terça-feira, 23 de junho de 2015

Grécia: À procura do tempo perdido



Depois de cinco meses de negociações, as escolhas do SYRIZA continuam as mesmas: capitular ante os credores ou separar-se do euro.

22/6/2015, [*] Stathis Kouvelakis, Jacobin Magazine
Traduzido do grego ao inglês por Wayne Hall e para português pela Vila Vudu

Protestos anti-ARROCHO em 21/6/2015

Parece que eram necessários cinco meses para o governo grego afinal se retirar de um processo que exauriu o próprio governo como tal e a sociedade como um todo. Era o tempo necessário para pôr um fim (talvez temporário) ao repagamento de prestações aos bancos e para o SYRIZA lançar convocação para reativar a mobilização popular que foi interrompida pelo acordo catastrófico de 20 de fevereiro/2015.
Com os cofres públicos vazios, com a economia patinando nos efeitos do estrangulamento da liquidez implementado pelo Banco Central Europeu, com a população num estado de inércia e confusão, a questão que surge é se todas essas iniciativas de último minuto, além de insuficientes e mal preparadas, só apareceram tarde demais para fazer qualquer diferença.
Se, em outras palavras, é possível recuperar o tempo que já começou a trabalhar contra o governo grego a partir do momento em que tentou apresentar como “sucesso nas negociações” o que não passou de inabilidade para modificar, um mínimo que fosse, a posição dos credores.
Paródia de negociações
Assim, apesar da verborragia sobre “progresso” e “acordo iminente”, o que os mais recentes desenvolvimentos vieram confirmar é que os últimos cinco meses nada foram além de paródia de “negociações”. E como se poderia descrever de outro modo um procedimento pelo qual, depois de quatro meses de alardeado progresso, a proposta – ou melhor dizendo, o ultimato – que um dos lados apresentou é, como confessou o Ministro do Interior da Grécia, Nikos Voutsis, variante particularmente carregada da proposta que estava na mesa desde o início, ou. em outras palavras, do acordo que o antigo governo grego, de direita, já aceitara?
O mínimo que se pode esperar, depois dessa provocação, é que os gregos deixem a sala. Mas o mais crucial, se não queremos ver repetir-se o mesmo cenário de pesadelo, é o reconhecimento público de que toda essa “negociação” foi uma armadilha na qual o lado grego foi apanhado, com consequências muito dolorosas – situação que só pode ser corrigida com radical mudança de rumo.
Mas o tempo perdido nessas intermináveis “negociações” não foi puro prejuízo para todos. Evidentemente os que cobram a Grécia nada perderam, e continuam a manter com absoluta consistência a estratégia do “estrangulamento por iliquidez” que foi iniciada pelo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, apenas dez dias depois das eleições.
E obtiveram algo que – pelo menos aos olhos dos que apoiaram o projeto de um governo de esquerda, e contribuíram para que chegasse ao poder de Estado – era inconcebível há poucos meses: fazer um governo, que foi eleito para romper com a “terapia de choque” neoliberal imposta ao país pelos memorandos, aceitar um quadro apenas marginalmente modificado de políticas de arrocho [não é “austeridade”; é ARROCHO].


De que outro modo se poderia caracterizar o inacreditável “texto de 47 páginas”, como foi apresentada a mais recente versão completa da proposta grega? É documento que se move sob a velha e indiscutivelmente orientada pelo Memorando, lógica dos superávits fiscais, das privatizações, dos aumentos repetidos na idade mínima para aposentadorias, da consolidação da supertaxação extorsionária dos anos recentes (com aumento paralelo na taxação indireta), da proteção reduzida para a propriedade da residência familiar, de relegar a futuro indeterminado quase a totalidade dos compromissos programáticos do Syriza (os que já não foram virtualmente cancelados).
Sejamos claros quanto a isso: embora tenha havido derrapagens nas posições dos gregos desde o início das chamadas negociações, o novo texto marca um ponto de virada.
Ainda que as propostas do lado grego lá estivessem para ser aceitas como “base para discussão” – e sabemos que, pelos termos em que lá estão, houve novos passos na direção de alinhar as propostas com as demandas dos banqueiros (o mais visível dos quais é a total aceitação das metas de superávits fiscais) — o resultado ainda será continuação da “austeridade” [é arrocho] e o aprofundamento do regime do Memorando.
Nesse sentido, podemos dizer que o mandato popular dado ao SYRIZA já foi VIOLADO.
Apostando na passividade social
Mas o “tempo perdido” não se aplica só ao recuo continuado dos negociadores gregos. Igualmente crucial é a desmobilização da sociedade, a baixa continuada das expectativas, o senso de impotência que se vai generalizando. A perda começou no acordo de 20 de fevereiro/2015, que pôs fim ao clima de esperança e ao entusiasmo combativo que foram disparados pela vitória eleitoral do SYRIZA em janeiro.
O discurso oficial do governo foi fator decisivo nesse processo, tanto quanto a inabilidade do SYRIZA como partido para falar em outra escala tonal. O que prevaleceu no final, e se mantém em algum sentido nesse curso póstumo, foi a interminável “negociaçãologia”, o canto & dança intermináveis sobre o “acordo” sempre iminente e um tal suposto compromisso honrosomisturado de tempos em tempos com explosões de truculência que sugeririam “uma ruptura” – mas sem jamais a terem preparado ou explicado como opção viável e positiva.


