domingo, 4 de março de 2012

Anonymous e os Antinomistas [1]


21/1/2012, Dan McQuillan, Media and Social Change
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Dan McQuillan
Como entender as implicações políticas dos Anonymous? Como explicar a “atmosfera de contestação” mediada por computador, que liga a Primavera Árabe e o movimento Occupy global? Sugiro aqui um exame da história esquecida dos movimentos antinomistas, sobretudo dos radicais da Guerra Civil Inglesa.

Os próprios Anonymous resistem a qualquer definição fácil; é um nome, invocado para coordenar e (des) identificar um conjunto de ações frouxamente conectadas entre elas. É um meme, uma cultura, um modo de organização online – uma máscara mal aderida a rostos que, sim, como se sabe, inclui um conjunto de hackers excepcionalmente competentes. Nunca foi fácil identificar um antinomista – é quem “prega que, se o Evangelho traz a palavra da graça, a lei moral não obriga ninguém, porque basta a fé para assegurar a salvação”; e “antinomista é aquele que rejeita qualquer moralidade socialmente estabelecida”.

LulzSec & os Ranters

Os Ranters foram antinomistas ativos entre 1640 e 1660, tempo de torvelinho e revolução na Inglaterra. A volta deles hoje parece bem claramente sinalizada: a retórica do LulzSec, alguma espécie de subdivisão dos Anonymous, é bem clara versão à moda dos hackers dos panfletos de Abiezer Coppe [2],

LulzSec
De LuzSec:

“Somos Lulz Security, e esse é nosso comunicado final, porque hoje é data significativa para nós. Há 50 dias, abrimos velas de nosso humilde barco, rumo a um oceano difícil, brutal: a Internet. A máquina de ódio, a máquina do amor, a máquina movida por muitas máquinas. Somos parte dela, para fazê-la crescer, e deixar que ela cresça dentro de nós”. [3]

E de Coppe:

“E o mar, a terra, sim, agora tudo se torna possível. E as coisas que foram, são e algum dia serão visíveis... Mas cuidado, cuidado! Ele ergue-se hoje com uma testemunha, para salvar Sion com vingança, ou para confundir e arrastar todas as coisas na direção delas mesmas”. [4]

Reavaliar o 4chan

Avaliar conexões profundas entre a dissidência digital e o antinominismo implica examinar as raízes dos Anonymous no 4chan e no portal /b/ (o painel “random”) [5]. /b/ é marcado por imagens escuras e chocantes, carregado de piadas internas, cujos membros autodesignam-se como “/b/tards” [6 ].

“À primeira vista, /b/ parece caótico e ofensivo. E é, em certo sentido. Em termos da antropologia de Turner, pode-se ver /b/ como espaço limítrofe em que se cumpre um ritual de iniciação sempre em modificação” [7]. “Não tem qualquer “política de regras” e exibe a floreada rejeição de todas as convenções de um antinomismo que já coloria os Anonymous, enquanto iam evoluindo do 4chan para o ativismo”. (Gabriella Coleman, “Anonymous: Indiscutivelmente discutível...”) [8]

Pode-se assim entender o compromisso fundacional dos Anonymous com a livre manifestação do pensamento (como disse um Anon: “a livre manifestação de ideias não é negociável” [9]) não como liberalismo adolescente geekliberalism, nem como antiestatismo, mas como a robustez que houve antes dessas modernas categorias políticas, livre manifestação de pensamento como se viu nos Ranters, Levellers [10] e Diggers [11]. O laço histórico entre essa forma de livre discurso e a luta contra todas as tiranias permite entender melhor, como menos surpreendente, a OpTunisia [12], quando os Anonymous, repentinamente, saltaram, do hackerativismo online, para o mundo difícil da política disputada nas ruas, e para a luta para derrubar a ditadura na Tunísia.


