domingo, 14 de novembro de 2010

O Líbano não consegue escapar das trevas do assassinado de Hariri

Robert Fisk: 12/11/2010, The IndependentUK - Robert Fisk: How Lebanon can't escape the shadow of Hariri's murder

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Crowds at the funeral of Lebanon's murdered former prime minister Rafiq Hariri in Beirut in February 2005Multidão no funeral do antigo Primeiro-Ministro Rafiq Hariri em Beirute – Fevereiro de 2005

Acho que é preciso viver aqui, para sentir as vibrações. Semana passada, por exemplo, quando instintivamente me encolhi na minha varanda – como também se encolheram os que passeavam pela Corniche – ao ouvirmos o ronco de um bombardeiro supersônico F-16 de Israel sobre a praia e as ruas de Beirute.

Que mensagem os israelenses mandam, dessa vez? Que não temem o Hezbollah?

Que podem humilhar o primeiro-ministro Saad Hariri do Líbano?

Deus sabe que nem precisam disso, porque Hariri já várias vezes tomou a desolada estrada de Damasco, para encontrar-se com o presidente Bashar al-Assad da Síria – o homem que ele crê que tenha assassinado seu pai Rafiq.

Mas quem se preocupa com o avião israelense? Se um MiG sírio tivesse zunido sobre Telavive durante um dia normal, semana passada? Hillary Clinton se poria aos berros, e o Departamento de Estado condenaria a Síria; e o secretário-geral da ONU Ban Ki Moon teria oficialmente advertido a Síria sobre as consequências “do gesto” e os israelenses detonariam ataque aéreo contra a Síria, para dar uma lição em Assad. Mas, não.

O sobrevoo do avião israelense é clara violação da Resolução n. 1.701 do Conselho de Segurança da ONU – Israel viola a 1.701 todos os dias, mas nunca em voo rasante, como dessa vez – e não encontro nenhuma notícia sobre o incidente na imprensa dos EUA. Os israelenses são bons sujeitos. O resto do mundo é que não presta.

Depois, foi a história do sacerdote que morreu na arquidiocese maronita em Sarba semana passada, num incêndio. O pobre padre Pierre Khoueiry caiu de uma sacada do segundo andar quando seu prédio pegou fogo – dois outros padres conseguiram escapar sem ferimentos – e a igreja declarou que o incêndio fora provocado por falha elétrica. Tudo absolutamente verdade: vi a caixa e os fios onde o incêndio começou.

Mas a televisão OTV abriu o noticiário noturno sugerindo que poderia ser a repetição de ataques de fundamentalistas contra igrejas no Iraque e no Egito. Um ultrajado ministro da Informação de Beirute, Tark Mitri, só pôde lamentar amargamente a “cobertura irresponsável” da tragédia na igreja.

No Líbano, nos últimos dias, uma fagulha de sectarismo pode incendiar um oceano de petróleo político. Claro, podemos desmentir os absurdos. Domingo passado, não vimos 20 mil jovens correndo uma maratona por toda a Beirute, batendo tambores e dançando a “dabka” pelas ruas? Vimos. Mas por que o proprietário do apartamento que alugo instalou uma nova porta de aço reforçado por cima das venezianas que abrem para a varanda? E por que instalou uma lâmpada de segurança nos fundos, que ilumina minha cozinha a noite inteira?

Talvez seja o linguajar incendiário dos políticos libaneses. Desde que Sayed Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah muçulmano xiita, que presenteou o presidente do Irã, em visita a Beirute, com um rifle de confiscado do exército israelense conclamou os libaneses a rejeitar o Tribunal Especial para o Líbano instalado para investigar o assassinato de Rafiq Hariri – porque Nasrallah está convencido de que o Tribunal acusará membros do Hezbollah –, vivemos à espera de que o Gabinete caia.

