“Ninguém tem o monopólio da verdade”
15/10/2014, Sergey Lavrov, Information
Clearing House
Traduzido da transcrição em
inglês pelo pessoal da Vila Vudu
Washington
declarou abertamente seu direito ao uso unilateral de força militar onde bem
entenda, para fazer avançar seus próprios interesses. A interferência militar
tornou-se norma, apesar do lamentável resultado de todas as ações de força que
os EUA empreenderam nos últimos anos. Sergey Lavrov, 27/9/2014
Muito
obrigado, Sr. Presidente.
Senhoras e
senhores,
Há crescente
evidência hoje de uma contradição entre esforços coletivos e deliberados na
direção de desenvolverem-se respostas adequadas a desafios comuns de todos nós,
e a aspiração, de alguns estados, por dominação e por fazer ressuscitar um
arcaico pensamento de bloco, baseado na disciplina militar e numa lógica errada
de amigo ou inimigo.
A aliança
ocidental liderada pelos EUA que se autoapresenta como campeã da democracia, do
estado de direito e da defesa de direitos humanos em vários países, age de uma
posição diametralmente oposta na arena internacional, rejeitando os princípios
democráticos da igualdade soberana entre todos os estados, e sempre tentando
decidir, pelos demais, o que é bem e o que é mal.
Washington
declarou abertamente seu direito ao uso unilateral de força militar onde bem
entenda, para fazer avançar seus próprios interesses. A interferência militar
tornou-se norma, apesar do lamentável resultado de todas as ações de força que
os EUA empreenderam nos últimos anos. A sustentabilidade do sistema
internacional foi severamente abalada pelo bombardeio, pela OTAN, contra a
Iugoslávia, pela intervenção militar no Iraque, pelo ataque contra a Líbia e
pelo fracasso no Afeganistão.
Só graças a
intensos esforços diplomáticos foi possível impedir mais uma agressão, daquela
vez contra a Síria, em 2013. Há uma impressão involuntária de que o objetivo
das várias ‘revoluções coloridas’ e outros projetos para derrubar governos que
não interessem aos EUA, é criar cada vez mais caos e instabilidade. Hoje, a
vítima dessa política arrogante é a Ucrânia. A situação ali mostrou as falhas
sistemáticas, profundamente enraizadas, da arquitetura ainda prevalecente na
área euro-atlântica. O ocidente embarcou num curso rumo à estruturação vertical
da humanidade, talhada pelos seus próprios padrões, que estão muito longe de
serem inofensivos.
Depois de
terem declarado vitória na Guerra Fria e, logo depois, o chamado “Fim da
História”, os EUA e a União Europeia optaram por expandir a área geopolítica
sob controle deles, sem qualquer atenção à necessidade de preservar o
equilíbrio entre os interesses legítimos de todos os povos da Europa. Os
parceiros ocidentais não deram ouvidos aos nossos inúmeros avisos, de que seria
inadmissível que violassem os princípios da Carta da ONU e o que determina o Helsinki Final Act. Repetidas e
repetidas vezes recusaram-se a qualquer trabalho conjunto para estabelecer um
espaço comum de segurança e cooperação iguais e indivisíveis, do Atlântico ao
Oceano Pacífico.
A proposta
russa para a redação do Tratado de Segurança Europeia foi rejeitada.
Disseram-nos diretamente que as garantias legais de segurança comum a todos só
‘garantem’ os membros da Aliança da Atlântico Norte. Hoje, continuam a avançar
para o leste, apesar de todas as promessas de que não fariam o que estão
fazendo.
A mudança
instantânea da OTAN, para uma retórica de hostilização, para o fim de qualquer
cooperação com a Rússia, até em detrimento de interesses do próprio ocidente, e
a construção de infraestrutura militar junto às fronteiras da Rússia revelam a
incompetência da aliança, que não consegue alterar o código genético com o qual
foi inventada durante a Guerra Fria.
O golpe de
Estado apoiado por EUA e União Europeia na Ucrânia e convertido em
‘justificativa’ automática para todos e quaisquer atos das autoproclamadas
autoridades em Kiev, que optaram por suprimir pela violência a parte do povo
ucraniano que rejeitou todas as tentativas para impor no país uma ordem
anticonstitucional e decidiu defender seu direito aos próprios idioma, cultura
e história. É precisamente o assalto agressivo contra esses direitos que ajudam
a população da Crimeia a tomar o próprio destino nas mãos, e fazer suas
escolhas na direção da autodeterminação.
