano, na luta para conquistar
apoio de outros membros para sua candidatura, depois de ser indicada como
escolha unânime do bloco árabe. Claro que houve muito de realpolitik nesse cálculo e, se algum alto
princípio pesou na mente dos sauditas, só pode ter sido fenômeno muito recente.
Os
sauditas decidiram introduzir uma “correção de rota”. É isso. Ponto. Parágrafo.
É movimento teatral e caminha contra a reputação dos sauditas, cujo establishment é notório pela lentidão com que toma
decisões. Acima de tudo, é decisão surpreendente; de certo modo, é movimento “pouco
saudita”, dado o longo currículo de excesso de cautela.
Na
declaração do Ministério de Relações Exteriores saudita, lê-se que:
(...)
o modo, os mecanismos das ações, os
duplos critérios que se vêem no Conselho de Segurança o impedem de cumprir os
próprios deveres e de assumir suas responsabilidades na preservação da paz e da
segurança internacional, como deve fazer, o que tem levado a continuado rompimento
da paz e da segurança, à expansão da injustiça, à violação de direitos e à
disseminação de conflitos e guerra por todo o mundo.
Em resumo,
Riad depôs toda a culpa à porta de entrada da ONU. Não há dúvidas de que foi
declaração dura, que se soma às acusações de que o Conselho de Segurança não
tem manifestado qualquer inclinação para qualquer reforma, apesar dos esforços
internacionais “dos quais a Arábia Saudita tem participado muito efetivamente”.
Na
sequência, os sauditas listam três áreas específicas nas quais o Conselho de
Segurança falhou: em primeiríssimo lugar, foi incapaz de assegurar ao povo
palestino os seus direitos legítimos; daí decorre, mas sem nada explicitar, o
problema dos arsenais nucleares israelenses (“o Oriente Médio como área livre
de armas de destruição em massa”); e o programa nuclear do Irã (“conter os
programas nucleares de todos os países”). A Síria aparece na terceira
explicação: o fracasso “na aplicação de qualquer sanção paralisante contra o
regime de Damasco”.
Mas... Riad
sempre soube que os EUA jamais permitiriam que o Conselho de Segurança forçasse
Israel a retirar-se da Cisjordânia. Além do mais, a Arábia Saudita diz apoiar a
“causa palestina”, mas jamais teve qualquer militância ativa nessa direção; em
vez disso, chegou até a manter contatos secretos com Israel, os quais, hoje, já
acontecem, pode-se dizer, às claras.
Reunião do Conselho de Segurança da ONU |
A dura
verdade é que a operação saudita para obter um assento no Conselho de Segurança
da ONU começou há vários meses, quando os prospectos de engajamento EUA-Irã
eram praticamente zero, e estava em plena implantação uma agenda de “mudança de
regime” na Síria. Aconteceu então que as placas tectônicas começaram a mover-se
nas últimas semanas, movimento que ninguém havia previsto, com a extraordinária
iniciativa do presidente russo Vladimir Putin sobre os arsenais químicos da
Síria.
A
implementação do acordo russo-EUA sobre a destruição das armas químicas da
Síria efetivamente torna o governo do presidente Bashar Al-Assad o interlocutor
chave da “comunidade internacional”, cuja cooperação o governo Obama busca. Por
outro lado, a oposição síria comandada pelos sauditas implodiu, está
literalmente se autopulverizando e radicalizando-se cada vez mais, além do fato
de que está perdendo terreno para as forças do exército sírio.
A
sabedoria convencional sugeria também que o poder formidável que o lobby pró-Israel exerce sobre o establishment norte-americano forçaria o presidente Obama
a desistir do projeto de engajar o Irã. Os sauditas trabalharam em íntima
colaboração com o lobby israelense nos corredores do poder em
Washington, mas hoje sentem-se abandonados, depois que Obama decidiu explorar
as possibilidades de um engajamento com Teerã.
Os
sauditas podem também estar deixando transparecer que seu jogo enfrenta
dificuldades graves na Síria, e que a incansável, robusta diplomacia russa, na
direção de fazer avançar o processo de Genebra-2 já não poderá ser minada.
Nessas circunstâncias, restou aos sauditas uma opção de desafiar
estrategicamente os EUA e montar uma campanha militar na Síria; e, sim, há
notícias de que Riad está mobilizando os grupos islamistas extremistas sob seu
controle, como nova força combatente na Síria. Mas desafiar assim a comunidade
internacional é ação que pode sair muito cara, e pode revelar-se difícil de
sustentar, porque os sauditas não estão conseguindo arrastar os países árabes
sunitas para a sua nova guerra contra o Irã.
Iraque
e Argélia opõem-se declaradamente ao projeto de “mudança de regime” na Síria.