Commons & heresia

Os Anonymous foram um elo direto entre a Primavera Árabe e o movimento Occupy global, com presença visível nos acampamentos e protestos, tanto quanto online. Mas são apenas uma parte de uma pluralidade de correntes que fazem eco aos Dissenters [aprox. “dissidentes”] ingleses do Interregnum  [13]. Quem primeiro “ocupou” a Colina de St. George, em 1649, foram os Diggers, em nome de “fazer da terra um tesouro comum de todos” [14]; e foram os Levellers que pela primeira vez falaram, nos debates de Putney, exigindo transparência democrática e financeira dos governos; exigências que se ouvem também no discurso do movimento Occupy.

Até a tensão que hoje se vê entre diferentes correntes da cultura digital tem paralelos nas lutas dos anos 1640s. As discussões entre Gerard Winstanley, porta-voz dos Diggers, e os Ranters (para Winstalnley, os “princípios dos Ranters[15] denotavam falta geral de valores morais [no Brasil, fala-se da falta de uma tal de “ética na política”, que ninguém sabe o que significa (NTs)] e de moderação no usufruto dos prazeres mundanos – discussões que se veem também entre os Creative Commons e os hackerativistas.

Como se viu no antinomismo, qualquer movimento que se sirva hoje das ferramentas da computação e na internet tenderiam sempre à heresia aos olhos do Establishment (ver a transcrição da palestra de Cory Doctorow “The Coming War on General Computation” [16]). Essa moderna heresia aparece praticada nas atividades de hacking – “o desafio intelectual de superar, criativamente, limitações em geral” e “tática para transformar elementos pre-existentes, para evocar significados não originalmente previstos na matéria prima” [17]. Como diz Otto von Busch em Abstract Hacktivism:

Hacking e heresia podem ser vistos como duas práticas de reinterpretação distribuída de sistemas e protocolos políticos, especialmente em relação a sistemas de redes orgânicas nos quais o hacker (o herege) reivindica o direito de ser coautor e coprogramador”. [18]

Los Indignados
(Puerta del Sol - Madri)
Los Indignados


O pequeno grupo que iniciou o catalítico acampamento pre-Occupy em Madrid em maio de 2011 incluía vários hackers. Naquele momento se misturaram os hacker ativismos técnicos e abstratos:

“Nas primeiras horas da madrugada de 16 de maio, aconteceu algo inesperado. Um grupo de cerca de 40 manifestantes decidiram montar acampamento na praça central de Madrid, Puerta del Sol, em vez de voltar para casa. Um deles, do grupo hacker Isaac Hacksimov, explicou mais tarde: ‘Só fizemos um gesto, que quebrou o bloqueio mental coletivo’. Temendo que as autoridades os expulsassem da praça, distribuíram mensagens pela internet, pedindo apoio. O primeiro a chegar para juntar-se a eles soubera do acampamento pelo Twitter”. [19]

Tomados em conjunto, esses desenvolvimentos tornaram-se típicos do momento e generalizaram-se, ao erguer a cortina que ocultava formas sociais esquecidas, deixadas do lado de fora do quadro da globalização capitalista. Comentando a dinâmica fluida da nova política, a Virtual Policy Network estabelece um laço bem claro com movimentos da era pré-industrial:

“Uma nova política emergiu das facilidades que a internet oferece, e movimentos ágeis estão continuamente emergindo do fluxo subjacente de atos de micropolítica (...). Se se examinam por dentro esses movimentos, vê-se complexidade e pode-se detectar um núcleo de comportamentos humanos pré-industriais mediados através de uma sociedade global digitalmente interconectada”. [20]

O Exodus

Por tudo isso, o que se deve esperar de uma atmosfera antonomista de dissidência que sopra através da internet e condensa-se nas ruas e praças? Se nossos English Dissenters podem oferecer alguma orientação, haverá nos novos movimentos inovação baseada nos commons. Como Charlie Leadbeater destaca em Digging for the Future,

