sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Por que os EUA temem a democracia árabe


5/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Condoleeza, Condoleeza
Dê um visto para ele
[Cantado, ouvido na Praça Tahrir, Cairo]

Quem esteja acreditando que a “transição pacífica” de Washington liderada pelo vice-presidente Omar Suleiman (vulgo Sheikh al-Tortura, como se ouve de manifestantes e ativistas dos direitos humanos) satisfará multidão egípcia acredita também que Adolf Hitler ou Joseph Stalin ter-se-iam safado com qualquer simples injeção de silicone.

A multidão no Egito é urbana e jovem e luta por pão, liberdade, democracia, internet, empregos e algum futuro decente, – e outras multidões por todo o mundo árabe, dois terços da população total, entendem perfeitamente o movimento dos egípcios.

Verdadeira “mudança em que se pode acreditar” (na versão egípcia) não significa apenas se livrar de um ditador que dura 30 anos, mas também do torturador-em-chefe, que até hoje sempre foi interlocutor-chave de Washington, Telavive e capitais europeias, e expoente de um regime apodrecido até o âmago, dependente da exploração sem piedade dos próprios cidadãos e receptador de ajuda que os EUA lhe oferece para implantar agendas a favor das quais virtualmente ninguém votaria no mundo árabe.

“Transição ordeira” pode também ser tomada como eufemismo chocante para “sentar no muro” – o que é muito diferente de exigir claramente qualquer democracia. A Casa Branca está convertida numa sucessão de pretzels brancos dedicados a tentar salvar o que reste do conceito. Mas fato é que, tanto quanto o Faraó Mubarak é escravo da política externa dos EUA, também o presidente Barack Obama está preso na arapuca de imperativos geopolíticos e vastíssimos interesses corporativos que não pode nem sonhar com incomodar.

A “estabilidade”, em rota de colisão

Para encurtar: trata-se de petróleo e de Israel. Essa a essência da política externa de Washington nos últimos 60 anos, no que tenha a ver com Oriente Médio, árabes e o mundo muçulmano em geral. Isso implicou dar apoio a muitos ditadores e vasto sortimento de autocracias e salpicar bases militares por aqueles respectivos territórios. Exemplo crucial é a história de como a CIA-EUA, a Agência Central de Inteligência dos EUA derrubou o governo democrático no Irã em 1953. [1] Geoestrategicamente, a palavra-código para esse estado de coisas é “estabilidade”.

O papel do Egito é altamente estratégico. Eis como o próprio Obama elogiou a importância estratégica de Hosni Mubarak e seu regime, quando foi ao Cairo em junho de 2009 para enviar sua mensagem de liberdade ao mundo árabe: “[o presidente Mubarak] tem sido aliado importante e confiável dos EUA em muitos aspectos; manteve a paz com Israel – coisa muito difícil de fazer naquela região.”

Portanto, como pilar da “paz fria” com Israel, o Egito é paradigma. É fenômeno do bipartidarismo, em termos que os EUA entendem: Republicanos e Democratas dizem exatamente a mesma coisa sobre o Egito. E há o Canal de Suez, pelo qual passam 1,8 milhões de óleo cru por dia. Mas o fato de ser “parceiro de Israel” nos acordos de Camp David em 1979 é que explica os bilhões de dólares que chovem sobre os militares egípcios e as três décadas de apoio incondicional à ditadura corrupta de Mubarak (e “que ninguém se engane”: o comprometimento dos EUA nessa imensa loja de horrores está, sim, documentado, nos cofres de Mubarak). Em via paralela, a “estabilidade” também se traduz em péssimas condições de vida para virtualmente todos os egípcios; direitos democráticos para as populações locais sempre são secundários, ante considerações geoestratégicas.

O status geoestratégico dominante no Oriente Médio, que é o eixo Washington/Telavive, hipnotizou a opinião pública ocidental, induzindo-a a aceitar o mito democracia árabe = fundamentalismo islâmico, apagando qualquer informação sobre como foram esmagadas todas as tentativas de rebelião popular no mundo árabe ao longo das últimas décadas. O governo israelense vai além dessa equação. Para Telavive, é fundamentalismo islâmico = terrorismo, logo, democracia árabe = terrorismo. Nesse quadro, o Mubarakismo é essencialmente aliado, hoje mais que nunca.

Ou eu ou o caos

A evidência de que o ex-presidente Anwar Sadat fez um acordo com Israel em 1979 em troca de preciosos presentes dos EUA – sistema que Mubarak perpetuou – não significa que Egito e Israel vivam agarrados aos beijos.

Veja-se, por exemplo, a TV estatal egípcia que insistentemente repete a óbvia mentira de que haveria espiões israelenses nas ruas do Cairo disfarçados como jornalistas ocidentais – e que levou aos ataques organizados, aterradores, não só contra jornalistas estrangeiros mas também contra egípcios que trabalhem com eles. E, acreditem ou não, o Mubarakismo teve fígado, até, para incluir o Mossad israelense, além dos EUA, mais Irã, Hezbollah e Hamás, como copartícipes de uma gigantesca conspiração para derrubá-lo.

