quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Egito 2011 não é o Irã 1979

2/2/2011, Juan Cole, Informed Comment
Why Egypt 2011 is not Iran 1979
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
 

Cresce a preocupação, entre os que observam o levante popular no Egito – e que não é movimento de fundamentalistas islâmicos –, de que, apesar disso, o movimento, no seu desenvolvimento, venha a ser tomado por fundamentalistas. Nesse caso, o grupo ao qual essa deriva mais interessaria seria a Fraternidade Muçulmana. Já há até quem confunda a pacífica Fraternidade Muçulmana com grupos radicais como al-Qaeda. Em meu livro Engaging the Muslim World, exponho o longo processo pelo qual a Fraternidade Muçulmana, desde os anos 1970s, passou a fazer oposição a todos os movimentos radicais. Seja como for, muitos alarmistas têm insistido numa analogia, clara ou semiocultada, entre o Egito de hoje e o Irã de 1978-79, quando também houve cenas de gigantescas multidões nas ruas, exigindo a partida imediata do Xá Mohammad Reza Shah Pahlavi.

Misagh Parsa (Social Origins of the Iranian Revolution. Studies in Political Economy Series) argumentou que a revolução de 1978-79 foi obra de vários diferentes grupos sociais, cada um deles movido por razões específicas. A revolução foi feita contra a monarquia, que comandava uma economia de exportação de petróleo que vivia o ápice da fartura, depois de os preços do petróleo terem quadruplicado nos anos 1970s. Para muitos, a monarquia não partilhava aquela prosperidade, ou o problema era o governo autoritário do xá.

1. O BAZAAR: A expressão “o bazaar” foi usada para designar o conjunto dos velhos artesãos e suas oficinas tradicionais, que se reuniam em feiras cobertas à volta das mesquitas e dos palácios nos bairros mais antigos das cidades iranianas. Todos, de funileiros a emprestadores de dinheiro e mercadores importadores-exportadores de tapetes, fazem parte do bazaar. O bazaar chegou a fazer concorrência significativa às novas classes empresariais e comerciais mas, de um ponto em diante, importadores de latas e panelas estavam tirando do mercado os funileiros, e modernos serviços e produtos bancários afastavam os fregueses tradicionais dos emprestadores de dinheiro). O bazaar era ponto de contato com os aiatolás nas mesquitas e seminários, inclusive pela via dos casamentos entre famílias. O xá desprezava o bazaar, para ele manifestação de atraso feudal, e impôs aos mercadores pesados impostos e multas, além de vários ataques que destruíram bazaars inteiros. O bazaar ajudou os clérigos e financiou a revolução.

2. TRABALHADORES BRAÇAIS E PROFISSIONAIS LIBERAIS (Orig. White And Blue Collar Workers): Houve confronto entre os trabalhadores braçais da indústria do petróleo e os administradores, por questões salariais e condições de trabalho. Professores e profissionais liberais (enfermeiros, médicos etc.) protestavam contra o autoritarismo do xá e exigindo direitos democráticos.

3. PARTIDOS SECULARES: A velha Frente Nacional, do movimento pela nacionalização do petróleo do início dos anos 1950s, estava enfraquecida e envelhecida, mas ainda tinha presença considerável. O Partido Comunista era muito menos importante do que fora nos anos 1950s, mas ainda conservava boa parte de sua capacidade organizacional e de mobilização. Jovens radicais de esquerda, como os  Fedayan-i Khalq (de tendência maoísta) haviam iniciado movimentos de guerrilha contra o regime. E havia também um movimento secular de intelectuais, chamado Movimento dos Escritores.

4. FORÇAS RELIGIOSAS: As forças religiosas incluíam não só os clérigos e as redes de dissidentes que se reuniam nas mesquitas em torno, dentre outros, do Grande Aiatolá Ruhollah Khomeini (exilado em Najaf, no Iraque e depois em Paris), mas também milícias-partidos religiosos, como os Mujahedin-e Khalq (MEK, literalmente: “Combatentes do Povo”). O Islã xiita pregava que os leigos deviam obediência implícita aos clérigos na prática da lei religiosa. Os aiatolás ocupavam lugar de honra, excepcional entre os sunitas.

