Pepe Escobar |
3/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Soa como pastiche de conto escrito pelo falecido, grande egípcio que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1988, Naguib Mahfouz. O presidente dos EUA Barack Obama enviou um emissário “secreto” para dizer ao presidente Hosni Mubarak que se abstenha de candidatar-se ao sexto mandato nas próximas eleições – no mesmo dia em que quase dois milhões de pessoas gritam nas ruas, nada mais nada menos, que "Mubarak, vá-se para sempre". O presidente do Egito então, obedientemente, vai à sua televisão estatal e anuncia exatamente o que o presidente mandou-o anunciar.
Como era de esperar, a rua explodiu em fúria. A rede Al-Jazeera (sim, a revolução será televisionada...) limitou-se a dividir a tela, sem comentários, deixando ao fundo o som da rua no Cairo e Alexandria, para que o mundo ouvisse. “Vá-se!”. “Vá-se, mostre alguma dignidade”. “Caia fora!” Assim, agora é oficial: trata-se de dignidade, orgulho e respeito – valores muito prezados na cultura árabe – de Mubarak, contra a dignidade, o orgulho e o respeito de 80 milhões de egípcios.
Crianças brincando sobre veículos blindados ontem na Praça Liberdade no Cairo |
Chame de golpe da Casa Branca a favor da palavra de ordem do momento – “transição ordeira”. Como Obama aparecendo na TV global depois de Mubarak para repetir a mensagem que recebeu do mensageiro “O que está claro, como eu indiquei hoje ao presidente Mubarak, é minha crença de que a transição ordeira deve ser significativa, deve ser pacífica e deve começar agora.”
Ora, ora, como Mubarak preferiu divulgar, o que está claro é “o caos” (manifestantes manipulados por forças políticas) contra “a estabilidade” (o próprio Mubarak e seu regime). Alguma coisa sumiu, perdida na tradução. Quem explicará a Mubarak o significado da palavra “agora”?
O agente secreto
O “mensageiro” de Obama na mais recente pantomima de Mubarak foi Frank Wisner, ex-diplomata e ex-executivo da AIG, íntimo da oligarquia do governo Mubarak, e cujo irmão Graham representava seus vastos interesses comerciais. Wisner tem operado ultimamente como lobbyst do regime de Mubarak nos contatos com especialistas em Oriente Médio em Washington – diferente, por exemplo, do Egypt Working Group bipartidário, liderado por Elliott Abrams, ex-membro do Conselho de Segurança Nacional, e Michele Dunne, do Carnegie Endowment. Sem nem traço de ironia, como se fosse coisa séria, o Departamento de Estado anunciou que Wisner pressionaria o sistema de Mubarak para que “abraçasse amplas mudanças econômicas e políticas” – exatamente as mesmas que ele jamais abraçou nos últimos 30 anos.
Quer dizer que o ditador recusou-se a fugir como o Xá do Irã fugiu na revolução em 1979. Compare-se a cena com uma Praça Tahrir no Cairo que faça um julgamento simulado de Mubarak e o condene à morte por enforcamento. Ou a praça, cantando “Oh Mubarak, covarde. Oh, agente dos americanos” – em árabe, rima.
Segundo Intrade, agência irlandesa de apostas especializada em riscos políticos, 73,5% dos analistas acreditam que Mubarak estará fora do Egito até o final do mês. Pode ser uma eternidade para a rua egípcia – que começa a farejar a presença por ali de vários ratos muito suspeitos.
Mohamed El Baradei, Prêmio Nobel da Paz em 2005 e ex-presidente da Agência Internacional de Energia está sendo apresentado por todas as redes de mídia-empresa como o próximo homem. Egípcios-americanos obscuros estão sendo escaneados como possíveis membros de um comitê de sábios que governaria durante a transição pós-Mubarak.
Pode-se dizer que o aspecto mais entusiasmante da revolução egípcia é que não há grupo de poder tentando derrubar algum grupo rival. A rua, no momento, não está apontando para ninguém. E lBaradei talvez seja escolha popular, mas estritamente como líder de transição, para por nos trilhos o país que está paralisado e criar sistema transparente para eleições livres e limpas.
Plano A, no qual a multidão opera – e ponto não negociável – é que Mubarak saia imediatamente – não no final do ano, como ele prometeu – com toda a gangue que está no governo e, depois, um período de transição comandado por El Baradei.
Plano B – possibilidade ainda não totalmente descartada – é o exército livrar-se de Mubarak num golpe de Estado autorizado pelo povo. O exército instala um governo militar de transição e marca data para eleições parlamentares e presidencial. Seria uma espécie de gambito “turco” (foi o que o exército turco já fez, há anos). Seria excelente para a imagem popular do exército.
