sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Rachaduras na selva de espelhos[1]

4/12/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A tentação de ver WikiLeaks como um paraíso artificial neo-Baudelaireano – casamento de anarquismo libertista e ciber-conhecimento – não poderia ser maior ou mais sedutora. Agora, não mais de 40 pessoas auxiliam o fundador Julian Assange, mais 800 que trabalham por fora. 

Tudo isso, um orçamento anual de 200 mil euros (264 mil dólares) – e uma base nômade. O porta-voz Kristinn Hrafnsson insiste que WikiLeaks continua a ser um “portal de vazadores”, que não identifica suas fontes as quais, muitas vezes, são desconhecidas. Lá se encontra vazador que mostre que o imperador está nu – assim como qualquer um, Osama bin Laden ou outro, conseguiu inaugurar a verdadeira “nova ordem mundial” dia 11/9 com 500 mil dólares. 

Para Daniel Ellsberg, que divulgou os “Documentos do Pentágono” em 1971, Assange é um herói. Para vastas porções do establishment nos EUA, ele é hoje o inimigo público n. 1 – como improvável eco de bin Laden. Talvez esteja hoje no sudeste da Inglaterra, acessível à Scotland Yard, e podendo ser preso a qualquer momento por cortesia da Interpol, que expediu mandato de prisão contra Assange por ser procurado na Suécia. O professor canadense Marshall McLuhan deve estar dando pulos na tumba; se o meio é a mensagem e ninguém consegue eliminar a mensagem, de que adiantaria eliminar o meio? 

El libro de arena [2] 

Examinemos o crime de Assange. Eis o que diz o próprio Assange em “State and Terrorist Conspiracies” [Estado e conspirações terroristas] [3]:

Para mudar radicalmente o comportamento do regime, temos de pensar com clareza e firmeza, porque, se aprendemos alguma coisa, é que nenhum regime deseja ser modificado. Temos de pensar além dos que vieram antes de nós, e encontrar mudanças tecnológicas que nos equipem com meios para agir, com os quais os que vieram antes de nós não contaram. Em primeiro lugar, temos de entender qual o aspecto do governo ou do comportamento neocorporativo que desejamos ou mudar ou extinguir. Em segundo lugar, temos de desenvolver um modo de pensar sobre aquele comportamento, suficientemente potente para nos permitir avançar no labirinto da linguagem politicamente enviesada, até uma posição em que possamos ver com clareza. Por fim, devemos usar esses insights de modo que inspirem, em nós e em outros, um curso de ação mais nobre e mais efetivo.

Portanto, Assange vê WikiLeaks como um antivírus que nos deve guiar na navegação através das distorções da linguagem política. Se a linguagem for um vírus que nos chegou do espaço sideral, como escreveu William (Naked Lunch) Burroughs[4], quantos mais segredos se revelem hoje, menos segredos se produzirão no futuro, até zero-segredos, WikiLeaks pode ser o antídoto. Basicamente, Assange crê que a revelação cumulativa de quantidades enormes de segredos levará ao fim dos segredos, no futuro. É uma visão romântico-anarco-utopista. 

É vital lembrar que, como Assange os vê, os EUA são essencialmente uma gigantesca conspiração autoritária. Outro ativista político norte-americano, Noam Chomsky, diz exatamente a mesma coisa (e ninguém expediu mandato de prisão contra ele). A diferença é que Assange emprega estratégia de combate: trabalha para minar a capacidade do sistema para continuar conspirando. É onde entra a metáfora da rede de computadores. Assange quer combater o poder do sistema, tratando-o como se fosse um computador sufocado nas areias do deserto. Se estivesse vivo, que grande conto o argentino Jorge Luis Borges escreveria sobre isso. 

Além de escrever seu próprio “Livro de Areia”, Assange também está contra-atacando a doutrina de contraguerrilha do Pentágono. Não trabalha no modo “rastrear-os-Talibãs-e-desentocá-los”. Isso é detalhe. Se a conspiração está na rede eletrônica – digamos a Matrix (da política exterior) – o que Assange quer é feri-la na capacidade cognitiva; para isso, detona a qualidade da informação. 

Nesse ponto, há outro elemento crucial. A capacidade da conspiração, que engana todos todo o tempo mediante quantidades massivas de propaganda, é equivalente à tendência de a conspiração ser enganada também, ela mesma, pela própria propaganda. 