Parsa argumenta, parece-me que corretamente, que as forças religiosas foram as únicas, dentre os grupos sociais importantes, que fizeram a revolução iraniana, embora tenham, sim, sequestrado e reprimido as outras três forças. Deve-se observar que, embora a população rural fosse maioria no Irã naquele momento, estava distanciada e pouco envolvida na revolução, embora apareça muito bem representada no parlamento revolucionário logo depois, e tenha-se beneficiado das novas estradas, escolas e construções nos anos 1980s e 1990s.

Diferente do Irã, o Egito não é estado que dependa primariamente do petróleo. Outras fontes de divisas importantes no Egito são o turismo, o que ganha pela administração do Canal de Suez, exportação de manufaturas e matérias primas, além do pagamento pelo aluguel do Canal (os cerca de 1,5 bilhões de dólares que o Egito recebe dos EUA entram nessa rubrica). Como importador de grãos, o Egito depende do exterior. Se viesse a adotar ideologia de radicalismo e desafio, como há hoje no Irã, todas as suas principais fontes de renda desapareceriam instantaneamente, e faltaria, inclusive, comida. Além do mais, as forças sociais ativas na revolução do Egito têm perfil e dinâmicas muito diferentes das que se viram no Irã. Pode-se tentar traçar um paralelo item a item, pela lista acima.

1. O BAZAAR: O bazaar é persa; em árabe, diz-se suq. Se se pudesse dizer que há alguma espécie de bazaar no Egito, seria pesadamente dependente do mercado de turistas. Os cristãos coptas têm aí lugar garantido. O suq portanto sempre tenderia a opor-se a políticas que assustassem os turistas ocidentais. Esse ano, por exemplo, por causa da agitação na Praça da Liberdade, os resultados do suq não serão muito bons. Um mercador em Khan al-Khalili contou-me uma vez que os piores anos de seu negócio foram 1952, 1956, 1967, 1973 – os anos da revolução e depois das guerras árabes-Israel que os nacionalistas muito celebraram mas que ele lamentava muito. Isso, porque foram anos sem turistas. É altamente improvável que o Mercado egípcio chegue algum dia a apoiar fundamentalistas que queiram estabelecer aqui alguma teocracia opressiva que espantaria para sempre os alemães que vêm em férias ou nos finais de semana.

2. TRABALHADORES BRAÇAIS E PROFISSIONAIS LIBERAIS: Esses são os grupos que se pode definir como principais instigadores do levante egípcio. O grupo 6 de Abril, de jovens operários ativistas, é o principal, desde o apoio que deu às greves no setor têxtil em Mahalla al-Kubra e em outros pontos, na luta por melhores salários e condições de trabalho. Houve mais de 3.000 movimentos de trabalhadores, no Egito, desde 2004. Os jovens operários ativistas estão entre as mais destacadas lideranças do levante desde a semana passada, e foram os primeiros a usar o Facebook e o Twitter para promover o movimento, interna e externamente.

3. FORÇAS SECULARES. Quando digo “seculares”, em relação ao Egito, não quero dizer que sejam ateus e agnósticos. São pessoas que vão à mesquita e rezam e creem. Mas também votam a favor de partidos que não se organizam primariamente em torno da religião. Dentre esses, o Novo Partido Wafd, um renascimento do velho partido liberal que dominou o Egito no período 1922-1952, no período “liberal” de eleições parlamentares e primeiros-ministros.

O partido Wafd representou originalmente os interesses dos latifundiários, seus amigos banqueiros e industriais, embora na origem o fato de ter pregado a libertação do Egito do mando britânico lhe tenha valido apoio da população mais pobre. Esses liberais reemergiram quando o governo começou a afastar-se do socialismo de Gamal Abdel Nasser e voltou a defender direitos de propriedade privada. Atraiu a solidariedade de muitos coptas e de muçulmanos de classe média. Embora tenha passado por divisões e perdido popularidade nas eleições recentes, é possível que, em situação de eleições livres e justas, o partido Wafd volte a ter alguma popularidade.

Há também o partido Amanhã (al-Ghad), de Ayman Nur, que obteve 8% dos votos na eleição presidencial de 2005. E o Movimento Kefaya! (“Basta!”). 

