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domingo, 14 de junho de 2015

G7: Moedas a proteger, países a bombardear


Salve-se o “Nº 1” e danem-se as consequências
12-14/6/2015, [*] Vijay Prashad, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Membros do G7 -  ao fundo o Schloss Elmau
Os membros do G7 acabam de concluir sua 41ª reunião de cúpula. Presidentes e primeiros-ministros de Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, do Reino Unido e dos EUA reuniram-se num majestoso palácio bávaro, o Schloss Elmau. Localização perfeita para o convescote dos Masters of the Universe.
Proclamam que a ocupação deles todos é manter a ordem do mundo. Na verdade, o que mais os interessa é preservar, custe o que custar, o próprio poder.
A primeira reunião do G7 aconteceu em 1974 no Castelo de Rambouillet – grande castelo feudal na França. O objetivo daquela reunião era que os estados do G7 encontrassem estratégia comum para enfrentar o cartel de petróleo da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) e para a Nova Ordem Econômica Mundial (NOEM).
A OPEP havia reduzido a oferta, para fazer subir os preços do petróleo cru, o que ameaçava o crescimento econômico nos países industrializados avançados. A NOEM havia sido aprovada na Assembleia Geral da ONU, com apoio dos estados do Terceiro Mundo.
E exigia-se pois uma nova arquitetura econômica e política internacional para beneficiar as nações mais pobres. O G7 foi criado para quebrar as duas coisas, a OPEP e a NOEM. Em larga medida, conseguiu.
Engolir inteiro o mundo
Depois da extinção da URSS em 1991, o G7 incluiu a Rússia em sua órbita, e em 1994 converteu-se em G8. A questão então era criar suficiente consolidação que impedisse a emergência de um novo polo econômico e político no planeta – que já se via no horizonte, com o crescimento da China.
Com a crise financeira mundial em 2007, o ocidente já muito puído, virou-se na direção do bloco dos países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em busca de liquidez financeira.
BRICS - dados econômicos
A promessa foi que se esses estados, principalmente a China, oferecessem fundos ao sistema financeiro mundial, o G8 seria suspenso em favor de um G20. A China aceitou. A promessa de esvaziar o G7 foi rapidamente posta de lado, no instante em que os bancos sentiram-se seguros. O G20 foi adiado.
A confiança cresceu no ocidente depois da intervenção da OTAN na Líbia, em 2011. Hoje se vê que não apenas o sistema financeiro foi salvo, mas o intervencionismo “humanitário” também ofereceu legitimidade suficiente ao ocidente para usar sua força militar superior e passar a “governar” o planeta.
A pressão do ocidente contra o Irã a partir de meados dos anos 2000s intensificou-se, quando as tensões com a Rússia vieram afinal à luz em torno da Síria e da Ucrânia. O G8 suspendeu a Rússia, como membro, em 2014. Na mais recente reunião do G7, a Rússia foi alvo da retórica mais ensandecida. O Presidente dos EUA, Barack Obama, perguntou, sobre o presidente da Rússia, Vladimir Putin:
Será que ele continua a destroçar a economia de seu país e a manter o isolamento da Rússia, movido por um mais orientado desejo de recriar as glórias do império soviético?
Se o império soviético já vai longe, há muito tempo, a ambição ocidental de vir a comandar a política mundial permanece intacta. Contradições na política do G7 afetam a Europa muito mais do que afetam os EUA. Dois grandes fornecedores de energia para a Europa ocidental – Irã e Rússia, estão sob as sanções promovidas pelos EUA através do G7; e a Líbia, outro grande fornecedor de energia, foi completamente destruída, literalmente, na guerra da OTAN e na sequência.
É a Europa que se vê obrigada a suportar os mais pesados custos dos excessos do G7. A chanceler alemã Angela Merkel, poderia perfeitamente perguntar a seu colega Obama se o que ele mais deseja é destruir a economia da Europa, movido pela malfadada ambição de perpeturar a hegemonia dos EUA.
O G7 – como descobri durante as pesquisas para meu livro sobre o grupo, The Poorer Nations – só muito raramente divulga seus principais debates.
G7 mais União Europeia
Os pronunciamentos públicos nos anos 1970s foram gestos sobre estabilidade e ordem. No privado, os governantes discutiram em termos bem práticos o que fazerem para mais açoitar a OPEP e o bloco do Terceiro Mundo por todos os meios necessários, inclusive gerando instabilidade.
Só bico, nada de ação
Na mais recente reunião, os Masters of the Universe prometeram deixar para trás os combustíveis fósseis até o final do século XXI (dentro dos próximos 85 anos); e acabar com a pobreza no mundo, até 2050. Nada de programa de ação, só promessas ocas.
O que foi discutido em segredo seria muito mais interessante, mas teremos de esperar décadas antes de poder ler as transcrições das reuniões secretas.
Na antessala, esperando que lhe concedessem uma audiência, estava o Primeiro-Ministro do Iraque, Haider al-Abadi. Disseram a ele que o G7 “concordou em trabalhar junto para continuar a combater o terrorismo”. Como farão tão coisa? O G7 não tem nem a mais pálida ideia.
Ainda não temos estratégia completa – disse Obama na conclusão da reunião – porque isso exige compromissos a serem assumidos pelos iraquianos.
Já faz um ano que os EUA e seus aliados – apoiados pelo G7 – bombardeiam sem parar o Iraque e a Síria, mas, pelo que agora se vê, sem qualquer tipo de estratégia.
Ainda não temos plano finalizado, porque os iraquianos ainda não nos deram plano algum – disse Obama.
Os Masters of the Universe exigem para si o direito de determinar todos os assuntos planetários, de usar força militar como bem entendam, e ainda manifestam o mais descarado desdém por seus aliados subalternos.