O embaixador francês acha que o primeiro-ministro Hariri cairá até o final da semana. Não sou tão pessimista, mas me preocupo com o que possa acontecer, quando o Hezbollah e a grande oposição xiita recusaram-se a participar do encontro de reconciliação com o presidente Michel Sleiman, há nove dias. Graças a um arranjo cuidadosamente costurado pelo Emir do Qatar, a maioria cristã-sunita no Gabinete libanês pode tomar decisões. Mas a oposição e o Hezbollah têm poder de veto. Contudo, quando a oposição não se reúne com o presidente e o resto do governo, a única explicação plausível é que não dão qualquer importância ao próprio poder de veto.

Políticos cristãos voaram em rebanho para reunir-se ao Patriarca, cardeal Nasrallah Sfeir, convertendo outra vez a Igreja Maronita em partido político – o que nem surpreende, porque o outro Nasrallah (o do Hezbollah) converteu os xiitas em aliados dos iranianos.

O outro lado (leiam, por favor, o Hezbollah, os xiitas e o Irã) tentava “impor ao Líbano uma fórmula impossível e injusta – ou rejeitar o Tribunal da ONU e manter a paz, ou sacrificar a paz para salvar o Tribunal”.

Michel Aoun, ex-general amalucado cujo partido apóia o Hezbollah na vã esperança de que o façam presidente – Nasrallah gosta de dizer ao mundo que essa aliança lhe dá suporte transectário – também gostaria muito de ver o Tribunal esquecido para sempre. Até o líder druso Walid Jumblatt, cuja posição política gira como moinho a cada três ou quatro anos, diz que a existência do Tribunal não importa; o que importa é manter “a serenidade do Líbano”. Desnecessário dizer que Madame Clinton vive ao telefone com Hariri, repetindo que seria sua obrigação desarmar o Hezbollah e defender o Tribunal da ONU. Em Washington, faz sentido; no Líbano, soa como conversa de doida.

Por quê? Porque os xiitas são a maior comunidade no Líbano; a maioria do exército nacional libanês é formada de xiitas, filhos e irmãos de xiitas.

Não que o Hezbollah se tenha infiltrado nas fileiras do exército. Aconteceu apenas que, dado que as elites – os cristãos e sunitas – sempre mantiveram os xiitas em miséria relativa, se comparada ao status das elites, os jovens xiitas, sem emprego possível, alistam-se no exército. Como em Manchester ou Glasgow, no entre-guerras.

Não bastasse isso, o exército libanês está sobrecarregado de generais e coronéis. Como o professor de Carnegie, Nadim Hasbani, já explicou, o ministro da Defesa Nacional várias vezes tentou abrir uma conta no Banco Central, pela qual os cidadãos e empresas privadas pudessem fazer doações para comprar armas para o exército. Não há essa conta, porque, por lei, cabe ao gabinete organizar e promover esse tipo de despesa oficial. E mesmo que fosse legalmente possível: como alguém pode supor que um exército nacional dependa de doações de caridade para comprar armas?

Mas voltemos aos soldados xiitas. Se alguém lhes ordenasse que marchassem sobre o sul à moda do Duque de York, alguém supõe que esses jovens atacariam suas próprias casas xiitas, para matar seus irmãos, pais e primos, todos do Hezbollah, só para colher os aplausos da Casa Branca?

Não. Eles se recusariam a atacar o Hezbollah. E os soldados sunitas ficariam então encarregados de atacar os xiitas armados. O exército se dividiria ao meio. Assim, precisamente, começou a guerra civil em 1975.

Madame Clinton – e o amaneirado ministro do Exterior da França, São Bernard Kouchner que apareceu em Beirute para apoiar o Tribunal da ONU – querem ver outra guerra civil no Líbano?

Há ainda outro problema. Considerados os números, os xiitas estão significativamente sub-representados no Parlamento e no governo libanês. E há um acordo tácito – e com certeza jamais escrito – em Beirute, segundo o qual, para compensar a falta de poder político, os xiitas podem manter sua milícia.

