quinta-feira, 24 de junho de 2010

"Obsequium amicos, veritas odium parit" (A condescendência gera amigos, a verdade gera o ódio)

A.P.Santos

Uma das mazelas brasileiras é a complacência. E a pior forma é a que leva algumas pessoas a serem excessivamente tolerantes com os seus próprios erros, ou seja, a auto-complacência.

O Brasil está cheio de “coitadinhos”, que se julgam injustiçados e acham que merecem algum tipo de proteção especial. Alguns se acham no direito de fazer coisas que nas demais pessoas seriam condenáveis, mas que, no caso deles, são perfeitamente justificáveis.

Freud, em seu texto “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho

psicanalítico” (1916), (2) cita Ricardo III (da peça de Shakespeare) como uma figura vinculada à circunstância de uma desvantagem congênita e que em função dessa deformidade cobra da vida uma reparação.

Acha-se, tal figura, no direito de desprezar escrúpulos e de fazer o mal, já que a ele o mal foi feito.

Freud falava em “desvantagem congênita” (que, no caso de Ricardo III, era uma deformidade física) mas penso que não seria descabido aqui substituir a expressão por “desvantagem de natureza econômica ou social”.

Naturalmente que, sendo o Brasil um país de injustiças, não descarto a idéia de que alguns grupos sociais sejam merecedores de reparações. Mas há que se levar em conta que muitos desses que se julgam “coitadinhos” e vivem buscando reparações de todo tipo (e, em particular, do Estado) em geral não querem levar em conta que são os principais responsáveis pela sua situação. E comportam-se, falaciosamente, como aquele indivíduo que, tendo sido levado às barras do tribunal por ter assassinado pai e mãe, teve a pretensão de sensibilizar juízes, jurados a advogados, alegando ser “um pobre órfão”.

Ninguém escolhe pai e mãe, nem dia, hora e local em que nasce. Sob esse aspecto alguns são mais afortunados do que outros, pois é grande a diferença de origem entre o filho de um milionário e o de um favelado. Assim como há entre quem nasce em Viena e quem nasce em Biafra.

Mas essas diferenças de origem não significam que quem é filho de gente pobre e favelada deva ser também eternamente pobre e favelado. Como não somos uma sociedade de castas as possibilidades de ascensão social sempre se apresentarão, desde que o indivíduo se disponha a ir à luta e superar os obstáculos.

A história de Machado de Assis, indiscutivelmente o maior escritor da Literatura Brasileira e um dos maiores da mundial, é bastante significativa. Tendo nascido em uma favela do Rio de Janeiro, alcançou a glória ainda em vida.

Alguém poderá dizer que as circunstâncias da vida do Machado de Assis foram excepcionais uma vez que o seu pai, que era pintor de paredes, gostava de se relacionar com gente de nível cultural e social mais alto do que o dele. E foi a gente assim que o pai do Machado deu o filho para batizar. E isso foi determinante em sua vida.

Vivendo muitas horas do dia nas casas da sua madrinha e do seu padrinho, tratando com pessoas gradas que as frequentavam, proprietários, burocratas, eclesiásticos, titulares, doutores, é certo, indiscutivelmente certo, que o Super-Ego de Machado de Assis não se formou em ambiente de tapera. O pai e a mãe influíram, sem dúvida, e muito – muitíssimo! – na lenta e segura elaboração desse Supremo Tribunal da Consciência. Mas os padrinhos também influíram em ambientes de riqueza e bom gosto. O pequeno dispersava-se por salas e jardins, sem impedimentos, sem a idéia nítida de que era pobre e tolerado. Não criou assim, dentro do coração, aquele ódio ao branco gerador do abolicionismo de José do Patrocínio e de Luiz Gama.”

(Machado de Assis e o hipopótamo, Gondin da Fonseca, Editora Fulgor, São Paulo, 1960, página 31).

Nem toda criança pobre teve padrinhos do nível dos que Machado teve, nem frequentou “ambientes de riqueza e bom gosto”. Mas vamos pensar o seguinte: Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908, ou seja, no início do século XX. Nós já estamos no século XXI e será que de lá para cá nada aprendemos? Quando iremos entender que não é a origem que importa, mas sim as influências que recebemos na vida e os ambientes que freqüentamos?

Exemplos não faltam. O famoso ator Anthony Quinn, quando garoto, vivia numa pobreza de dar dó. A mesa em que a família fazia as refeições era um caixote e a casa não tinha banheiro.

Ele chegou aos 19 anos trabalhando em empregos que lhe rendiam uns poucos trocados e sem nenhuma cultura. Mas teve a sorte de arranjar uma namorada cuja mãe gostava de livros, era bastante culta e reunia em sua casa amigos que conversavam com ela sobre coisas como literatura, teatro, cinema, filosofia, psicologia, artes, história e política.