Foi escolha
absolutamente livre, não importa o que tenham inventado os mesmos que são
responsáveis básicos pelo conflito interno na Ucrânia. Esforços gerais para
distorcer a verdade e ocultar fatos por trás de um véu de acusações foram
coisas que lá estiveram em todos os estágios da crise ucraniana. Nada se fez
para levar aos tribunais os culpados pelos sangrentos eventos de fevereiro na
praça Maidan e pelo número escandaloso de mortes em Odessa, Mariupol e outras
regiões da Ucrânia. A
escala do horrendo desastre humanitário provocado por atos do exército
ucraniano no sudeste da Ucrânia tem sido deliberadamente manipulada e reduzida.
Recentemente,
novos fatos horríveis foram trazidos à luz, quando se descobriram covas para
enterramento em massa, nos subúrbios de Donetsk. Apesar da Resolução n. 2166 do
Conselho de Segurança da ONU, não se levou a efeito nenhuma investigação ampla
e independente sobre as circunstâncias da queda do avião malaio sobre
território da Ucrânia. Os perpetradores de todos esses crimes têm de ser
identificados e levados a julgamento, ou continuará a ser difícil que aconteça
uma reconciliação nacional na Ucrânia.
A Rússia
está sinceramente interessada na restauração da paz naquele país vizinho, o que
pode ser facilmente bem compreendido por todos que tenham qualquer conhecimento
da história dos laços fraternais profundos entre os dois povos. O caminho para
um acordo político é bem conhecido. Em abril passado, Kiev já assumira a
obrigação, na Declaração de Genebra, assinada por Rússia, Ucrânia, EUA e União
Europeia, de iniciar imediatamente um amplo diálogo nacional, com a
participação de todas as regiões e forças políticas na Ucrânia, com vistas a
fazer uma reforma da Constituição. A implementação dessa obrigação permitiria
que todos os ucranianos concordassem sobre viverem conforme suas tradições e
cultura, e permitira que a Ucrânia restaurasse seu papel orgânico como elo de
ligação entre várias partes do espaço europeu, o que naturalmente implica
preservar e respeitar seu
status neutro, não de bloco.
Estamos
convencidos de que com boa vontade, e desde que todos se recusem a apoiar o
partido pró-guerra em Kiev, que tenta empurrar o povo ucraniano para o abismo
da catástrofe nacional, há
uma saída para fora da crise, ao nosso alcance. A via para superar a crise foi
aberta pelo acordo de cessar-fogo no sudeste da Ucrânia – resultado de
iniciativas dos presidentes Poroshenko e Putin. Com a participação de seus
representantes em Kiev, Donetsk, Lugansk e da Organização de Segurança e
Cooperação da Europa e da Rússia, estão sendo tomadas medidas práticas para a
implementação sucessiva desses acordos, incluindo a separação das partes em
conflito, a remoção de armas pesadas que haja na Ucrânia e em mãos de milícias,
e a criação de mecanismos de monitoramento através da Organização de Segurança
e Cooperação da Europa.
A Rússia
está preparada para continuar a promover ativamente o acordo político mediante
o bem conhecido processo de Minsk e outros formatos. Contudo, é preciso que
fique absolutamente claro que estamos fazendo isso em nome da paz,
tranquilidade e bem-estar do povo ucraniano – não para satisfazer ambições de
um ou outro. Tentativas de pressionar a Rússia ou de tentar fazê-la abandonar
seus valores, a verdade e a justiça não têm chance alguma de sucesso.
*****
Permitam-me
relembrar um pouco da história não muito distante. Como condição para
estabelecer relações diplomáticas com a União Soviética em 1933, o governo dos
EUA exigiu de Moscou garantias de não interferência nos assuntos domésticos dos
EUA e a obrigação de não empreender qualquer ação com vistas a mudar a ordem
política e social nos EUA. Naquele momento, Washington temia um vírus
revolucionário, e aquelas garantias foram dadas. Essa foi a base, é claro, para
reciprocidade entre os EUA e a União Soviética. Talvez faça sentido voltar a
esse tópico e reproduzir as exigências dos EUA daquele momento – agora em
escala universal.
Por que a
Assembleia Geral não adota uma declaração da inadmissibilidade de qualquer
interferência em assuntos internos de estados soberanos? Sobre a
inadmissibilidade de um golpe de estado como método para mudanças no poder? É
mais que hora de excluir completamente das interações internacionais toda e
qualquer tentativa, de alguns estados, de aplicar pressões ilegítimas, sobre
outros estados. A total falta de qualquer sentido e a natureza contraproducente
de sanções unilaterais são óbvias, se se considera o exemplo do bloqueio que os
EUA fazem contra Cuba.