Mas nada disso surpreende, e as convocações adiadas, improvisadas e sem alvo preciso, para mobilizações populares, como a lançada dia 17/6/2015, devem ser recebidas com ceticismo.
Já é abundantemente claro que o governo, mas também toda a coalizão SYRIZA em geral, enfrenta hoje um problema de credibilidade. Que credibilidade teria declarar, como Alexis Tsipras declarou dia 16/6/2015, em discurso ao seu grupo parlamentar, que agora “começam as negociações reais”, depois de decorridos cinco meses exaustivos?
Que sentido haveria em reiterar, como fez o Primeiro-Ministro no mesmo discurso, que teria havido algum “acordo positivo de 20/2/2015”, quando já mais ou menos todos percebem que os banqueiros ataram as mãos do governo, sem ceder nem alguma mínima concessão no estrangulamento da liquidez?
Quantos ainda acreditam que o “grupo de Bruxelas” e as “equipes técnicas” seriam de algum modo diferentes da Troika, que a dita “quinta revisão do atual programa” teria sido retirada da mesa, quando lá está, no documento de 47 páginas das propostas gregas, e, até, que já não haveria Memorando?
E esses continuados truques verbais não seriam, de qualquer modo, confissão implícita de fracasso (quando não se consegue mudar alguma coisa, muda-se o nome) e, ao mesmo tempo, sintoma de continuada demolição da própria linguagem política da esquerda?
Tempo de romper
Em seu monumental romance “À procura do tempo perdido”, [1] Marcel Proust demonstrou o que Heráclito codificou na frase famosa, “Não se pode pisar duas vezes no mesmo rio”. O tempo passado é irrevogavelmente perdido, e só é possível voltar a ele guiado pela memória, como narrativa, uma reconstrução que acontece noutro nível, da linguagem e da reinvenção imaginada. Para fazer o que fez, Proust parou de viver. Deteve o fluxo do tempo, como transcorria para ele, para deixar que sua escrita fosse como a encenação do confronto, no homem, com a experiência da perda.
Mas o artista tem algo pertinente a dizer também aos que escolhem fazer o contrário do que ele fez, aos que continuam a viver e atuar nesse mundo, mas confiam em que tudo conserva algum traço do passado: o gosto da incompletude. Só quem cria tempo novo pode vingar o que tenha sido ferido pelo tempo passado.


Nesse sentido, nada tem maior relevância hoje que o programa do SYRIZA, que os compromissos que assumiram e que tornaram possível sua histórica vitória eleitoral.
Não apesar de, mas precisamente porque sabemos que essa implementação não pode acontecer como a imaginamos inicialmente. Recomeçar não implica voltar à marca inicial. Mas tampouco é possível recomeçar sem romper com o que existiu mas já não existe, já se foi.
O governo SYRIZA, o povo grego, encontram-se hoje ante um dilema que pode ser formulado de modo duramente simples: capitulação ou rompimento; rendição ou abertura ampla para o futuro. A segunda opção implica riscos, é claro, mas a primeira nada tem a oferecer além da segurança de demorada, mortal agonia.
O futuro permanece aberto sempre por breve lapso de tempo. E, sim, ninguém poderá jamais saber o que Proust teria feito, não fosse aquele bolinho que os franceses chamam madeleine.
Dedicado à memória de Pavlos Zannas. [2]
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Nota dos tradutores
[1] Tradução brasileira clássica de Mário Quintana (vols. 1 a 4), Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar (vol. 5), Carlos Drummond de Andrade (vol. 6) e Lúcia Miguel Pereira (vol. 7) foi editada pela Editora Globo de Porto Alegre, o primeiro volume em 1948, o segundo em 1951 e os demais durante a década de 1950, toda a edição e traduções coordenadas por Érico Veríssimo. Essa é a tradução a buscar, para ler em português. Há outras: do poeta Fernando Py, com base na edição francesa definitiva da Gallimard de 1987, lançada em 1992 em três volumes pela Ediouro (que os tradutores da Vila Vudu conhecem); e a tradução de Pedro Tamen, pela editora Relógio d'Água e Círculo de Leitores de Lisboa, entre 2003 e 2004 (que os tradutores da Vila Vudu não conhecem).
[2] Pavlos Zannas (1929–1989) começou a traduzir ao grego o romance de Marcel Proust quando estava na prisão, condenado por sua ação contra a ditadura militar. Quando seus companheiros de prisão e comentaristas posteriores perguntavam por que, naquelas específicas circunstâncias, não escolheu trabalhar sobre algo “mais político” , Zannas respondia que traduzir Proust naquelas específicas circunstâncias era ato político por excelência, e parte inseparável de sua resistência contra a ditadura. (nota do autor)
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[*] Stathis Kouvelakis ensina Teoria Política no King’s College London e é membro do Comitê Central do SYRIZA. Obteve Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris 10 e Doutorado em Filosofia Política pela Universidade de Paris 8. Foi professor na Universidade de Paris 8 e bolsista de investigação na Universidade de Wolverhampton, antes de começar a lecionar no King’s College em setembro de 2003 onde está até hoje.
Seus principais interesses de pesquisa estão nos estudos sobre Marx, Filosofia alemã e Teoria crítica recente. Sua pesquisa tem-se centrado na formação do pensamento político de Marx, a trajetória dos Jovens Hegelianos e na crítica ao liberalismo político. Também pesquisa a Política Francesa Contemporânea e sobre a história dos protestos sociais na França. Kouvelakis está atualmente trabalhando em dois livros, o primeiro sobre a política atual, discutindo as noções de temporalidade e decisão no pensamento político contemporâneo, o segundo sobre o estado atual da Teoria Marxista. Seu projeto de longo prazo inclui um estudo da formação da Teoria de Marx no contexto (político, intelectual e cultural) das Revoluções Europeias de 1848 e suas consequências. É membro do conselho editorial das revistas francesas Contretemps e La Pensée, do Groupe d'Etudes Sartriennes e da série de livros sobre Materialismo Histórico em Brill Academic Publishers (Leiden, Holanda).

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