sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

“O mundo árabe está em chamas”


Segundo as sondagens, a maioria dos árabes considera que os EUA e Israel são as principais ameaças. Washington marcha vigorosamente para o desastre.

Artigo | 4 Fevereiro, 2011 - 01:00 | Por Noam Chomsky

Os aliados ocidentais do mundo árabe estão a perder rapidamente a sua influência. Foto do Movimento de Juventude 6 de Abril



"O mundo árabe está em chamas", informou a Al Jazira em 27 de Janeiro, ao mesmo tempo que, em toda a região, os aliados ocidentais "estão perdendo rapidamente a sua influência."

A onda de choque foi desencadeada pela dramática insurreição na Tunísia, que expulsou um ditador apoiado pelo Ocidente, com repercussões principalmente no Egito, onde os manifestantes superaram a brutal polícia do ditador.

Observadores comparam estes eventos com a queda dos domínios russos em 1989, mas há grandes diferenças.

A mais importante é que não existe um Mikhail Gorbachev entre as grandes potências que apoiam os ditadores árabes. Em vez disso, Washington e os seus aliados continuam a afirmar o bem-conhecido princípio de que a democracia só é aceitável na medida em que esteja em conformidade com os seus objetivos estratégicos e econômicos: é muito boa em território inimigo (até certo ponto), mas não no nosso quintal, por favor, a menos que seja devidamente domesticada.

Uma comparação com 1989 tem alguma validade: com a Romênia, onde Washington manteve o seu apoio a Nicolae Ceausescu, o mais cruel dos ditadores do Leste Europeu, até se ter tornado insustentável. Em seguida, Washington elogiou o seu derrube, ao mesmo tempo em que apagava o passado.

Esse é o padrão habitual: Ferdinand Marcos, Jean-Claude Duvalier, Chun Doo Hwan, Suharto e muitos outros gangsters úteis. Também ele pode estar em curso no caso de Hosni Mubarak, juntamente com os esforços de rotina para tentar garantir que o novo regime não se afaste muito do caminho traçado.

A esperança acual parece ser o general Omar Suleiman, leal a Mubarak, nomeado vice-presidente do Egito. Suleiman, o antigo chefe dos serviços de informações, é desprezado pelo povo insurreto quase tanto quanto o próprio ditador.

Um refrão comum entre os especialistas é que o medo do islamismo radical exige uma (relutante) oposição à democracia, por razões pragmáticas. Embora não sem algum mérito, a formulação é enganosa. A ameaça geral sempre foi a independência. No mundo árabe, os Estados Unidos e os seus aliados apoiaram com frequência radicais islâmicos, por vezes para evitar a ameaça do nacionalismo secular.

Um exemplo conhecido é a Arábia Saudita, o centro ideológico do islamismo radical (e do terror islâmico). Outro exemplo, de uma longa lista, é Zia ul-Haq, o mais brutal dos ditadores do Paquistão e favorito do presidente Reagan, que promoveu um programa de islamização radical (com financiamento saudita).

"O argumento tradicionalmente avançado dentro e fora do mundo árabe é que não há nada de errado, tudo está sob controle", diz Marwan Muasher, ex-funcionário jordaniano e atualmente director de investigação sobre o Oriente Médio do Carnegie Endowment. "Com esta linha de pensamento, as forças entrincheiradas argumentam que os opositores e as pressões externas que pedem reformas estão a exagerar as condições no terreno".

Assim, o povo pode ser demitido. As raízes desta doutrina vêm de longe e estão generalizadas em todo o mundo, também no território dos EUA. No caso de haver agitação, pode ser necessário fazer mudanças táticas, mas sempre cuidando de reassumir o controle.

O vibrante movimento pela democracia na Tunísia foi dirigido contra "um estado policial, com pouca liberdade de expressão ou de associação, e graves problemas de direitos humanos", governado por um ditador, cuja família era odiada pela sua corrupção. Esta foi a avaliação do embaixador dos EUA, Robert Godec, num telegrama de Julho de 2009 divulgado pela WikiLeaks.