Esses três partidos – Wafd, Amanhã e Movimento Kefaya! – pregam respeito aos direitos humanos e exigem democracia parlamentar. Há ainda muitas figuras seculares no establishment cultural e literário e no mundo do cinema (como Adil Imam, ator cômico). Além, é claro, do partido governante, o Partido Nacional Democrático, de tendência em geral secular e contra o fundamentalismo islâmico. Embora o partido pareça ter condições de superar a associação ao nome de Hosni Mubarak e ter condições de concorrer com alguma chance em futuras eleições, nada assegura que o fim de Mubarak não determine também o fim de seu partido. Mas é o partido dominante no Parlamento, eleito, é verdade, em eleições que nada tiveram de livres e limpas.

4. AS FORÇAS RELIGIOSAS. Diferente do que se vê no Irã, há no Egito relativamente poucos clérigos dissidentes, mas deve-se contar entre eles o “tele-evangelista” Yusuf al-Qaradawi, que vive exilado no Qatar. O estado egípcio nacionalizou várias mesquitas e passou a controlar os grupos religiosos. Há poucos clérigos egípcios que gozem do respeito e da obediência de grupos laicos de que Khomeini gozava no Irã. O principal partido religioso é a Fraternidade Muçulmana, fundada em 1928.

Embora tenha constituído uma ala de militantes armados nos anos 1940s, foi duramente perseguida nos anos 1950s e 1960s e já não prega o uso político da violência armada. O pensador radical Sayyid Qutb é egresso desse movimento, mas foi criticado e desautorizado pela liderança da Fraternidade Muçulmana no final dos anos 1960s, e o movimento rejeitou suas doutrinas radicais (dentre outras, a ideia de declarar que outros muçulmanos menos radicais e dos quais discordava, seriam “infiéis”, “não-muçulmanos” e “antissunitas”. Ao final dos anos 1970s, os líderes da Fraternidade Muçulmana desejavam reconciliar-se com o governo de Anwar El Sadat.

Sadat aceitou que continuassem a existir, sob a condição de que desistissem da luta armada e de tentar derrubar o governo. Nos anos 1990s, a Fraternidade Muçulmana chegou a criticar movimentos radicais como a Jihad Islâmica Egípcia e, nesse sentido, pode-se dizer que mantém parceria tática com o Estado. A legislação egípcia não admite partidos religiosos, mas os candidatos da Fraternidade Muçulmana têm-se saído bem nas eleições parlamentares (sobretudo em 2006), todos inscritos como candidatos de outros partidos.

Então, recapitulemos. Profissionais liberais e ativistas dos movimentos de trabalhadores são, de longe, a principal força que se vê ativada nas manifestações de rua no Cairo – e têm papel muito mais determinante do que tiveram na Revolução Iraniana. O bazaar egípcio é muito menos ligado aos clérigos muçulmanos do que no caso do Irã, e não apoia nem financia políticos ligados à religião. Enquanto no bazaar iraniano os comerciantes várias vezes sofreram dura concorrência de produtos ocidentais, o bazaar  egípcio depende basicamente de turistas que vêm do ocidente. Os partidos seculares, entre os quais se pode incluir o NDP de Mubarak, têm uma vantagem organizacional em relação aos partidos religiosos, porque conservaram a capacidade de agir e fazer propaganda nos trinta anos do governo de Mubarak. Ainda não se sabe se a lei que proíbe que se organizem partidos de fundamento religioso será modificada. Se o for, a Fraternidade Muçulmana poderá voltar a apresentar candidatos próprios; caso contrário, permanecerá obrigada a incluir seus candidatos em listas eleitorais de outros partidos. Os muçulmanos sunitas egípcios não devem obediência implícita aos clérigos, nem por  tradição nem  por doutrina, e o establishment religioso sunita não tem, no Egito, a importância que os aiatolás xiitas têm no Irã. A Fraternidade Muçulmana, organização hoje em larga medida laica, não tem hoje apoio popular massivo, mas é possível que, em eleições limpas, alcance mais de 1/3 dos assentos com direito a voto no Parlamento.