E Obama deu as costas a Abadi...
Obama deu as costas a Abadi, que parecia ansioso para dizer mais. Obama meteu-se em animada conversa com o Primeiro-Ministro da Itália, Matteo Renzi, e com a Presidenta do FMI, Christine Lagarde. Abadi lá ficou, falando sozinho. Ninguém prestou atenção nele. Acabou por se afastar. Parece que não percebeu que fora descartado quando Obama lhe deu as costas.
Os Masters of the Universe estavam ocupadíssimos com eles mesmos. Têm moedas a proteger e países a bombardear.
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[*] Vijay Prashad fé professor de Estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People’s History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter.
Publica artigos regularmente em Asia Times Online, Frontline Magazine e Counterpunch. É usualmente entrevistado pela TRNN - The Real News Network sobre Geopolítica e Política internacional; é também Atualmente é Editor-Chefe de LeftWord Books, Delhi, Índia. É colunista de al-Araby al-Jadeed e Information Clearing House. Seu mais recente livro é No Free Left: the Futures of Indian Communism.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Sultões da Arábia intrometem-se em conflito doméstico no Iêmen

Uma aliança reacionária e senil, contra o povo do Iêmen


1/4/2015, [*] Vijay Prashadal-Araby, Reino Unido
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


ComentárioCom o Iêmen sob risco de assumir nova ordem, fora do controle de Riad, a Arábia Saudita teve de agir. Qualquer conversa sobre interesses do Irã ou divisões entre xiitas e sunitas só serve para obscurecer o real conflito no Iêmen.



A Primavera Árabe começou na Tunísia
Ameaçado pela promessa da Primavera Árabe, o regime saudita reagiu em sua península, no Norte da África e na Ásia Ocidental, para sufocar quaisquer tendências republicanas. O levante no Bahrain foi esmagado sem muitos comentários adversos, nem no mundo árabe, nem no “ocidente”. Na Síria, a Frente Islâmica apoiada pelos sauditas fez de tudo para sufocar qualquer sensibilidade democrática de independência que florescesse na rebelião.