Portanto, para alguns observadores, os documentos da WikiLeaks "deveriam criar entre o povo americano um sentimento reconfortante de que as autoridades não estão dormindo no ponto" – de fato, os telegramas são tão favoráveis às políticas dos EUA, que é quase como se Obama estivesse a promover fugas dele mesmo (ou assim escreve Jacob Heilbrunn no The National Interest.)

"A América devia dar uma medalha a Assange", diz o título do Financial Times. O principal analista de política externa do jornal, Gideon Rachman, escreve que "a política externa dos Estados Unidos aparece como principista, inteligente e pragmática – a posição pública assumida pelos EUA sobre qualquer questão dada é normalmente coincidente com a posição privada."

Neste ponto de vista, a WikiLeaks contradiz os "teóricos da conspiração" que questionam os motivos nobres habitualmente proclamados por Washington.

O telegrama de Godec sustenta estas opiniões – pelo menos, se não formos mais longe. Se o fizermos, como relata o analista Stephen Zunes no Foreign Policy in Focus, descobrimos que, com as informações de Godec na mão, Washington forneceu 12 milhões de dólares de ajuda militar para a Tunísia. Quando isso aconteceu, a Tunísia era um dos apenas cinco beneficiários estrangeiros: Israel (rotina); o Egito e a Jordânia, duas ditaduras do Oriente Médio; e a Colômbia, que há muito tem o pior histórico de direitos humanos e recebe a maior parte da ajuda militar norte-americana no hemisfério.

O destaque de Heilbrunn vai para o apoio árabe às políticas dos EUA em relação ao Irão, revelada pelas fugas de informação. Rachman também aproveita este exemplo, como fizeram os jornais e jornalistas em geral, saudando essas revelações encorajadoras. As reações mostram quão profundo é o desprezo pela democracia nas elites.

Ninguém diz o que pensa á população – o que se descobre facilmente. De acordo com sondagens divulgadas pelo Brookings Institution, em Agosto, alguns árabes concordam com Washington e com os comentadores ocidentais que o Irão é uma ameaça: 10 por cento. Em contraste, consideram os EUA e Israel como as principais ameaças (77 por cento, 88 por cento).

A opinião árabe é tão hostil às políticas de Washington que a maioria (57 por cento) acha que a segurança regional aumentaria se o Irã tivesse armas nucleares. Ainda assim, "não há nada de errado, tudo está sob controle" (é como Marwan Muasher descreve a fantasia dominante). Os ditadores apoiam-nos [aos EUA]. Os seus súditos podem ser ignorados, a menos que quebrem as suas cadeias, nesse caso a política precisa ser ajustada.

Outras fugas também parecem dar apoio às opiniões entusiasmadas com a nobreza de Washington. Em Julho de 2009, Hugo Llorens, embaixador dos EUA em Honduras, informou Washington de uma investigação da embaixada sobre "questões jurídicas e constitucionais em torno do afastamento forçado em 28 de Junho do presidente Manuel 'Mel' Zelaya.”

A embaixada concluiu que "não há dúvida de que os militares, o Supremo Tribunal e o Congresso Nacional conspiraram em 28 de Junho, no que constituiu um golpe ilegal e inconstitucional contra o Poder Executivo." Admirável, exceto pelo fato de o presidente Obama ter atuado em ruptura com quase toda a América Latina e a Europa, apoiando o regime golpista e desvalorizando as atrocidades subsequentes.

Talvez as revelações mais notáveis da WikiLeaks tenham a ver com o Paquistão, revistas pelo analista político Fred Branfman na Truthdig.

Os telegramas revelam que a embaixada dos EUA está bem ciente de que a guerra de Washington no Afeganistão e no Paquistão não só intensifica o desenfreado anti-americanismo, mas também “os riscos de desestabilização do estado paquistanês” e ainda levanta a ameaça do pesadelo supremo: que as armas nucleares possam cair nas mãos de terroristas islâmicos.

Mais uma vez, as revelações "deveriam criar uma reconfortante sensação – de que os funcionários não estão a dormir no ponto" (palavras de Heilbrunn) – enquanto Washington marcha vigorosamente para o desastre.

3/2/2011
Publicado originalmente in In These Times
Retirado de Zspace
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Enviado pela Vila Vudu

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