“... os Levellers queriam aumentar a produção de alimentos mediante a propriedade coletiva e o uso coletivo da terra, que permitiria que se implantassem novas tecnologias”; e acreditavam que “aquele conhecimento, inclusive da palavra de Deus, surgiria de dentro para fora, sem ter de ser metido goela abaixo pelos padres. Uma comunidade cooperativa produtiva criaria e partilharia conhecimento, em vez de ser governada pelo dogma do saber de uma pequena elite”. [21]

Como Nicolas Mendoza conclui sobre 4chan & Wikileaks:

“Em vez de resultar de uma violenta luta de classes para pôr fim à hegemonia capitalista, talvez seja o resultado de um lento processo de migração, possibilitado pela internet, um ‘gotejar’ (usando mais uma vez o logotipo de WikiLeaks e a metáfora do vazemento, do gotejar) na direção de sociedades que se organizam em torno de commons”. [22]. 

Não seria a primeira vez que se veria um êxodo. Como David Graeber destaca em Fragments of an Anarchist Anthropology  [23], há exemplos históricos de retirada, como há exemplos de sociedades que resistiram contra a hierarquia e a acumulação. Mesmo microexemplos como os Crop Mob [24] mostram que as ferramentas que a internet oferece podem garantir suaporte a modalidades pré-industriais de agricultura e a Foundation for P2P Alternatives cataloga incansavelmente, em todo o mundo, protótipos de alternativas peer-to-peer [entre usuários das redes], “uma dinâmica relacional na qual as pessoas trocam entre elas, não como indivíduos, mas mediante um commons (...) em escala global, possibilitado pelas tecnologias de internet”. [25]

Atmosferas antinomistas

Atualmente, nas ruas e praças tocadas por ventos digitias, há momentos liminares do tipo que o antropólogo John Postill acompanhou com os Indignados da Espanha:

“Muitos participantes relataram reações psicossomáticas, como arrepios e lágrimas de alegria. Sinto como se um interruptor tivesse sido acionado, uma cadeia de gestalt, e que despertei para uma  nova realidade política. Já não era mero observador participantes do movimento: eu era o movimento. Daquele momento em diante, virais como #takethesquare ou #Iam15M (#yosoy15M) adquiriram para mim – e para vários outros “convertidos” – um significado muito diferente: tornaram-se constitutivos do novo paradigma que agora organiza minha compreensão êmica [26] do movimento”. [27]

Gabriella (Biella) Coleman
Gabriella (Biella) Coleman identificou a ressonância dos Anonymous com as formas de rede horizontal e descentralizada, de consenso democrático não hierárquico [28], padrão que se reproduz bem claramente em Occupy. Mas em vez de focar na forma organizacional, podemos nos abrir para suas circulações, seus ecos, seus tempos e suas transmutações. Concentrando-nos nas texturas e densidades, podem-se ver os dois movimentos, Anonymous e Occupy, como crescimentos do que Kathleen Stewart descreve como uma atmosfera:

“Uma atmosfera não é um contexto inerte, mas um campo de força no qual as pessoas apercebem-se. Não é efeito de outras forças, mas um afeto vivido – uma capacidade para afetar e ser afetado que empurra um presente para uma composição, uma expressividade, o senso de potencialidade e evento. É um afinamento dos sentidos, dos trabalhos e imaginários para modos potenciais de viver nas coisas, ou de viver através das coisas. Um viver através que se mostra na precariedade gerativa das sensibilidades comuns de não saber o que nos agita, não ser capaz de ficar parado, sentir-se exaurido, sentir que se ficou para trás ou que se está muito além da curva, sentir-se enamorado de alguma forma de vida que surge, estar prontos para que algo – qualquer coisa – aconteça”. [29]

Os sempre ativados antecedentes dos Ranters foram as ideias da Confraria do Espírito Livre [orig. Brethren of the Free Spirit] [30], uma heresia antinomiana e igualitarista que se propagou pela Europa nos séculos 13 e 14, que desafiou todos os poderes políticos e sobreviveu a grandes ondas de repressão. Ao propor paralelos entre os antinomistas de 1649 e o espírito dos Anonymous, sugiro, talvez, a emergência de uma Confraria da Internet Livre.