Uma das causas da popularidade da Fraternidade Muçulmana hoje é o fato de sempre ter feito oposição ao governo de Mubarak; sem esse ‘alvo’ e sem outro claro programa político, é possível também que venha a perder votos. Outros políticos religiosos ou empresários podem aparecer, em atmosfera de maior liberdade, dividindo os setores religiosos do eleitorado. E a Fraternidade Muçulmana pode também evoluir mais na direção em que evoluiu o Partido Justiça e Desenvolvimento [AK] da Turquia, afastando-se de sua tradição de organização antiquada, sectária, clandestina. Nada, na ideologia da Fraternidade Muçulmana impede que o grupo participe de qualquer tipo de democracia parlamentar, ainda que a questão não tenha aparecido entre os temas propostos pelo fundador da Fraternidade, Hasan al-Banna.

Alguns analistas têm proposto que o Egito tenderá a apoiar a FM, sob ao argumento de que estaria havendo um renascimento da religiosidade no Egito – e, sim, nas últimas décadas, parece ter havido esse renascimento. Boa analogia, para os egípcios hoje, talvez sejam os evangélicos do sul dos EUA. Sempre que estou no Egito, vejo inúmeras semelhanças com a Carolina do Sul, no quesito religiosidade. Mas a evidência de que as pessoas frequentem as mesquitas, que as mulheres usem véu, ou que a religião pareça ser valor prestigiado, não implica necessariamente que votem a favor de grupo sectário, sob vários aspectos antiquado e paquidérmico, como a Fraternidade Muçulmana. Muitos muçulmanos religiosos praticantes trabalham nas fábricas e vivem portanto mais próximos do Movimento 6 de Abril, que dos “irmãos” da Fraternidade Muçulmana. Muitas mulheres usam véu porque o véu sentem que assim se legitimam para serem incluídas na força de trabalho e manifestar-se na esfera pública. A identidade nacional no Egito coexiste com a identidade religiosa. Os egípcios são nacionalistas apaixonados, para os quais a nação egípcia seria contexto abrangente, do qual os cristãos coptas são integrantes absolutamente legítimos.

Pesquisa da agência Pew recentemente divulgada (31/1/2011, “Egito, Democracia e Islã” [em inglês]  mostrava que 59% dos egípcios são defensores da democracia em praticamente todos os contextos pesquisados. 60% manifestaram preocupação alta e mediana a respeito da ameaça de extremismo religioso na sociedade egípcia. E 61% jamais sequer pensaram que haja algum tipo de disputa entre religiosos e setores modernizantes no Egito.

Dentre os 31% que entendem que haja algum tipo de disputa dentre religiosos e setores modernizantes, 59% favorecem as forças religiosas e 21% favorecem os setores modernizantes. Barry Rubin e Michael Totten, ao interpretar esses dados, erraram ao considerar que esses números corresponderiam a toda a população egípcia. A estatística só se aplica ao 1/3 da população egípcia que entende que haja algum conflito entre religião e setores modernizantes. 59% de 31% corresponde a 18% de toda a população egípcia e são os que votariam a favor de partidos fundamentalistas contra partidos modernizantes. O restante da população votaria a favor de setores modernizantes ou não creem que haja conflito significativo entre os dois setores. De modo geral, pode-se dizer que entender que não haja conflito entre modernização e religiosidade seja, sim, um ponto de vista democrático.

Não se pode de modo algum assumir que a Fraternidade Muçulmana é o futuro rosto da sociedade egípcia, e não há razão para supor que conte com maioria, com popularidade com ou meios de poder para conduzir um golpe de Estado. O mais provável é que os “Irmãos” ganhem ainda mais representatividade pela via parlamentar (como já está acontecendo desde 2006).

Não se pode saber, é claro, se haverá novas eleições parlamentares no Egito em futuro próximo, nem se a Fraternidade Muçulmana poderá concorrer como partido, ou que resultados obterá, pela via eleitoral que for. Deve-se prever que cheguem a ter maior influência num Egito democrático, do que tiveram na ditadura de Mubarak, mas não me parece razoável prever que alcancem alguma hegemonia. No poder, a Fraternidade Muçulmana proibirá que se consumam bebidas alcoólicas no Egito – o que será péssimo para a indústria do turismo, da qual depende a sobrevivência de milhões de egípcios. É verdade que, vez ou outras, grupos sociais atuam de modo irracional, contra seus interesses. Mas as Cassandras, por mais que falem, ainda não têm qualquer tipo de prova de que os egípcios venham a preferir essa via.

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