Assim chegamos à estratégia de Assange, de deixar vazar quantidades tsunâmicas de informações, como fator-vetor-chave da paisagem informacional. Daí se chega a outro ponto crucial: não importa que os vazamentos sejam informação nova, pura fofoca ou opinião desejante (desde que sejam autenticados pela fonte). A ideia-mãe – muito ambiciosa – é minar todo o sistema de informação e, assim, “levar os computadores à pane”, quando a conspiração for obrigada a voltar-se contra ela mesma, em movimento de autodefesa. Para WikiLeaks, a única via pela qual se pode destruir uma conspiração é obrigando-a a entrar em modo paranóico-alucinatório focado sobre ela mesma. 

Assim vamos entrando em território cada vez mais crucialmente decisivo. Praticamente ninguém – em todo o tsunami de material jornalístico e “entrevistas” e opiniões de “especialistas” inspirados pelo “cablegate” que circulou em todo o planeta – viu o que havia para ver, de importante. 

Mais uma vez, não faz diferença que a maioria dos telegramas não passem de fofocas – material de jornalismo de tablóide sujo. O que interessa é ver aí o modo pelo qual Assange está expondo o sistema operacional da conspiração. Assange não está interessado em furos jornalísticos (como talvez seus parceiros no Guardian e no Der Spiegel); seu único desejo é estrangular os nós que tornam possível a conspiração – calar o sistema, deixá-lo cada vez mais gaguejante, mais zonzo, mais mudo. 

Não há dúvidas de que os telegramas mostram o quanto o Departamento de Estado já vive em território “cada vez mais gaguejante, mais zonzo, mais mudo” – sem criatividade sequer para distribuir suas próprias versões de “telegramas fake”, “telegramas piratas”. Só até aí, já estamos ante uma extraordinária vitória de organização diferente de tudo que o mundo conhece até hoje, que faz o que fazem – ou deveriam fazer, mas não fazem – os jornalistas, e muito mais. Porque há muito mais por aparecer, segredos de um grande banco (provavelmente do Bank of America), segredos da China, segredos da Rússia. 

“Espelho, espelho meu, existe rede mais rede do que eu?” 

O governo dos EUA e praticamente toda a imprensa-empresa, como seria de esperar, acionaram seus mecanismos de autodefesa, e passaram a repetir que “não há qualquer notícia nova nos telegramas”. Muitos talvez já suspeitassem que a secretária de Estado Hillary Clinton ordenara que diplomatas dos EUA espionassem seus colegas na ONU. Mas telegrama diplomático que confirme isso é notícia absolutamente nova. Se o Secretário Geral da ONU não fosse tão bobão, teria armado um monumental escarcéu diplomático global. 

E então, ao mesmo tempo, o governo dos EUA e virtualmente todo o establishment – dos neoconservadores aos militantes do obamistas light – estão dispostos a fazer o que for preciso para deletar WikiLeaks ou acabar coa raça de Assange, como George W Bush queria fazer com bin Laden [e o ex-senador Bornhausen conosco (NTs)].

Sarah – Ursus arctos horribilis & idiota perfeita [5] – Palin diz que Assange é pior que a al-Qaeda. A mesma histeria generalizada levou uma emissora de rádio de Atlanta a fazer uma enquete entre os ouvintes, sobre se Assange deveria ser executado ou preso (só duas opções; a execução venceu). O pastor Batista fundamentalista Mike Huckabee, que poderia ter sido candidato dos Republicanos à presidência em 2008 e hoje comanda um programa de televisão, também pregou a execução de Assange. 

Em quem acreditar? Nesses doidos varridos, ou em dois frustradíssimos investigadores federais dos EUA que, em entrevista ao Los Angeles Times, disseram que, se WikiLeaks já estivesse trabalhando em 2001, teria sido possível evitar o ataque do 11/9? 

Filósofos franceses, ocupados em salvar-se da própria irrelevância, fomentam teorias de conspiração, lamentando que WikiLeaks daria mais poderes à imprensa do que jamais tivera antes; outros culpam o ogro Internet por desmoralizar jornalistas. É a matéria-prima de todas as conspirações. Aí está a beleza dos vazamentos. 

Nesse quadro, pode ser altamente esclarecedor ouvir o que tenha a dizer o eminente Guerreiro da Guerra Fria Zbigniew Brzezinski. Pois disse em entrevista à rede pública dos EUA [US Public Broadcasting Service] que no “cablegate” há “informação surpreendentemente orientada” que teria sido “plantada” nos arquivos; e que “plantar informações naqueles arquivos” é tarefa simplíssima. 

Por exemplo: os telegramas que dizem que os chineses estão inclinados a cooperar com os EUA com vistas a uma possível unificação da Korea sob a soberania da Coreia do Sul (já desmontei essa hipótese em artigo anterior, “O imperador está nu”, Asia Times Online 1/12/2010, traduzido). 

