O que a narrativa orquestrada da mídia-empresa não narra
24/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo coletivo Vila Vudu
Traduzido pelo coletivo Vila Vudu
Quem acompanhe a história do mundo pelos jornais será tentado a avaliar a política exterior dos EUA como produção de algum discípulo desgarrado do gênio cinematográfico de Russ Meyer – de Faster Pussycat, Kill, Kill! [1] – menos a profusão de seios, claro.
Como Bob Woodward, autodesignado estenógrafo de tribunal, revela em seu último romance ‘de advogados’ Obama's Wars – convenientemente vazado para o Washington Post e para o New York Times –, a CIA está escondendo o mulá [Omar] para consumo privado da sua Assassinatos & Co. de mais de 3.000 assassinos contratados no AfPak. Esses paramilitares – batalhões inteiros – “de elite e bem treinados”, apresentam-se ao público sob a nova griffe Equipes de Caça Antiterrorista [ing. Counter-terrorist Pursuit Teams (CPT)].
Parte importante do trabalho para que essa sombria equipe de caça consiga “ter acesso” as áreas tribais em território paquistanês está sendo feito pela mídia corporativa nos EUA, de modo que, como naquele famoso anúncio da cerveja Heineken, alcance áreas às quais os espiões dos EUA não chegam. Latino-americanos espertos verão aí – com um muxoxo – versão redux de piada ruim: “o golpe à moda de El Salvador” volta às telas. Assim como esses assassinos afegãos foram trazidos para os EUA para serem treinados, assim também a infame “Escola das Américas” [ing. School of the Americas], nos anos 1970s e 1980s treinou esquadrões da morte de nativos para matar seus compatriotas do Chile a El Salvador. A CIA não é exatamente brilhante em matéria de ideias novas e criatividade.
Afegãos mais velhos também terão calafrios; essa é versão remix em menor escala, também, da luta dos mujahidin afegãos na jihad contra os soviéticos. Todos sabem o que aconteceu depois aos rapazes que Ronald Reagan chamava de “combatentes da liberdade”: todos se voltaram contra os EUA. Talvez alguns dos analistas-empresas contratados pela CIA devessem rachar um kebab com um de seus velhos companheiros de folha de pagamento, o ex-primeiro ministro afegão Gulbuddin “Bombardeiem Cabul já!” Hekmatyar, mujahid eterno, e hoje o primeiro nome da lista dos mais procurados de Washington.
Chamem Jack Bauer!
Todos os grãos de areia do Hindu Kush sempre souberam, desde 2001, que os norte-americanos – seja o Pentágono, a CIA, e há paquistaneses que incluem na lista também o FBI – empregam um “exército secreto” no AfPak. A empresa Assassinatos & Co. do Pentágono foi exposta ao mundo pela página Wikileaks há três meses. E agora aí está Woodward a ‘revelar a verdade sobre a CIA’. O que inventarão agora? Uma unidade Jack Bauer, “24 horas”, em capítulos, para a tevê a cabo?
O número de civis assassinados – “dano colateral” – pela empresa Assassinatos & Co. do Pentágono está no noticiário praticamente todos os dias. Quanto à CIA, ainda não há números. Todos os grãos de areia do Hindu Kush também sabem que o conceito de “soberania” paquistanesa é mito. Hoje, todos os grãos de areia do Hindu Kush estão à espera de outro dilúvio de ‘declarações’ e desmentidos vindo de Islamabad – todos espantosamente cegos para o fato de que os aviões-robôs do Pentágono e da CIA continuam matando em grandes levas, em pleno território paquistanês (só em 2010, foram mais de 70 ataques).
Se é guerra contra a al-Qaeda – como Langley, do continuum George W Bush/Barack Obama, insiste, temos um problema; há menos de 50 jihadistas da al-Qaeda no Afeganistão, como qualquer agência da inteligência dos EUA também sabe. E há menos de 100 jihadistas nos Waziristões. Se Washington realmente quer saber onde estão os líderes, o caminho fácil é subornar alguns agentes de nível médio do serviço secreto paquistanês em Rawalpindi/Islamabad. A conexão ISI-al Qaeda-Talibã é e sempre será indestrutível – é resultado da obsessão de Islamabad com a “profundidade estratégica”. Essa conexão matou o comandante Ahmad Shah Massoud, o Leão do Panjshir, da Aliança do Norte, dia 11/9/2001, dois dias antes do 11/9 – e assim impediu que um autêntico nacionalista afegão chegasse ao poder, em vez desse Hamid Karzai , pau mandado do embaixador dos EUA no Afeganistão, Zalmay “Bush-no-Afeganistão” Khalilzad.
No Pashtunistão real não há fronteiras – a Linha Durand foi inventada pelos britânicos para dividir os pashtuns. Todos ali vivem em redes cerradas de pashtuns, todos são “primos” de todos, todos são “a família”. Alguns primos roubam primos, mas só em questões de negócios, parente que passa a perna em parente, mas nada que enfraqueça a rede dos pashtuns.
Eu estava em Tora Bora no final de 2001, quando as Forças Especiais dos EUA subornavam e aconselhavam os comandantes locais sobre táticas para atacar a al-Qaeda. Os comandantes passavam a mão no dinheiro dos norte-americanos, fingiam que davam alguns tiros com seus tanques soviéticos em cacos, e ajudavam a al-Qaeda – inclusive Osama bin Laden – a fugir na direção oposta, para Parachinar, rumo às áreas tribais do Paquistão. Em seguida, “assessoravam” os B52s dos EUA, que sempre bombardeavam as montanhas erradas...