No Egito e na Líbia foi mais difícil dar jeito na situação, porque aí o problema era a Fraternidade Muçulmana. O general Sisi do Egito recebeu com alegria o dinheiro saudita, como pagamento por matar qualquer desafio ideológico substancial contra a autocracia naquela região. A Líbia ainda é campo de batalha dessas sensibilidades, com o general Khalifa Haftar levando adiante a bandeira da ordem saudita.

A intervenção saudita em curso no Iêmen deve ser vista à luz desse impulso geopolítico regional. Dia 25/3/2015, a Arábia Saudita lançou a operação “Tempestade Decisiva”. Despachou seus jatos bombardeiros contra alvos no Iêmen. O ataque foi imediatamente saudado e apoiado pelos EUA e por vários estados árabes (inclusive todos os países do Golfo Árabe, exceto Omã). Não surpreenderam ninguém. Havia tropas sauditas acantonadas na fronteira, e os aviões sauditas já haviam ameaçado o espaço aéreo do Iêmen. Essas aventuras não são novidade para o reino. Em 2009, a Arábia Saudita invadiu o Iêmen – e já foi ataque contra as mesmas forças sociais que estão sendo novamente atacadas agora.

Proteger a ordem do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)

Qual o alvo, no Iêmen? Poderia ser a al-Qaeda na Península Árabe [orig. al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP)], cujos suicidas-bombas já haviam tentado assassinar membros da família real (o atual ministro do Interior príncipe Mohammed Bin Nayef quase foi morto em 2009 pelo bombardeador anal Abdullah al- Asiri)? Mas, não. Nenhum dos bombardeios atingiu qualquer alvo associado à AQAP – concentrados nas fronteiras ocidentais do Iêmen e distribuídos pelas cidades do deserto oriental.

 Abdullah al- Asiri, o bombardeador anal 
Em vez disso, os bombardeios sauditas e de outros árabes do Golfo atingiram alvos associados aos rebeldes houthis e a forças leais a Ali Abdullah Saleh, ex-presidente do país. E por que os sauditas estariam atacando os houthis e Saleh? Os sauditas dizem que intervieram para proteger a legitimidade do presidente do Iêmen, Mansour Hadi. Hadi foi eleito em 2012, em eleições nas quais não teve concorrente. Sua eleição foi parte de um negócio arranjado pelos sauditas e os estados do Golfo Árabe. Nesse negócio não se cuidou de nenhum dos problemas trazidos à tona pela rebelião popular de 2011 no Iêmen. Dois anos mais tarde, os mesmos problemas voltariam a aparecer.

Que problemas subjacentes eram esses? Como em outras rebeliões populares, o levante de 2011 no Iêmen concentrara as atenções na remoção de Saleh – mas havia demandas poderosas, a favor de uma divisão social menos injusta e do fim da corrupção na burocracia governante.

Acampadas por todo o Iêmen falavam nesse registro – algumas queixas identificáveis, mas quantidades enormes de frustração difusa, contra as manipulações, por Saleh, da “Guerra ao Terror” para seus próprios objetivos grupais, incluindo a transferência de recursos do governo para gerar lucros privados. As várias forças políticas que apareceram nas manifestações de rua indicavam que o regime de Saleh não tivera resposta para nenhum dos antigos problemas do Iêmen. O arranjo comandado pelo CCG que conduziu à troca de Salah por Hadi nada fez além de encobrir os mesmos persistentes problemas estruturais. Os sultões da Arábia montaram um arranjo sobre areias movediças.

As agendas de 2011, mal encobertas pelo governo de Hadi, reapareceriam necessariamente. A questão era só quem seria o agente do reaparecimento, e de natureza teria o reaparecimento. Dado o ambiente altamente militarizado no Iêmen, era pouco provável que os partidos políticos, muito fortemente controlados, conseguiriam levar adiante a bandeira do combate à corrupção e da justiça social. Os socialistas, os nasseristas e os liberais não tinham os meios mínimos necessários para atacar Hadi. O descontentamento reinava supremo.