O Dr. Zbig diz que a organização WikiLeaks pode ter sido infiltrada por serviços de inteligência com “objetivos muito específicos”; poderiam ser, como ele sugere, elementos internos nos EUA, interessados em criar dificuldades para o governo Barack Obama. Mas ele também suspeita de “elementos estrangeiros”. Nesse caso, primeiro lugar da lista, ninguém menos que o Estado de Israel. 

Nos termos das teorias da conspiração de sempre, essa é a bomba. WikiLeaks poderia ser a cabeça visível de uma “serpente” invisível – uma massiva campanha de desinformação orientada pelos israelenses? Se fosse, apareceriam telegramas altamente comprometedores que abalariam as relações EUA-Turquia; e telegramas que se somariam uns aos outros, para pintar a imagem de amplo consenso entre os sunitas árabes a favor de imediato ataque militar ao Irã; e não haveria sequer um telegrama para dizer ao mundo o quanto e como Israel sempre cria ameaças aos interesses dos EUA no Oriente Médio, sempre e sempre, inúmeras vezes. 

Em entrevista a Larry King, da televisão dos EUA, o primeiro-ministro russo Vladimir Putin disse que, sim, os telegramas foram manipulados; é parte de um complô para desacreditar a Rússia (mas isso foi antes de a Rússia ter abocanhado o direito de sediar a Copa do Mundo de 2018; agora, o pessoal lá já está afogado em cataratas de Stoli[chnaya; vodca] e ninguém está dando a mínima bola para telegramas e complôs). O presidente Mahmud Ahmadinejad disse exatamente a mesma coisa, sobre complô, no seu caso, contra o Irã. 

E há também a conspiração que não aconteceu: como é possível que o Pentágono, com tantos recursos hiper-mega-ultra-super high-tech ou não quis ou não tentou ou não pôde, até agora, derrubar completamente WikiLeaks? 

Há muita conversa em todo o mundo sobre os “motivos” pelos quais WikiLeaks divulgou aqueles telegramas. É preciso reler o pensamento de Assange para entender que não há “motivos”. O vazio intelectual e o autismo político dos diplomatas dos EUA é autoevidente. Eles só entendem o mundo em termos de “bons” e “maus”; os EUA versus qualquer “outro”. 

O grande diretor franco-suíço Jean-Luc Godard faz 80 anos hoje, 6ª.-feira, 3/12. Seria ótimo que filmasse um remake de Made in USA, para mostrar a perplexidade do sistema que, agora, contempla a própria cara num espelho digital gigante. 


Notas:

[1] Orig. Wilderness of Mirrors. A expressão aparece no título de livro de David Martin Wilderness of Mirrors: Intrigue, Deception, and the Secrets that Destroyed Two of the Cold War's Most Important Agents [Selva de espelhos: intriga, mentiras e os segredos que destruíram dois dos mais importantes agentes da Guerra Fria], de 1981, sobre, dentre outros espiões norte-americanos, James Jesus Angleton, chefe do setor de contrainteligência da CIA no auge da Guerra Fria, quando a Agência trabalhava quase exclusivamente para identificar agentes soviéticos ou orientais infiltrados nos serviços secretos norte-americanos [NTs].

[2] Orig. The Book of Sand. É o título, em inglês, de livro original de 1975, de Jorge Luis Borges, El libro de arena. Em português, O livro de areia, 2009, São Paulo: Companhia das Letras.

[3] Em IQ.org   e em CRYPTOME   leem-se vários ensaios de Julian Assange (em inglês) [NTs].

[4]Naked Lunch” é título de um romance de William Burroughs de 1959, que tem longa e complexa história editorial e foi adaptado para o cinema em 1991, com o mesmo título, filme dirigido por David Cronenberg, exibido domingo passado pela TV Cultura, em “Mostra Internacional de Cinema na Cultura”. Leia também detalhes sobre o romance e sobre o filme.

[5] No original “Grizzly nutjob Sarah Palin”. É expressão intraduzível. Cada leitor pode escrever aí os adjetivos que lhe ocorram sobre Sarah Palin; para melhor tradução, os adjetivos devem guardar traços semânticos (malignos) de “grande urso pardo” e de “idiota perfeita” (NTs).

Um comentário:

  1. Até que enfim se (re)citou, entre nós, o pensador católico Marshall McLuhan, tão "na moda" em mesas de bar da Zona Sul carioca (e assemelhadas paulistanas) dos anos-60/70.
    Abraços do
    ArnaC.

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