E, isso, quando, de fato, foi o Jihad Amn-Ad-Dawlah (“Segurança do Aparelho de Estado”) – a mais sinistra de todas as agências de segurança de Estado, unidade de contraterrorismo que têm laços extremamente próximos com a CIA, o FBI e o Mossad – que atiçou seus grupos de ataque contra os manifestantes e a mídia estrangeira como se fossem um só grupo, financiados pelos associados bilionários do filho de Mubarak (o qual, afinal, sabe-se agora, não voou para Londres).

Para aumentar a perversidade, Mubarak diz agora que “está cheio” e quer deixar o governo, mas não pode porque, sem ele, será o caos – caos que os cães de seu próprio governo provocaram. Ao mesmo tempo, seu número 2, Suleiman, culpa a Fraternidade Muçulmana pelos “tumultos”.

Na medida em que a revolução ameaça a sobrevivência política de toda uma classe governante no Egito – incluindo a atual junta militar de governo de Suleiman, primeiro-ministro Ahmed Shafiq, ministro da Defesa marechal-de-campo Mohamed Tantawi e tenente-general Sami Annan, chefe do estado-maior do exército –, os jovens atores, porque são expressão de comunidades locais, não são manipuláveis pelas potências estrangeiras. São atores novos, mais autônomos, mais imprevisíveis, mais plenos de autorrespeito. Mais um fator que abala o mito norte-americano da “estabilidade”.

O mais extraordinário é que esses novos atores que emergem no Maghreb, Mashrek e Oriente Médio colidem diretamente contra a obsessão israelense com manter o status quo altamente desequilibrado (que inclui o genocídio em câmera lenta dos palestinos) – e provocam gigantesco confronto estratégico entre os interesses dos EUA e os interesses de Israel.

O governo Obama entendeu que a questão absolutamente crucial, a questão a ser resolvida, é a tragédia dos palestinos. Agora, o governo está absolutamente impedido de tentar qualquer acordo com Israel, que vive estado de paranóia aguda, sentindo-se cercado por forças “hostis”: o Hezbollah no Líbano, o Hamás em Gaza, uma Turquia islâmica cada dia mais assertiva, um Irã “nuclear” e um Egito dominado pela Fraternidade Muçulmana...

A verdade vos libertará – talvez...

“Mas eu creio profunda e inabalavelmente que todos os povos anseiam por algumas coisas: capacidade para manifestar-se e de ter voz sobre o modo como cada um é governado; confiança na lei e na justa administração da justiça; governo transparente que não roube o povo; liberdade para viver como se escolha viver. Não são ideais só norte-americanos: esses são direitos humanos, e, por isso, os EUA os apoiarão sempre, em todos os lugares” [2].

Eis Obama no Cairo, em 2009. Os EUA estarão de fato apoiando esses direitos, agora que os egípcios estão na rua, dispostos a morrer por eles?

Dado que Obama foi ao Cairo para “vender” o caso a favor da democracia (e pode-se até dizer que conseguiu), pode-se apostar que o establishment de Washington fará tudo que puder para tentar que haja eleições realmente democráticas de “controle de danos” no Egito. Os mercados financeiros e políticos maquiavélicos (e nem se está falando da direita irada obsessiva) estão praticamente rezando para que a Fraternidade Muçulmana converta-se em realidade alternativa, de modo a legitimar finalmente, para sempre, o conceito de uma ditadura militar eterna no Egito.

Não estão percebendo que os atores reais no Egito, as massas urbanas de classe média – o povo que está protestando pacificamente na Praça Tahrir – sabe perfeitamente que o Islã fundamentalista não é a solução.

As duas principais organizações de massa no Egito são a Fraternidade Muçulmana e a igreja cristã copta – ambas duramente perseguidas pelo regime de Mubarak. Mas há hoje novos movimentos que serão crucialmente importantes no futuro, como os novos ativistas trabalhistas do Movimento 6 de Abril e as associações de profissionais liberais, além do Novo Partido Wafd, renascimento do partido que dominou o Egito dos anos 1920s aos anos 1950s, quando havia eleições parlamentares e primeiro-ministro reais no país.

A Fraternidade Muçulmana não alcançará 30% dos votos em eleições livres e limpas (e creem firmemente na democracia parlamentar). Não são força hegemônica e com certeza não são a face do novo Egito. De fato, há forte probabilidade de que se tornem cada vez mais parecidos com o Partido Justiça e Desenvolvimento da Turquia (AKP, em turco). Além disso, segundo pesquisa Pew recentemente divulgada, 59% dos egípcios desejam a democracia parlamentar; e 60% são contra o extremismo religioso [3].