Hoje, o Qatar mantém-se distante, ruminando, depois de briga feia com os
sauditas pelo Egito (e a Síria). A Turquia está no auge de um processo de
reavaliar, e dá sinais de preocupação ante a presença de grupos afiliados da
al-Qaeda nas áreas da fronteira com a Síria. O Egito já saltou fora do projeto
de “mudança de regime” na Síria e, bem ao contrário, está expulsando os grupos
de rebeldes sírios refugiados no Cairo. Os demais estados do Conselho de
Cooperação do Golfo também começam a mostrar-se ambivalentes, ante a pressão
exercida pelos EUA. Recentemente, o International
Crisis Group previu que, em pouco tempo, os sauditas começarão a enfrentar
um problema logístico para contrabandear armas para a Síria, com dois países,
Turquia e Jordânia, já se mostrando relutantes.
Fato é que
a Arábia Saudita também sabe que, se o acordo Rússia-EUA sobre as armas
químicas sírias for bem-sucedido, será imperativo que se inicie um diálogo
intra-Síria, e o Conselho de Segurança da ONU com certeza favorecerá uma
solução política e diplomática para o conflito sírio. Significa que, como
membro do Conselho de Segurança, a Arábia ter-se-ia posto na posição ridícula
de ter de elogiar a cooperação dada, pelo governo sírio, à Comissão para
Proibição de Armas Químicas. O que já se sabe é que na última 5ª-feira (17/10/2013),
a declaração da CPAQ dizia que já haviam sido destruídas as armas de seis dos
20 depósitos a serem destruídos, e que o prazo previsto anteriormente para a
destruição de todo o arsenal sírio (até meados de 2014) é realista e poderá ser
cumprido. A Comissão manifestou explicitamente sua satisfação com a cooperação
que recebeu das autoridades sírias.
Contudo, o
conflito sírio é, na essência, uma guerra por procuração, e a causa basilar,
que explica a fúria dos sauditas hoje, é os EUA estarem engajando o Irã. A
Síria torna-se uma espécie de subtrama da rivalidade sauditas-iranianos. A
derrubada do regime sírio é importante para os sauditas, como meio para reduzir
o alcance regional do Irã, especialmente sua capacidade para influenciar, como big player, o jogo no Líbano, que
Riad considera seu vassalo no Levante (como o Bahrain no Golfo Persa). E o
Líbano (o Hezbollah) explica em boa parte, também, a convergência de sauditas e
israelenses.
Tudo considerado,
os sauditas estão “pirando”. A decisão de não ocupar o assento ao qual foram
eleitos do Conselho de Segurança da ONU só pode ser definida como “piração”. De
fato, os sauditas foram colhidos de surpresa pelos dois fluxos de eventos:
pelos eventos relacionados à Síria e pelo início das conversações diretas entre
EUA e Irã. A “piração” dos sauditas impressionará alguém? Em última análise, os
sauditas só têm eles mesmos, para culparem. É mais que hora de repensarem
seriamente, para se arrancarem do fundo do poço – que os próprios sauditas
cavaram para eles mesmos, movidos pela obsessão contra o crescimento da
importância do Irã na região. Os sauditas são movidos por uma fé obcecada,
segundo a qual basta jogar muito dinheiro sobre qualquer problema, e o problema
se autorresolverá.
Agora,
pela primeira vez, estão obrigados a constatar que o dinheiro, sim, pode levar
qualquer um até muito longe, mas nem em todos os casos, nem para sempre, em
política.
Assim
sendo, mesmo com a pródiga ajuda ao governo de transição no Cairo, não se vê
nem sinal de qualquer renascimento na economia egípcia, nem de apaziguamento no
descontentamento e na revolta do povo egípcio, nem de que o país se movimente
na direção de voltar à estabilidade. Igualmente, depois de consumir bilhões de
dólares no projeto de “mudança de regime” na Síria, os sauditas não veem nem
sinal de luz no fim do túnel. E ainda mais: depois de muito tentar
“influenciar” os atores no circuito político de Washington, para que impedissem
a qualquer custo qualquer ação dos EUA para engajar o Irã... a Arábia Saudita
percebe que nada conseguiu e que o engajamento está em andamento.
Mas há
ainda mais alguma coisa envolvida nisso tudo – talvez muito mais do que apenas “alguma
coisa”. Posto em termos sucintos, Riad quer que sua decisão de “boicotar” o
Conselho de Segurança da ONU seja vista como duro golpe para conter e subjugar
o governo Obama. As relações EUA-sauditas estão sendo esbofeteadas por
subcorrentes muito fortes.
[Continua]
_________________________
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior
da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka,
Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em
questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e
segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online, Strategic Culture, Global
Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK
Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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