O Quinn, quando ia à casa dela, visitar a namorada, ficava alheio às conversas porque não tinha a menor noção do que os demais presentes falavam. A dona da casa, percebendo o seu embaraço, ofereceu-lhe alguns livros para ele ler e ir aprendendo alguma coisa.

Quinn, que era pobre e inculto, mas não era estúpido, aceitou a oferta. E, a partir do momento em que começou a ler sua vida começou a mudar. Com o tempo começou a acalentar a idéia de ser arquiteto, notável progresso para quem já estava resignado a passar a vida exercendo tarefas simples e mal remuneradas. Ele jamais se formou em arquitetura, mas aquele desejo inicial o levou a trilhar caminhos que o levaram ao teatro e, posteriormente, ao cinema. Tornou-se um grande ator. Com o tempo ficou famoso e rico.

Aí alguém volta a me questionar dizendo que não é todo pobre e ignorante que arranja namorada cuja mãe tenha livros para lhe emprestar e que o incentive.

É fácil refutar esse questionamento, uma vez que hoje sabemos coisas que antes não sabíamos e o desenvolvimento tecnológico criou possibilidades que a nossa imaginação jamais poderia conceber.

Hoje não precisamos fazer um grande esforço de imaginação para ver a fantástica revolução provocada pela invenção da imprensa.

Antes da invenção do livro o acesso ao conhecimento era privilégio de poucos. O livro democratizou esse acesso.

Desse modo, se os lares de milhões de crianças brasileiras não oferecem estímulos ao desenvolvimento da capacidade cognoscitiva e da inteligência dessas crianças, salta aos olhos que os governos e a iniciativa privada tem que fazer alguma coisa.

Não precisamos fazer uma revolução comunista, como se fez na Rússia em 1917, para ter aqui instituições como o “Palácio dos Pioneiros”, para onde eram levadas crianças que revelassem talento em algum campo, para ter aulas com professores especializados, de modo a explorar ao máximo as suas potencialidades.

Em Cuba antigos casarões foram transformados em espaços culturais onde crianças iam praticar ginástica olímpica e balé, ao som de músicas executadas ao piano pelo grande Rubén Gonzáles, como se pode ver no excelente documentário “Buena Vista Social Club”. Não creio que tenhamos que trazer o Fidel (que já está velho e cansado) para implementar iniciativas como essa por aqui.

Escolas de tempo integral, bibliotecas bem equipadas, centros culturais e clubes de xadrez seriam os ambientes estimuladores da cultura e da inteligência das crianças. Professores e instrutores capacitados e motivados seriam os “padrinhos” que, pedagogicamente, as conduziriam nesses ambientes.

Com o tempo a biologia se encarregaria de liquidar com os “coitadinhos profissionais” de hoje e as novas condições do Brasil dificultariam o surgimento de outros.

Para os recalcitrantes, poder-se-ia aplicar a Constituição preconizada pelo historiador Capistrano de Abreu que, segundo ele, deveria ter um único artigo:

Artigo I – “Todo brasileiro está obrigado a ter vergonha na cara”.

Parágrafo único: “Revogam-se as disposições em contrário”.

Para encerrar, devo dizer que a sorte de muitos grandes homens que nasceram na pobreza é que não havia televisão no tempo deles ou, se havia, a família não tinha dinheiro para comprar uma. Com isso eles ficaram livres do que o sociólogo Betinho chamou de “a mais fantástica máquina de imbecilização jamais criada”.

Essa questão da televisão, que eu considero a mais nociva das drogas, porque parece inofensiva, é das mais preocupantes. O governo, que faz campanha a favor do uso da camisinha e contra o fumo, deveria fazer campanha contra o tempo excessivo que as nossas crianças ficam frente aos aparelhos de televisão. E não haveria nenhuma originalidade nessa iniciativa. O Obama fez o mesmo apelo no Congresso norte-americano. E há, nos Estados Unidos, campanha que tem por slogan “Desligue a TV, ligue-se na vida”.

É difícil a um político dizer certas coisas para o povo. Eles sabem, como o poeta Terêncio já sabia, que “A condescendência gera amigos, a verdade gera o ódio” (Obsequium amicos, veritas odium parit). Mas é preciso chamar a atenção dos pais e responsáveis pelas crianças para as suas responsabilidades em relação a elas. Uma criança imbuída de senso patriótico, de dever, com projeto de vida e feliz, tem menos chances de entrar no mundo das drogas (não existem drogados felizes, afirma um psicólogo francês).

E, já que falei em campanha, que tal uma baseada num cartaz que o poeta gaúcho, Mario Quintana, fez para uma Feira do Livro? O cartaz diz o seguinte:

O PIOR ANALFABETO É O QUE APRENDEU A LER E NÃO LÊ

Nova Viçosa, 24 de junho de 2010