6/6/2010, Ilan Pappé, The Independent,
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No comando dos sistemas político e militar de Israel há dois homens, Ehud Barak e Benjamin Netanyahu, que estão por trás do brutal ataque à Flotilha de Gaza que chocou o mundo e que está sendo apresentado ao público israelense como simples ato de autodefesa.
Apesar de ambos terem nascido um na esquerda (Barak, ministro da Defesa, é do Partido Labour) e o outro na direita (Netanyahu, primeiro-ministro, é do Partido Likkud) da política de Israel, o que pensam sobre Gaza em geral, e sobre a Flotilha em particular, é construído a partir de uma mesma história e de idênticas visões de mundo.
Ehud Barak foi oficial comandante de Benjamin Netanyahu no equivalente israelense da SAS britânica, grupos especiais da Força Aérea, entidade da inteligência. Mais precisamente, ambos serviram em unidade semelhante à que foi enviada para interceptar o barco turco, semana passada. Ambos veem exatamente do mesmo modo a realidade da Faixa de Gaza, como outros grandes da elite militar e política israelense – e essa mesma visão de mundo coincide, também, com o que vê e pensa o eleitorado israelense.
Se eles assim veem, assim é. O Hamás, apesar de ser o único governo eleito democraticamente, de fato, pelo povo, em todo o mundo árabe, tem de ser eliminado, como força política e como força militar. Não apenas porque o Hamás continua a resistir depois de 40 anos de ocupação israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, lançando rojões de fabricação caseira contra o território de Israel – quase sempre como retaliação a ataques de Israel contra seus ativistas na Cisjordânia. Mas, sim, sobretudo, porque o Hamás faz oposição política ao tipo de “paz” que Israel quem impor aos palestinos.
É paz imposta e não negociada nem negociável, no que tenha a ver com a elite política israelense; e oferece aos palestinos controle limitado da soberania na Faixa de Gaza e
Assim, o pensamento oficial em Israel conclui que o Hamás é obstáculo importante à imposição daquela “paz”. Consequentemente, a estratégica declarada de Israel torna-se ainda mais clara: matar de fome e obrigar à total submissão os 1,5 milhão de palestinos que vivem na área mais densamente povoada do planeta.
O bloqueio imposto em 2006 deveria ter induzido os gazenses a derrubar o atual governo palestino por outro, que aceitasse a supremacia de Israel – ou que, pelo menos, fosse comandado pela sonâmbula Autoridade Palestina na Cisjordânia. Ao longo do processo, o Hamás capturou um soldado israelense, Gilad Shalit; o bloqueio fechou-se ainda mais, como resposta e vingança. Passou a incluir praticamente todos os itens mais corriqueiros, sem os quais os seres humanos mal conseguem sobreviver. No que tenha a ver com falta de alimentos e remédios, falta de cimento e gasolina, o povo de Gaza vive em condições que organismos e agências internacionais já descreveram como catastróficas e criminosas.
Como no caso da Flotilha, há modos alternativos para libertar o soldado que continua preso, como, dentre outras, uma troca, por Shalit, dos milhares de prisioneiros políticos que vivem, sem julgamento, nas prisões israelenses. Há crianças entre eles. Os israelenses abortaram todas as negociações que envolvessem troca de prisioneiros e não se espera que as negociações recomecem em futuro próximo.
Barak e Netanyahu, e os que os cercam, sabem muito bem que o bloqueio de Gaza não mudará em nada o apoio de que goza o Hamás. Se faltasse quem repetisse isso, ainda essa semana o primeiro-ministro britânico David Cameron disse que, na sua opinião, as políticas israelenses reforçam, não enfraquecem, o controle do Hamás em Gaza. Mas a estratégia do bloqueio, apesar do que dizem os israelenses, não visa a algum sucesso desse tipo ou, pelo menos, ninguém se preocupa com o bloqueio dar ou não dar frutos.
Qualquer pessoa de bom senso suporia que o drástico declínio da reputação de Israel ante a opinião pública internacional levaria os líderes a reavaliar posições. As respostas ao ataque à flotilha nos últimos dias indicam que não aconteceu nem há esperança de que aconteça qualquer mudança nas posições oficiais do governo israelense. Declarações contundentes de que o bloqueio prossegue e recepção de heróis aos soldados que piratearam um navio turco no Mediterrâneo mostram que a mesma política continuará por ainda longo tempo.
E nem poderia ser diferente. O governo Barak-Netanyahu-Avigdor Lieberman não conhece outro modo de responder à realidade na Palestina e em Israel. Só conhece, como recurso, a força bruta, para impor o que bem entendam; e operam descomunal máquina de propaganda, que descreve a força bruta como legítima defesa, ao mesmo tempo em que demoniza os gazenses semimortos de fome, e diz “terroristas” os que acorram
O que conta, ao contrário da estratégia declarada de Israel, é que tudo continue exatamente como está. A comunidade internacional é complacente; o mundo árabe é impotente; e Gaza está sob controle. Enquanto tudo continuar como hoje, Israel deixa correr sua economia em crescimento. Os eleitores israelenses, que veem como normal o domínio do exército em todos os aspectos da vida, veem a opressão dos palestinos como única realidade da vida passada, presente e futura, em Israel.
O vice-presidente dos EUA Joe Biden foi humilhado pelo governo de Israel recentemente, quando o governo anunciou a construção de mais 1.600 novas casas exclusivas para judeus israelenses no disputado distrito de Ramat Shlomo de Jerusalém, no dia em que Biden chegava para tentar fazer parar a política das construções nos territórios ocupados. As declarações de Biden, essa semana, de incondicional apoio ao ataque israelense à Flotilha, têm sabor da vingança para os políticos e os eleitores em Israel.
Mas erra quem supuser que o apoio dos EUA e a fraca reação dos europeus às políticas criminosas de Israel, como a que sitia Gaza, seriam as principais explicações para por que Israel mantém o bloqueio e a estrangulação de Gaza.
A parte provavelmente mais difícil de explicar aos leitores é o quanto essas percepções e atitudes lançaram raízes profundas na psiquê e na mentalidade dos israelenses. E, sim, é difícil entender o quanto os mesmos fatos disparam reações diametralmente opostas na sociedade israelense e, por exemplo, no homem comum na Grã-Bretanha.
A resposta de homens e mulheres em todo o mundo parte do pressuposto de eventuais futuras concessões aos palestinos e diálogo continuado com a elite política israelense produzirão nova realidade em campo. O discurso oficial no ocidente pressupõe que haja solução à vista e alcançável, se todos os lados se reunirem em torno de um esforço final rumo à Solução dos Dois Estados.
Nada poderia estar mais distante da realidade, que esse cenário otimista. A única versão dessa solução que seria aceitável para Israel é totalmente inaceitável pelos palestinos, sejam os domesticados líderes da Autoridade Palestina em Ramallah, seja o Hamás, mais assertivo. A única proposta que Israel consideraria é emprisionar os palestinos, sem Estado algum, em enclaves. Em troca, os palestinos desistiriam da resistência.
Assim, antes de sequer poder considerar seja uma solução alternativa – um só estado democrático para todos, ideia que apoio –, ou explorar algum acordo mais plausível com vistas a dois Estados, seria preciso transformar fundamentalmente a mentalidade oficial e pública dos israelenses. Aquela mentalidade é a principal barreira a qualquer reconciliação pacífica nas dilaceradas terras de Israel e Palestina.
O artigo original, em inglês, está em: The deadly closing of the Israeli mind