10/6/2010, Sami Moubayed (de Damasco), Asia Times Online traduzido por
Na autobiografia In Search of Identity, Anwar Sadat relembra que costumava vir da pequena aldeia onde nasceu, até a cidade do Cairo, menino pobre, para andar à noite pelos jardins do palácio real, roubar laranjas e apanhar dos guardas do rei. Jamais imaginou que um dia atravessaria os portões do mesmo palácio, já oficial do exército egípcio, para saudar o Rei Farouk I. Tampouco jamais imaginara, nem nos sonhos mais alucinados, que um dia sentaria no mesmo trono, já então eleito presidente do Egito republicano, em 1970.
O jogo do destino é jogo estranho. Winston Churchill ensinou que “é erro perscrutar futuro muito distante. Só se pode lidar com um elo da cadeia do destino, de cada vez.”
Já faz agora uma semana que a mídia em todo o mundo muçulmano e árabe repete e repete histórias do começo da vida do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan. Menino que vendia bolos, melões e limonada nas ruas de Istambul nos fins-de-semana e feriados do verão, Erdogan, hoje aos 56 anos, jamais imaginou que algum dia seria primeiro-ministro.
Crescido nos anos 1960s, Erdogan nunca imaginou, tampouco, que se tornaria líder pan-muçulmano, e que saberia atrair pró-Turquia emoções que sempre se afastaram dela, desde a queda do Império Otomano há 92 anos.
Na história moderna, só Erdogan e a diva egípcia Um Kalthoum (falecida há 35 anos) conseguiram seduzir corações e mentes de árabes e muçulmanos em geral, disse o popular canal saudita de televisão al-Arabiya,
Em janeiro, manifestação de o quanto crescia sua popularidade, Erdogan recebeu o prestigioso Prêmio Internacional Rei Faisal, por “serviços ao Islã”, prêmio outorgado pela Fundação Saudita Rei Faisal. Em abril, a revista Time o incluiu, pela segunda vez, entre as 100 pessoas mais influentes do mundo.
Se se acompanha a carreira de Erdogan, vê-se que trabalhou muito, mas a grande popularidade pan-árabe e pan-islâmica de que goza hoje é também resultado de algumas confluências históricas.
Dia 1/3/2003, duas semanas antes de Erdogan assumir o cargo de primeiro-ministro, Ankara – comandada pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) – vetou proposta que autorizaria os EUA a usar território turco para abrir um segundo front contra o Iraque, pelo norte, para derrubar Saddam Hussein.
Erdogan começava a acumular pontos entre árabes e muçulmanos. Dois anos depois, em 2005, o então secretário de Defesa dos EUA Donald Rumsfeld lamentou-se amargamente pelo canal Fox News de televisão: “Claro que, se tivéssemos podido enfiar a 4ª Divisão de Infantaria pelo Norte, através da Turquia, teríamos prendido e matado mais membros do governo Hussein-Ba'ath." Se a Turquia tivesse cooperado mais, “haveria menos guerrilheiros [no Iraque], hoje”, disse ele.
Evidentemente sem que aí houvesse algum plano deliberado, a frustração de Rumsfeld valeu outra medalha de honra para Erdogan, aos olhos de milhões de árabes. No mesmo ano, Erdogan recusou-se a obedecer aos EUA e estreitou relações com a Síria, em momento em que os laços entre Damasco e o governo de George W Bush degeneravam rapidamente; e desde então se tornou hóspede frequente da capital síria.
Erdogan outra vez desafiou os EUA, ao receber o líder político do Hamás, Khalid Meshaal, depois da vitória nas eleições parlamentares na Palestina em 2005. Rejeitou convite do ex-primeiro ministro Ariel Sharon para visitar Israel em 2004 – o que outra vez enfureceu os EUA. E não recebeu Ehud Olmert, então ministro do Trabalho e Comércio, que visitava a Turquia em julho de 2004.
Na guerra de Gaza em 2008, Erdogan defendeu os palestinos e acusou Israel de ter cometido crimes de guerra. Falando a Shimon Peres no Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2009, disse ao presidente de Israel: “Presidente Peres, o senhor é velho e sua voz fala do fundo de uma consciência culpada. Em matéria de matar, o senhor é mestre. Sei perfeitamente com que mestria os israelenses espancam e matam crianças palestinas nas praias.”
Bastou essa frase para alçá-lo à mais alta fama no contexto pan-árabe e pan-islâmico; começaram a aparecer fotos suas em todas as principais capitais árabes. Mas o que Erdogan disse na Suíça nem de longe se compara ao que disse semana passada, com expressão indignada, depois que o exército de Israel (IDF) atacou a Flotilha da Liberdade no litoral de Gaza, matando nove cidadãos turcos a bordo do barco Mavi Marmara.
O mundo árabe viu crescer um furacão de apoio e em defesa do primeiro-ministro da Turquia, que imediatamente retirou seu embaixador de Israel; o gesto estimulou a eclosão de vastas manifestações de rua, que se alastraram,
“A amizade da Turquia é forte; mas saibam todos que nossa hostilidade também é forte.” Disse Erdogan no Parlamento turco. “O que a comunidade internacional tem a dizer a Israel é “Basta!”. A Flotilha da Liberdade é legal; a agressão israelense à flotilha ataca a ONU. Israel tem de pagar o preço pelo que fez. Israel não pode lavar as mãos do crime perpetrado no Mediterrâneo. O país que insiste em atrair sobre si o ódio do mundo jamais conseguirá viver
E acrescentou: “Israel não pode olhar nos olhos do mundo, a menos que se desculpe e seja julgado e punido pelo que fez. Estamos fartos das mentiras de Israel; as ações de Israel ferem a própria Israel; depois, ferem outros povos.”