No caso de Deus ordenar a Nasrallah que desarme o Hezbollah – ele obedeceria, é claro, porque só Deus se atreveria a ordenar-lhe tal coisa –, Nasrallah imediatamente exigiria aumento no número de xiitas no governo, correspondente aos 42% de xiitas que há na população. Assim, rapidamente, se criaria um governo xiita no Líbano.

Será que é o que Clinton e o infeliz Obama desejam? Mais um Estado árabe xiita, para somar-se ao Estado iraquiano xiita, que Clinton e Obama jogaram nas costas dos sauditas e do resto dos árabes sunitas, como vizinho?

O Hezbollah corre o risco de ganhar o que os libaneses chamam de “nariz comprido demais”. Em outras palavras, se o nariz do Hezbollah crescer demais, alguém aparecerá para cortá-lo de vez.

Uma coisa é Nasrallah e suas armas – aliados ao cavalheiro de Teerã – cuspir nos EUA. Mas a ONU é corpo internacional legítimo; instituição à qual recorrem – embora praticamente sem esperança alguma – os pobres e oprimidos do mundo.

Só há um caso no qual o Hezbollah respeita e repete religiosamente – ou quase religiosamente – toda e qualquer Resolução da ONU: quando atingem Israel ou, por remotamente que seja, quando criticam Israel.

E Ban? Será que cogita de destruir o Hezbollah? Ban sabe muito bem que, embora o Hezbollah tenha “nariz grande demais”, o Hezbollah controla a ONU, digamos assim, prendendo-a pelos colhões (sempre supondo, é claro, que a ONU tenha colhões).

Fato é que há 13 mil soldados da ONU ao longo da fronteira libanesa, inclusive unidades blindadas da OTAN, da França, Alemanha e Bélgica – e da China, já que se falou em blindados – com um bando de generais da OTAN no comando. Lá estão com a missão de manter as armas do Hezbollah fora da área entre o rio Litani e a fronteira. Mas pela primeira vez, semana passada, o comando da ONU admitiu que, sem autorização para invadir residências civis (para isso – não riam! – as forças da ONU precisariam de autorização do exército libanês) – a ONU não pode garantir que não haja armas do Hezbollah na área que lhe cabe vigiar.

Isso nos leva de volta a grave incidente ocorrido no início do ano, quando vasto depósito de armas explodiu a leste de Tiro. Um destrambelhado coronel francês da ONU –  que felizmente já foi devolvido a Paris – ordenou que soldados franceses e alemães continuassem a arrombar portas à procura de armas. Foi advertido por oficiais da inteligência libanesa, para que não insultasse civis. Não tomou conhecimento da advertência.

Pouco depois, soldados franceses da ONU que patrulhavam o sul do Líbano foram apedrejados. O Hezbollah declarou que a explosão ocorrera num velho depósito de munição deixada para trás pelo exército de Israel na retirada, em 2006. (Aqui, se pode gargalhar).

Os israelenses, depois dessa, intrometeram-se no caso e exibiram fotos aéreas – feitas por um avião-robô, principal arma da próxima guerra Hezbollah-Israel –, alegando que as fotos mostravam um míssil sendo transportado na traseira de um caminhão na mesma cidade, ação acompanhada por três pistoleiros armados do Hezbollah. Rápido como raio, o Hezbollah exibiu uma fita de vídeo, na qual se via o mesmo caminhão. Mas o “míssil” não passava de uma porta de aço, de garagem, de enrolar, enferrujada e – desgraçadamente, para Israel – os três “pistoleiros” foram claramente identificados como soldados do batalhão francês da ONU.

Agora, semana passada, mais humilhação para a ONU, quando um grupo de mães de família desarmadas, do Hezbollah, roubaram uma pasta com documentos secretos de dois infelizes investigadores do Tribunal da ONU que tentavam roubar registros de telefonemas numa clínica ginecológica no sul de Beirute.