A política
dos ultimatos e a filosofia da supremacia e do domínio não combinam
adequadamente com o que o século 21 exige de nós; e trabalham contra o objetivo
de desenvolver-se uma ordem mundial policêntrica democrática.
A Rússia
está promovendo uma agenda positiva e de unificação. Sempre estivemos e
continuamos abertos à discussão das mais complexas questões, não importa o
quanto possam, de início, parecer insolúveis. Sempre estaremos preparados a
buscar compromissos e um equilibramento de todos os interesses, até mesmo uma
troca de concessões, mas só se a discussão for realmente respeitosa e
equitativa. Os acordos de Minsk, assinados dias 5 e 19 de setembro, como saída
para a crise ucraniana, e o compromisso do cronograma do acordo entre Kiev e a
União Europeia são bons exemplos a seguir, como a declaração, finalmente, de
que Bruxelas está pronta para iniciar negociações sobre o estabelecimento de um
acordo de livre-comércio entre a União Europeia e a União Aduaneira de Rússia,
Bielorrússia, Cazaquistão, como proposto pelo presidente Putin em janeiro de
2014.
A Rússia
nunca desistiu de clamar pela harmonização dos projetos de integração na Europa
e Eurásia. A política dos marcos e
cronogramas políticos para essa convergência de integrações seria real
contribuição ao trabalho da Organização de Segurança e Cooperação da Europa, no
tópico Helsinki Plus 40”.
*****
Outra área
crucial desse trabalho seria lançar uma discussão pragmática, livre de
ideologia, sobre a arquitetura política e militar da região euro-atlântica, de
tal modo que não só os membros da OTAN mas todos os países da região, inclusive
Ucrânia, Moldávia e Geórgia, pudessem partilhar da mesma segurança equitativa e
indivisível, sem que ninguém fosse obrigado a uma falsa escolha do tipo “ou
está conosco, ou está contra nós”. Não se devem admitir novas linhas de divisão
na Europa, tanto mais que, por causa da globalização, essas linhas podem
rapidamente se converter em divisão insuperável entre o ocidente e o resto do
mundo.
Deve-se
declarar com honestidade, que ninguém tem o monopólio da verdade e ninguém é
capaz de recortar processos globais e regionais para adaptá-los só às suas
próprias necessidades. Hoje não há alternativa ao desenvolvimento de um
consenso que afirme as regras da governança sustentável e novas circunstâncias
históricas de pleno respeito pela diversidade cultural e civilizacional do
mundo – o que gera uma multiplicidade de modelos de desenvolvimento. Será
tarefa difícil, sempre trabalhosa e cansativa, alcançar esse consenso em todas
as questões, mas o reconhecimento do fato de que a democracia em cada estado é
a pior forma de governo exceto todas as demais também exigiu muito tempo e
trabalho – até que Churchill proclamou seu veredito.
É chegada a
hora de assumir a inevitabilidade dessa verdade fundamental nos assuntos
internacionais, onde há hoje imenso déficit de democracia. Claro: alguns terão
de superar ideias já velhas de séculos, e abandonar para sempre fantasias de
excepcionalismo ou de raridade total eterna. Mas não há outro meio para seguir
avante. Esforços conjuntos só podem surgir a partir do princípio de respeito
mútuo e levando-se em consideração os interesses das demais partes. É o que se
faz, por exemplo, nos quadros do Conselho de Segurança da ONU, no G20, entre os
países BRICS e na Organização de Cooperação de Xangai.
*****
A teoria do
valor do trabalho coletivo tem sido reafirmada pela prática, e aí se inclui o
progresso na resolução da situação criada em torno do programa nuclear iraniano
e a bem-sucedida desmilitarização química da Síria. Sobre essa questão, e por
falar em armas químicas, gostaríamos de receber informação autêntica sobre o
estado dos arsenais químicos na Líbia. Entendemos que nossos colegas da OTAN,
depois de bombardearem aquele país, ao arrepio do que determinam resoluções do
Conselho de Segurança da ONU, não gostariam de aprofundar ainda mais a situação
confusa e perigosa que criaram. Mas fato é que o problema de arsenais químicos
não controlados na Líbia é grave demais para que possamos fingir que nada
vemos.