Houthis do grupo Ansarallah chega em Sanaa
Em 2014, o grupo Ansarallah (organização guarda-chuva dos houthis), chegou à capital do Iêmen, Sanaa, trazendo suas reivindicações específicas, além das muitas demandas difusas de grandes porções da população do Iêmen (incluindo al-Hirak, o Movimento Pacífico Sulista, e o movimento da juventude). A ONU – pelo enviado Jamal Benomar – conseguiu negociar um importante acordo, chamado “Acordo da Parceria da Paz Nacional”, de setembro de 2014.

Um pacto progressista

Embora a maior parte da discussão do acordo concentre-se nos compromissos políticos, os dois artigos mais longos tratam de temas sociais e políticos. O Artigo 3 tratava do próprio sustento da população. Uma comissão econômica seria criada para definir preços de produtos de primeira necessidade, sistema racional de coleta de impostos, eliminação dos trabalhadores fantasmas, reforma dos subsídios aos combustíveis, investimentos em infraestrutura e aumento nos programas de assistência social aos mais pobres. O Artigo 4 tratava em profundidade da necessidade de aumentar-se em 50% o Fundo Social de Bem-Estar, aumentar o salário dos funcionários públicos, e aumentar, no orçamento para 2015, os investimentos previstos para educação e saúde públicas. Esses investimentos, o acordo previa explicitamente, devem “visar prioritariamente os mais pobres e moradores de áreas marginalizadas”.

O surgimento dos houthis em Sanaa, a elaboração desse acordo progressista, o fracasso do mesmo acordo, e o movimento dos houthis para a marcha sobre Aden são eventos que têm de ser vistos à luz dessas queixas e reivindicações explicitadas e nunca atendidas. É a política do Iêmen, baseada nas queixas e reivindicações dos iemenitas, praticamente sem quaisquer vias institucionais para encaminharem suas demandas, numa estrutura engessada de estado.

Nada mais conveniente que encobrir e ocultar todos esses debates sociais, com “ideias” e “análises” segundo as quais os houthis não passariam de “agentes” a favor do Irã. Convém, isso sim, à Arábia Saudita apresentar qualquer reivindicação de bolsões de xiitas oprimidos na porção leste do território saudita e no Leste da Ásia como infiltrações dos iranianos – o mesmo esquema que é conhecido no Movimento Futuro no Líbano, como “O Esquema Persa”. Se operários da indústria do petróleo fazem greve nas províncias do leste da Arábia Saudita, são logo acusados de trabalhar a favor de Teerã; tudo muito parecido com o que se viu no levante no Bahrain.

Talibã no Af-Pak (Afeganistão e Paquistão)
Não há dúvidas de que as ambições do Irã cresceram imensamente desde que os EUA, para grande alegria em Teerã, removeram em duas pinceladas os maiores inimigos que o Irã enfrentava – o regime dos Talibã no Afeganistão e o regime do partido Baath no Iraque. A confiança no Irã em terras árabes e na Ásia Central cresceu muito, mais isso não implica que qualquer ação de qualquer grupo xiita ortodoxo na região seja de algum modo subordinada ao governo do Irã. A política local tem peso enorme, como também as políticas tentaculares da infinita ambição dos sauditas – que são tão intervencionistas, se não ainda mais, que as de Teerã.

Os sauditas não poderiam permitir aquelas mudanças no status quo. O Iêmen estava sob o risco de se encaminhar na direção de uma nova ordem, que poria fim ao controle saudita. Os sauditas acumularam tropas na fronteira, ameaçando uma invasão. Os EUA apoiavam o movimento saudita, que então já voava pelos céus do Iêmen. Qualquer conversa sobre “agentes” do Irã e divisões xiitas-sunitas deixam de fora a essência do que se passa hoje no Iêmen – a luta real, envolta em agendas políticas pouco claras, trava-se entre as forças do levante popular de 2011 e a velha guarda. Ao lado, está a al-Qaeda, à espreita. Pronta para se aproveitar do caos.