Então, para espanto do mundo, Erdogan disse que embarcaria pessoalmente num barco, rumo a Gaza, para romper o bloqueio implantado por Israel em 2007, e que a Marinha turca o acompanharia às águas palestinas, para mostrar ao exército de Israel que não viajava só, na viagem à Faixa de Gaza.
Erdogan vive hoje seu melhor momento nos mundos árabe e muçulmano, graças à firmeza do que diz e a determinação de fazer. No início de 2010, forçou os israelenses a desculpar-se depois de terem humilhado seu embaixador, o que lhe valeu manchetes ardentemente entusiasmadas, na mídia árabe: “Israel só entende a Turquia!”
Mês passado, Erdogan ajudou a construir e viabilizar um acordo de troca de urânio iraniano, mediado pelo Brasil, o qual, se tivesse sido imediatamente encampado e defendido pela comunidade internacional teria salvo o Irã de um 4º bloco de sanções que estão sendo discutidas essa semana na ONU.
Sob comando do ministro de Relações Estrangeiras Ahmet Davutoglu, a Turquia desmontou a imagem que lhe restava da Guerra Fria, e aspira a ser membro pleno da União Europeia, já em 2014. Com a inclusão da Turquia, o Irã ganhará fronteiras com a União Europeia, cuja população muçulmana aumentará seis vezes. Em busca de “problemas-zero” com os vizinhos, Ankara já assinou acordo de passe livre, sem necessidade de vistos, para viajantes que visitem o Líbano, a Jordânia, a Líbia e a Síria. Em breve, o mesmo acordo incluirá também a Rússia.
Como diz a rede al-Arabiya, “Erdogan, do dia para a noite, tornou-se o nome mais popular do mundo árabe. Irã, EUA e vários países europeus trabalham há décadas para obter o que Erdogan conseguiu num segundo.”
É possível que sua eloquência e a clara e forte posição contra Israel o tenham elevado ao posto mais alto de prestígio, do mundo árabe. Ou talvez o fato de ser muçulmano devoto, cuja esposa Emine jamais se deixa ver sem véu, como milhões de mulheres árabes e muçulmanas em todo o planeta.
Nos anos 90s, foi afastado do governo por ter recitado publicamente um poema que desafia o secularismo que os turcos tanto prezam, no qual se lê “As mesquitas são nossas tendas de campanha; as cúpulas, nossos helmos; os minaretes, nossas baionetas; e os fiéis são nossos soldados...”
Ou talvez tudo se explique pelas origens humildes. Erdogan é filho de um guarda - costeiro, criado com todas as dificuldades das famílias muito pobres. Mas Erdogan foi aluno dedicado de uma escola islâmica, de onde saiu para a Universidade Marmara, onde se formou em administração. Durante esse tempo, sustentou-se como jogador profissional de futebol. Tentou duas vezes sem sucesso, em 1978 e 1991, antes de conseguir ser eleito ao Parlamento; nas duas eleições, concorreu com plataforma islâmica.
Mas a real razão pela qual Erdogan alcançou o ponto alto de popularidade onde agora está parece ser, mesmo, ter dito “não” a Israel e ter-se colocado, decidida e firmemente, ao lado dos palestinos. Essa parece ser receita mágica para tudo, no Oriente Médio, que jamais falhou desde 1948 e a implantação do Estado de Israel.
Idêntica posição, com idêntica determinação, operou prodígios também nas carreiras políticas de Nasser do Egito, de Hafez al-Assad da Síria, e do ex-presidente palestino Yasser Arafat. Essa é a razão que explica a extraordinária popularidade de Hassan Nasrallah do Hezbollah, nas ruas do mundo árabe e muçulmano; e explica por que a mesma popularidade não toca os líderes árabes que tenham acordos de paz assinados com Israel, como Hosni Mubarak do Egito.
Só quem saiba o quanto a Turquia foi impopular no mundo árabe ao longo de todo o século 20 – resultado da doutrinação sistemática contra o Império Otomano e da aliança entre Turquia e Israel depois de 1948, compreenderá plenamente o resultado dramaticamente importante do trabalho de Erdogan nos últimos sete anos.
Conseguiu reposicionar a Turquia – e o legado otomano – e criou um novo tipo de liderança no mundo árabe, no qual se combinam os traços de Nasser, de Assad e de Nasrallah.
Por tudo isso, Erdogan é fenômeno que se deve acompanhar de perto, à medida que sua carreira política avança, e ele desenvolve o carisma, o caráter e o talento de que se alimentará o líder complexo em que já se converteu.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Turkey's Erdogan: Never a "yes" man
Comentário de
Dado que totalmente não me interessa a opinião do
Há vários traços que fazem Erdogan e Lula parecidos. Achei muito interessante o que aí se lê, por pouco que seja. 8-)