Entendemos
que o secretário-geral da ONU também tem obrigação de dar prova de sua
responsabilidade nessa questão. Importante, nesse momento, é ver as prioridades
globais e evitar deixar-se prender como refém a uma agenda unilateral. Há
urgente necessidade de fugirmos dos duplos padrões e abordagens dúbias na
resolução de conflitos. De modo geral, todos concordamos que a questão chave é
combater resolutamente contra terroristas que tentam pôr sob controle deles
territórios cada dia mais extensos no Iraque, Síria, Afeganistão e na área do
Sahara-Sahel.
Sendo esse o
caso, essa tarefa não pode ser sacrificada a esquemas ideológicos ou ao desejo
de ‘resolver’ casos pessoais. Terroristas, não importa por trás de que slogans
se escondam, são fora da lei; e como tal devem ser tratados. Sobretudo, e nem é
preciso dizer, a luta contra o terrorismo deve ser feita sobre base firme da
lei internacional. Fase importante nesse processo é a adoção unânime de várias
resoluções de segurança da ONU,
incluindo resoluções sobre combatentes terroristas estrangeiros; na direção
contrária, toda e qualquer tentativa para atropelar com contravenções a Carta
da ONU de modo algum contribuem para o sucesso de nossos esforços conjuntos.
A luta
contra terroristas no território da Síria tem de ser organizada em cooperação
com o governo sírio, o qual já disse claramente que está pronto a colaborar.
Damasco já mostrou sua capacidade para cooperar com programas internacionais,
com a participação que teve na destruição de seus arsenais químicos. Desde o
primeiro momento da Primavera Árabe, a Rússia sempre clamou que aquele
movimento não fosse deixado à mercê de extremistas, e que se estabelecesse uma
frente unida para responder à crescente ameaça terrorista. Fomos contra a
tentação de converter em ‘aliado’ praticamente qualquer um que se proclamasse
inimigo de Bashar Al Assad – como Al-Qaeda, Al Nusra ou qualquer outro parceiro
desses que se interessavam por mudança de regime, inclusive o ISIL, que hoje está no centro das
nossas atenções.
Como diz o
ditado, melhor tarde do que nunca. Não será a primeira vez que a Rússia faz
contribuição muito real para a luta contra oISIL e outras facções terroristas ativas na
região. Enviamos grandes lotes de armas e de equipamento militar para os governos do Iraque, da Síria e de
outros países no Oriente Médio e no Norte da África, e continuaremos a apoiar
os esforços deles para suprimir terroristas. A luta contra a ameaça terrorista
exige abordagem ampla; queremos arrancar a causa raiz do terrorismo, em vez de
nos deixar condenar a reagir sempre só contra os sintomas. O ISIL é apenas parte do problema.
Propomos que
se lance, sob os auspícios do Conselho de Segurança da ONU, um estudo amplo e
profundo sobre a ameaça extremista e terrorista, e aspectos dessas ameaça no
Oriente Médio e região norte da África.
Essa
abordagem integrada implica também que o conflito de longa duração deve ser
identificado, em primeiro lugar, entre árabes e Israel. A questão
Israel-Palestina arrasta-se sem solução há várias décadas e é amplamente
reconhecida como um dos principais fatores de instabilidade na região, que
ajuda os extremistas no trabalho de recrutar mais e mais jihadistas.
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Outra área
literalmente urgente para nosso trabalho comum é unir nossos esforços para
implementar decisões da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU para
combater o vírus ebola. Nossos médicos já estão trabalhando na África. Há
planos para mandarmos mais ajuda humanitária, assistência, equipamentos,
instrumentos médicos, remédios e esquipes de especialistas para dar assistência
aos programas da ONU na Guiné, Libéria e Serra Leoa.
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A ONU foi
criada das ruínas da IIª Guerra Mundial, e já está entrando no ano de seu 70º
aniversário. É obrigação para todos nós celebrarmos de modo apropriado o
aniversário daquela grande vitória, e pagar tributo à memória dos que morreram
pela liberdade e pelo direito de cada povo determinar o próprio destino.
As lições
daquela guerra terrível, e o curso completo dos eventos no mundo de hoje,
exigem que unamos esforços e esqueçamos os interesses unilaterais e os ciclos
das eleições nacionais. Quando se trata de enfrentar ameaças globais contra
toda a humanidade, é preciso impedir que o egoísmo nacional prevaleça sobre
nossa responsabilidade coletiva.
Muito
obrigado.
Não há como se discordar de uma só palavra do brilhante discurso do chanceler russo, mas em relação aos EUA é como jogar pérolas para os porcos, literalmente.
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