A Arábia Saudita reuniu em volta dela toda a mais velha confederação internacional. Nos céus voam seus amigos do Golfo Árabe. Os dois principais aliados – por questões de relacionamento histórico – são o Marrocos e o Paquistão. Em 1962, Arábia Saudita, Marrocos e Paquistão criaram a Liga Mundial Muçulmana (Rabita al-Alam al-Islami) e depois, em 1969, os mesmos patrocinaram a criação da Organização de Cooperação Islâmica. O objetivo da LMM e da OCI era minar o nacionalismo secular no Terceiro Mundo, promovendo um islamismo orientado pelos sauditas; e sobrepujar a agenda de desenvolvimento socialista do Movimento dos Não Alinhados (MNA). Essas plataformas tiveram forte impacto em todo o mundo, inclusive em bolsões que mais tarde se manifestariam como centros da al-Qaeda – como o Afeganistão, o Paquistão, a Chechênia e o Sudão. Essa aliança reacionária e senil está agora agressivamente em ação contra o povo do Iêmen.

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[*] Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity CollegeDentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People’s History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter
Publica artigos regularmente em Asia Times OnlineFrontline Magazine e Counterpunch. É usualmente entrevistado pela TRNN - The Real News Network sobre Geopolítica e Política internacional;  é também Editor-Chefe do LeftWord Books, Nova Delhi. É colunista de al-Araby al-Jadeed e Information Clearing House. 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Os arquitetos do caos na Ásia Ocidental

3/2/2015, [*] Vijay Prashad, The Hindu, Nova Delhi
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Obama e o rei Salman da Arábia Saudita
Pandemônio, eis o que se vê praticamente sem interrupção, da Líbia ao Iraque. O Presidente Barack Obama dos EUA voou de Nova Delhi diretamente para os braços do rei Salman, novo governante da Arábia Saudita. A dupla tinha muito a discutir. Nem um nem outro pode estar muito satisfeito com a desgraça que seus países fizeram e continuam a distribuir por toda a Ásia Ocidental. Tragicamente, o único caminho que pensam em reforçar é exatamente o mesmo que só aprofundará os problemas e os tormentos nos próximos anos. Claramente o exemplo deles é o Egito, onde a dupla EUA-Arábia Saudita apoiou o golpe do general Abdel Fattah el-Sisi, e agora apoia o governo dele, apesar da repressão contra protestos.

O assassinato de uma jovem socialista, Shaimaa el-Sabbagh, quando depositava uma coroa de flores na Praça Tahrir, no 4º aniversário da revolução contra Mubarak, é sinal da podridão. Não impediu que um destacamento do “Estado Islâmico” (EI) atacasse na Península do Sinai, fazendo 30 mortos, entre militares e civis. Na Líbia, os sauditas e os EUA apoiam o ditador (Khalifa Haftar), como apoiaram no Iêmen (Abdullah Saleh). No Iraque e Síria, EUA e Arábia Saudita não gostaram do que viram e tentaram desfazer tudo. Os sauditas são movidos por sectarismo – sempre contra os xiitas (e a influência do Irã). Por isso, são obcecadamente contra os governos em Damasco e Bagdá, como também se opõem furiosamente aos rebeldes no Iêmen. Obama e o rei Salman não conseguiram resolver os problemas na região: acabaram-se todas as ideias e palpites que tinham a oferecer. Agora, outros terão de indicar o caminho adiante.