O Egito vive essencialmente do turismo, de pagamentos para utilização do Canal de Suez, de exportação de produtos agrícolas e manufaturados e da ajuda (principalmente militar) como o 1,5 bilhão anual que recebe dos EUA. Tem grande carência de grãos, que é obrigado a importar (e causa principal dos aumentos dos preços dos alimentos, causa dos protestos). Tudo isso gera alta dependência do mundo externo. O suq egípcio, (o bazaar), com sua grande comunidade de cristãos coptas, depende absolutamente dos turistas estrangeiros [3].

É razoável imaginar que um governo democrático e realmente representativo no Egito teria inevitavelmente de abrir a fronteira com Gaza, o que libertaria, de fato, centenas de milhares de palestinos. E que aqueles palestinos, plenamente apoiados pelos vizinhos no Egito, no Líbano e na Síria, na luta por seus direitos legítimos, virariam de cabeça para baixo a tal “estabilidade” da Região.

Com o quê, voltamos sempre à velha cantoria. Para a Washington bipartidária, há democracias “boas” (as que continuam a servir aos interesses estratégicos dos EUA) e democracias “más”, que votam “errado” (como em Gaza, ou num Egito futuro, que votam contra os interesses dos EUA).

Esse é o segredo sujo da “transição ordeira” no Egito – que implica a condenação acovardada de Washington contra a repressão violenta aos manifestantes e a jornalistas estrangeiros. Tudo OK – desde que a ditadura militar continue onde sempre esteve e o status quo congelado fique como está. Não bastasse, a sacrossanta Israel já apareceu para elogiar Mubarak; significa que Telavive fará o diabo para “vetar” Mohamed ElBaradei como líder da oposição.

Está falando comigo?

Afinal, Washington já comprou o Egito e seu exército. Suleiman trabalha para Washington, não para o Cairo. Eis mais um significado da “estabilidade”.

Washington jamais deu grande importância à lei marcial no Egito, que permite esmagar todas as reivindicações de trabalhadores, os militantes que lutam contra abusos dos direitos humanos, para não falar do alto desemprego entre os jovens e recém-formados das universidades que mal conseguem sobreviver num sistema megacorrupto. Ao longo dos anos, a “estabilidade” literalmente assassinou um Nilo de operários ativistas, de jovens idealistas, de militantes de direitos humanos e de democratas progressistas.

Em mundo menos alucinado – e se Obama decidisse fazer – a Casa Branca estaria incondicionalmente ao lado dos manifestantes das praças do Cairo. Fácil imaginar o bem que esse movimento faria à imagem dos EUA e o espetacular sucesso.

Para começar, apagaria instantaneamente a percepção, na rua árabe, de que a resposta à Frankenstein, de Mubarak – que absolutamente ignorou Obama – mostra que o ditador está convencido de que se safará. Mais uma prova de o quanto os EUA tornaram-se irrelevantes no Oriente Médio: o rabo está abanando o cachorro.

Mubarak, alucinada e desavergonhadamente autorreferente, deve ter pensado: se o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu pode humilhar Obama publicamente, por que eu não posso?

A rua árabe sabe muito bem o quanto o sistema de Mubarak foi subornado para mandar gás natural para Israel a preços ridiculamente baixos; o quanto o Egito reforça o bloqueio contra civis em Gaza; e como, subornado pelos EUA, o sistema de Mubarak age como coringa de Israel. Netanyahu rouba terra dos palestinos, ou mata Gaza de fome, e Mubarak usa os bilhões de dólares que recebe dos EUA a título de ajuda militar, para esmagar o poder do povo no Egito – e tudo isso, aos olhos da rua árabe, é apoiado por Washington. Depois, vêm as carpideiras da direita norte-americana, com aquele “por que nos odeiam?”!

Obama dizer a Mubarak que “agora” significa “agora” – e falando não só ao presidente, mas a toda a gangue fardada – afastaria de Obama todo o hiper-poderoso lobby sionista-conservadores nos EUA. Não seria mau negócio, considerando que, afinal, todo o petróleo continua enterrado em terra árabe, o que torna duas vezes mais complexa a complexidade da política do Oriente Médio. Pena que nunca acontecerá. “Transição ordeira”? Tomem cuidado ao pedir milagre ao céus.

NOTAS
1. “A história secreta da CIA no golpe do Irã, 1953”[em inglês]. Do texto publicado: “Esse excerto da história dessa operação da CIA (“operation TPAJAX”) foi divulgado pelo jornalista  James Risen do The New York Times nas edições de 16 de abril e 18 de junho de 2000, e postado também em seu blog” [NTs].

2. 4/6/2009, “Discurso de Obama no Cairo”, em português, de Viomundo, reproduzido no Blog do Joildo ).

3. Sobre a pesquisa Pew e esses dados, ver “O Egito 2011 não é o Irã 1979”, 2/2/2011, Juan Cole, Informed Comment, em português.

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