Ver também 
Keiser Report: D.I.C.s and Hackers (E257)”, Russia Today (entrevista)





Notas dos tradutores

[1] Antinomismo (termo cunhado por Lutero, do grego anti [contra] + nomós [lei]) é a corrente de ideias que afirma que, dado que o evangelho é portador da graça, a lei moral é inútil e não obriga ninguém, porque, para alcançar a salvação, basta a fé. Embora o conceito esteja relacionado à crença fundacional do Protestantismo da Sola Fide [ap. “só a fé”] que se autojustifica exclusivamente pela fé em Cristo, os antinomistas levaram ao extremo esse conceito, visto ainda hoje por alguns como a noção de que a obediência a um código religioso assegura a salvação. Para os cristãos, o antinomismo é considerado heresia, embora a discussão jamais tenha sido oficialmente encerrada. O termo “antinomista” começou a circular logo depois da Reforma Protestante (c.1517), usado principalmente em sentido pejorativo contra seitas e pensadores cristãos. Lutero, por exemplo, pregava que a fé se autojustifica, mas, mesmo assim, sempre se opôs ao antinomismo (p. ex., em Against the Antinomians, 1539). Hoje, poucos grupos e seitas religiosas, exceto cristãos e judeus anarquistas, apresentam-se como “antinomistas”.  
[2] Abiezer Coppe (1619-72). Pregador Batista, muito ativo durante as Guerras Civis Inglesas. Em 1647, Coppe viveu uma “iluminação espiritual”: depois de quatro dias em transe, acordou convencido de ter sido transformado em “filho de Deus”, ao qual já não se aplicavam as convenções sociais. Certo de que, com o Apocalipse já próximo, tornavam-se irrelevantes as velhas noções de pecado, reuniu à sua volta vários seguidores, que, com “suas práticas lascivas de beber, blasfemar e frequentar prostíbulos”, logo alarmaram os Puritanos, entre os quais o pastor Richard Baxter. Coppe também foi denunciado pela prática da nudez, do adultério e da poligamia. 

[3]  ‘50 Days of Lulz’ by LulzSec, 2011, em http://pastebin.com/1znEGmHa

[4]  A Fiery Flying Roll, Abiezer Coppe, Londres, 1650, em:



[7] 31/12/2011, “I don’t speak on behalf of…” Agile Movements, Fluid Politics and the new Democratic Bargain”, em: http://www.virtualpolicy.net/agilemovementsfluidpolitics.html.



[10]  Os Levellers [lit. “niveladores”] eram grupos ingleses que reivindicavam, entre outras coisas, o voto universal masculino, a sociedade de pequenos proprietários e a defesa da igualdade de propriedade (não-coletivista). Mesmo depois de servirem de apoio para executar Carlos I, durante as Guerras Civis Inglesas, foram duramente reprimidos por Oliver Cromwell em sua "república", a partir de 1653.

[11]  Os Diggers [lit. “escavadores”] foram um movimento de trabalhadores rurais pobres, liderado por Gerrard Winstanley, ativos entre 1649 e 1650 na Inglaterra, e que pretendiam substituir a ordem feudal, recentemente derrotada na Guerra Civil Inglesa, por uma sociedade socialista, agrária e cristã anticlerical. Tb se denominavam osTrue Levellers [lit. “Niveladores Verdadeiros”],  por pretender levar a igualdade política proposta pelos Levellers (nota 10) também à esfera econômica [mais em HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça. São Paulo: Cia das Letras, 1987].















[26] É expressão que os linguistas usam muito. Apareceu pela primeira vez em artigo do linguista norte-americano Kenneth L. Pike, que falou de “fonêmica”, para designar os saberes reunidos no campo do estudo dos fonemas, quando esses conhecimentos apenas começavam a ser construídos. A frase “minha compreensão êmica do movimento”, deve ser interpretada como “compreensão do movimento a partir de saberes reunidos no próprio movimento”.



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