E outra vez como o exército turco, o exército egípcio vê-se também como guardião da nação. Todos os presidentes egípcios desde que a revolta dos coronéis em 1952 despachou o rei Faruk foram militares: generais Mohammed Naguib, Anwar Sadat e Mubarak, e o coronel Gamal Abdel Nasser.
O Egito é isso: tudo tem a ver com o exército, a instituição mais respeitada – pressuposta a menos corrupta – do país, a que mais se aproxima, na imaginação dos cidadãos, de estado de direito, que em parte reflete a dinâmica social e a diversidade geográfica do país. Mas o exército também produziu os oficiais mais bárbaros do Mukhabarat – os serviços de inteligência.
Pelo menos um milhão de pessoas reunidas ontem na Praça Liberdade (Tahrir) no Cairo |
No pé em que estão as coisas, pode haver razões para crer que esteja acontecendo uma divisão interna no establishment militar. Basta analisar os quatro principais personagens do drama:
Tenente-general Omar Suleiman, chefe da inteligência militar, “suave torturador” a serviço de Mubarak e que foi nomeado vice-presidente. É homem de saúde precaríssima. Em nenhum caso a rua o engolirá como reformador “democrático”.
Marechal do Ar Ahmed Shafiq, ministro da Aviação Civil, agora designado primeiro-ministro. Como Mubarak, é homem da Força Aérea, autoproclamada elite relativa. Zero de carisma popular.
Tenente general Sami Annan, comandante do estado-maior do exército. Comanda 468 mil soldados, misto de oficiais de carreira e oceanos de soldados alistados. É o ramo que mais se aproxima da rua egípcia. Vêm daí as declarações de que o exército não atirará contra o povo nas ruas.
Marechal de campo Mohammed Hussein Tantawi, ministro da defesa. Comanda 60 mil Guardas Republicanos. Querido do Pentágono. Na 3ª-feira, recebeu longo telefonema de Robert “O Supremo” Gates do Pentágono e secretário da Defesa dos EUA.
É razoável supor que a prioridade, para Annan, até agora, tenha sido preservar a relativamente boa imagem de seu grupo. Isso implicaria que, para ele, o destino da gangue de Mubarak seria questão secundária. O que o interessa é preservar a instituição do exército.
Ainda que só no momento, Suleiman é o homem mais poderoso do que já é uma junta militar de facto. Tem o apoio de uma elite militar, de toda a máquina de repressão, e de uma elite governante vacilante, apavorada (os que ainda não fugiram para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos). Embora remota, há ainda a possibilidade de que esses quatro principais atores cheguem à conclusão de que o chefe tem de partir, para que consigam salvar o regime.
O que ainda não se pode ver com clareza é o nó compacto que permite a uma ditadura controlar o poder: o laço de aço que une o exército e a máquina da repressão, a submissão sem reservas ao ditador, e a nenhuma dificuldade para atirar contra o próprio povo. Isso foi o que se viu em ação no Irã no verão de 2009; e a revolução verde foi esmagada.
Aqueles quatro comandantes podem também estar perdendo minutos de sono pensando no destino dos generais iranianos depois da queda do xá; fizeram um acordo com o Grande Aiatolá Ruhollah Khomeini, que depois foi esquecido; e os generais foram perseguidos, e Khomeini até criou seu próprio exército, o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos. É possível que estejam pensando também sobre o exército turco – o qual, hoje, sob o governo de inspiração islâmica do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, é impedido de influenciar os ventos políticos na Turquia e o lado para o qual devem soprar.
A janela ainda está aberta para Annan, tanto quanto para Suleiman, Shafiq e Tantawi, se concluírem que o melhor para o exército será manter uma posição moral e o relacionamento privilegiado com o Pentágono, e derrubar o Faraó e, assim, manter o papel de atores-chaves para modelar um Egito pós-revolução.
Assim abrimos outra caixa de vermes. Nas últimas três décadas, o exército promoveu um virtual pogrom de islâmicos. Não se sabe, por hora, se os altos comandantes resignar-se-ão à função de parceiros da Fraternidade Muçulmana, em parceria política.
A diferença crucial é que o exército defende e a Fraternidade Muçulmana é contra os acordos de paz de Camp David com Israel – e o exército com certeza não quer outra guerra do Oriente Médio. Mas será que respeitarão a decisão de um referendo popular que, praticamente com certeza, decidirá pela revogação dos acordos?
Enquanto isso, a elite militar parece ser a única arma capaz de ensinar a Mubarak o significado da palavra “agora”. Até Abu Omar, um ex imã em Milão, Itália, acusado de terrorismo pela CIA-EUA, sequestrado, “retirado” do Egito e que depois voltou (vive hoje em Alexandria) acredita que “A única solução realista para o país no momento, é os militares tomarem o poder”. Agora.
Nota de tradução
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