Washington está agora empregado todos os seus poderes armados – dos exércitos secretos do Pentágono e da CIA a aviões-robôs e “comandados mercenários” assalariados da Blackwater para “localizar e matar”. E tantos efeitos especiais... para quê? Para matar uns poucos comandantes do Talibã Paquistanês – que sempre são imediatamente substituídos por parentes próximos – e meia dúzia de jihadistas, também substituídos, na mesma semana, por pessoal selecionado do fluxo constante de jihadistas que chega do Golfo.
Nem Woodward nem a CIA oferece qualquer informação sobre de onde vêm os guerreiros afegãos que trabalham para a empresa Assassinatos & Co. Se são tadjiques ou uzbeques ou hazaras, jamais entrarão nas áreas tribais do Paquistão sem serem imediatamente identificados. Então, devem ser pashtuns de tribos rivais. Nesse caso, trabalham exclusivamente pelo dinheiro. E vale a pena lembrar que a CIA sustenta outra milícia em Candahar – comandada por Ahmed Wali Karzai, empresário, traficante de drogas e senhor-da-guerra, irmão do presidente Hamid Karzai.
Não percam de vista o spectrum
Esse esquema é exatamente o que se conhece no ocidente como a grandiosa “estratégia COIN” [de COunterINsurgengy, contraguerrilha] do general David “Sempre de olho nas eleições de 2012” Petraeus. Nativos subornados, organizados em esquadrões da morte e pagos com [malas] Samsonites cheias de dinheiro (com os ataques por aviões-robôs da Blackwater como “plus estratégico”). Deu certo para Petraeus no Iraque – o que o ajudou a convencer uma mídia corporativa tola (ou também subornável) de que ele teria “vencido” a guerra.
Petraeus não tem qualquer dúvida de que conseguirá encenar uma versão remix disso tudo, no AfPak.
O Pentágono já parece meio desconfiado da eficácia da tática de negociar com senhores-da-guerra – tanto negociaram e, agora, Hamid Karzai, refém dos senhores-da-guerra, não consegue comandar nem o próprio trono em Cabul. Mas a CIA não toma conhecimento de senhores-da-guerra. Com a CIA, é ou vai ou racha.
Nada mudará “em campo”, no que tenha a ver com os laços que unem o serviço secreto paquistanês e os Talibãs. Mas o jogo começa a ficar muito mais interessante, se se consideram os fatos que começam a chegar ao conhecimento da opinião pública paquistanesa mais letrada – nas principais cidades –, gente que já está farta da submissão canina de Islamabad a Washington. É onde entra a real importância do livro de Woodward.
O ponto principal – pode-se dizer, o mais trágico – do que Woodward escreve é que não se trata só de Obama não poder por fim à guerra do Afeganistão; trata-se de Obama não poder, sequer, reduzir as dimensões daquela guerra e convertê-la em pequena operação de captura de menos de 100 jihadistas e dos Talibã paquistaneses escondidos nas áreas tribais... sem que isso lhe custe a reeleição.
Woodward diz que Obama está seriamente empenhado em implantar seu plano de retirada do Afeganistão; que quer, sim, seja como for, uma retirada progressiva, a ser iniciada em meados de 2011. Mas Petraeus – general que Obama nomeou, mas que representa, de fato, o Pentágono – quer a guerra infinita.
O que o livro de Woodward – e a narrativa orquestrada de toda a mídia corportativa – não dizem e jamais dirão é por que a guerra infinita. Por quê?
Por causa do Novo Grande Jogo na Eurásia. Porque é preciso construir e manter bases militares ‘por lá’, para espionar Rússia e China. Por causa da obsessão dos EUA com o Oleodutostão na Ásia Central, que contorna a Rússia e Irã. Tudo por causa da doutrina de “dominação de pleno espectro” – que garante o crescimento perpétuo dos orçamentos militares.
Se Obama realmente já admitiu que “Não posso perder todo o Partido Democrata”, então ele sabe que, sim, está realmente em dificuldades. Obama contava com 2011 e 2012 para arranjar alguma coisa que pudesse ser mostrada como “vitória” no AfPak, antes de que a opinião pública dos EUA se voltasse contra ele (Bill Clinton tem aconselhado o presidente a “abraçar a fúria popular”...).
Quanto a Petraeus, o espertalhão, já lançou sua blitz pela imprensa, toda planejada em torno de um único tema e variações – “não apressem o general”, “guerras não se decidem sem planos”, “os políticos de Washington não são autoridade para decidir sobre guerras”... E, sim, a guerra se estenderá, no mínimo, até 2020.
Woodward, em seu livro, cita Obama, que lhe teria dito: “Não quero mandato de 10 anos. Não estou interessado em reconstrução nacional de longo prazo. A questão é que não gastarei outro trilhão de dólares [em guerras].”
Nesse caso, o que Obama pode fazer? Pode convocar seus apoiadores em Hollywood. Hollywood é especialista em vencer guerras no cinema: venceu a guerra do Vietnã, a guerra do Iraque – como seu viu em “Guerra ao Terror” [ing. The Hurt Locker]. Obama talvez ganhe um Óscar – muito mais cool que um Nóbel.
Agora, falando sério. Na vida real, a história sempre mastigou e deglutiu e digeriu Hollywood. O AfPak tem potencial para mastigar e deglutir e digerir Obama, o presidente que venha depois de Obama, a CIA inteira e fileiras e mais fileiras de generais da “dominação de pleno espectro”, com medalhas e tudo, mais depressa do que se grita “Rápido, CIA! Mate-mate!”
Adeus, Cabul? Não. A coisa está mais para “Bom dia, Vietnã”.
Nota de rodapé
[1] O filme é de 1965. Sobre o filme, ver em: Faster Pussycat, Kill, Kill!
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: It's Obama vs infinite war