Nem os mais ferrenhos opositores de Nasrallah e apoiadores do governo, em Beirute, conseguiram segurar o riso, quando o Hezbollah pôs a desfilar pelas ruas dois burricos, cada um levando pendurada no pescoço peludo uma perfeita réplica do escudo azul da ONU. Pode-se rir, mas com cuidado. No mundo árabe, o burrico é considerado o mais inferior dos animais, dos que se pode executar sem temer castigo. Portanto, a ONU que se cuide.

Quanto aos israelenses, tanto esbravejaram sobre “o terror mundial” quanto Nasrallah esbraveja sobre “a desgraça que descerá sobre Israel”. Dessa vez, foi o chefe da inteligência do exército israelense Amos Yaldin – que ninguém no Líbano considera o mais inteligente dos homens – quem disse, em reunião da Comissão de Assuntos Externos do parlamento israelense em Jerusalém que o Hezbollah pode assumir o controle militar do Líbano “em poucas horas”.

As defesas israelenses têm sido consistentemente minadas pelos mísseis do Hezbollah, disse ele. E o conflito torna-se cada dia mais iminente – nessa parte, acertou –, mas daí em diante, entrou no modo apocalíptico, exatamente como todos os outros generais israelenses que muito lastimaram terem-se aproximado de território libanês.

A próxima guerra, disse Amos Yaldin, será muitíssimo mais devastadora que a anterior no Líbano – o que é difícil imaginar! – “e não será em nada semelhante a coisa alguma das que nos habituamos a ver na 2ª Guerra do Líbano ou na [operação] Cast Lead (em Gaza).”

Aí há alguma coisa muito estranha, porque a 3ª Guerra do Líbano – que Yaldin previu semana passada – já aconteceu em 1993: bombardeio massivo, que matou mais de um milhão de pessoas no sul do Líbano.

A primeira guerra Israel-Lebanon foi a invasão de 1978 – Operação Litani, que Yaldin evidentemente esqueceu. – Depois, houve a segunda guerra do Líbano em 1982 (Operação Paz para a Galileia), que Yaldin estranhamente conta como se fosse a primeira.

Depois houve o conflito de 1993; depois, a guerra de 1996 (Operação Vinhas da Ira) e então, em 2006 a guerra de Israel contra o Hezbollah. Assim sendo, a próxima guerra – depois de cinco fracassos israelenses – será a sexta tentativa de Israel, contra o Líbano.

E o que significa tudo isso?

Bem, o que se vê é um horizonte no qual vários poderes estrangeiros tentam intervir no Líbano, exatamente como fizeram durante a terrível guerra civil de 1975-90.

Washington aposta suas fichas no Tribunal da ONU, exatamente como faz a França – e os britânicos, cujos diplomatas conversam com o Hezbollah, e discreta e sabiamente tentam saber se não há meio para adiar a formalização das acusações e os julgamentos –, enquanto sírios e iranianos operam para amplificar a crise da ONU.

Os israelenses, como sempre, ameaçam com neo-semi-Armageddon.

Os sauditas, que apóiam os sunitas – Hariri tem passaporte saudita –, têm tentado mediar.

E nos fundos, estão os sírios. Há uma semana, o embaixador da Síria no Líbano Ali Abdul-Karim Ali reuniu num almoço o embaixador saudita Ali Awad al-Assiri e seu equivalente na embaixada iraniana, Ghadanfar Rokon Abadi, experiente conhecedor de Beirute, que estava aqui na guerra de 1996. É sinal muito claro de que as nações muçulmanas na região não estão particularmente ansiosas por uma guerra civil.

E quanto aos libaneses comuns? Meu motorista Abed, barômetro excelente para indicar o rumo dos humores nativos, colara um pequeno adesivo no espelho do carro. “Haqiqa”, disse-me ele. A Verdade. Esperava, ansiosa e sinceramente, que o Tribunal da ONU revelasse a verdade sobre quem matou Hariri. Na minha ausência, durante o verão, com grande tristeza, Abed desistiu: removeu o adesivo.

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