Líbia. O Corinthia Hotel é o mais luxuoso de Trípoli. Foi residência de primeiros-ministros sucessivos que temiam pela própria vida naquela capital perigosíssima (o Primeiro-Ministro Ali Zeidan foi raptado desse hotel, em 2013). Também abriga a missão da ONU, que conduziu um Diálogo sobre a Líbia, em Genebra. Dia 27/1/2015, pistoleiros entraram no hotel e mataram guardas e hóspedes estrangeiros (inclusive um mercenário que prestava serviços de segurança aos EUA). O ramo do Estado Islâmico em Trípoli reivindicou os créditos pela operação.


caos impera na Líbia desde 2011. Dois governos dizem que governam o país – ambos apoiados em milícias e esquadrões-da-morte, ambos com exércitos estrangeiros a lhes dar cobertura. A missão da ONU – da qual o ocidente desertou depois da guerra em 2011 — não conseguiu criar nenhum processo de paz. O governo apoiado internacionalmente do Primeiro-Ministro Abdullah al-Thani enviou delegação a Genebra para unir-se ao processo de paz “conduzido” pela ONU. Os músculos desse processo são os do general renegado Khalifa Haftar, que faz guerra privada, sua, contra as milícias islamistas em Benghazi sob o nome de “Operation Karama” (Dignidade). Mas o governo de al-Thani está na cidade oriental de Tobruk, exilado da capital (Trípoli) e das cidades principais (Benghazi e Misrata). Vive à sombra do Egito e da Arábia Saudita.

O governo de al-Thani é uma concha. É o herdeiro dos que herdaram a Líbia das mãos do ocidente e dos estados do Golfo. As armas em campo não favorecem o grupo governante. Em Benghazi, a maré reinante ainda é comandada por um grupo islamista radical, Ansar al-Sharia, formado depois da queda do coronel Gaddafi. No oeste da Líbia, quem manda é o movimento conhecido como Fajr Líbia (Alvorada Líbia). Inclui o poderoso Escudo Líbio de Misrata e remanescentes do Grupo Islâmico de Combate Líbio. Seu Primeiro-Ministro, Omar al-Hassi, viveu no Hotel Corinthia, de onde teve de ser retirado em segredo por guardas da segurança. O grupo Alvorada Líbia recusou-se a participar das conversações de paz de Genebra. O ator mais poderoso afastou-se do processo anêmico apoiado pelo ocidente. Mostra bem o quanto o ocidente é irrelevante na Líbia contemporânea (a embaixada dos EUA para a Líbia está instalada em Malta). Quem manda na Líbia são Qatar e Turquia, apoiadores estrangeiros do grupo Alvorada Líbia.

É só simples questão de tempo, até que o Estado Islâmico estabeleça bases na Líbia. A cidade de Derna há muito tempo é centro de recrutamento de islamistas radicais. Piada que circula em Derna informa que é a cidade, em todo o mundo, que mandou mais combatentes da liberdade para Iraque e Síria.

Majlis Shura Shabab al-Islam
Em junho passado (2014), o grupo Majlis Shura Shabab al-Islam, um desdobramento do Ansar al-Sharia, aderiu ao Estado Islâmico. Declarou que passava a caçar as marda al-nafous (almas doentes) que ameaçava “esse nosso oprimido Estado Islâmico”. Não é difícil estabelecer laços operacionais entre Derna e Síria-Iraque; os milicianos continuam infatigavelmente a ir e vir o quanto desejem, através da Turquia. Ouvem-se ecos do Estado Islâmico entre Derna e Benghazi, onde os soldados de Ansar al-Sharia beneficiam-se da audácia das declarações de Abu Bakr al-Baghdadi. Do fundo da derrota, arrancam a sensação de vitória.

Ninguém quer paz

Iêmen. Velhas fissuras tribais no Iêmen que isolaram a comunidade dos xiitas zaidistas liderados pela família al-Houthi impuseram-se. Em nome da Guerra ao Terror, em 2004 o velho autocrata do Iêmen, Abdullah Saleh, traiu e matou o líder zaidista Hussein Badreddin al-Houthi. Um acordo político razoável teria posto fim a esse conflito, mas Saleh não quis acordo algum.

Inteiramente apoiado pelo ocidente, Saleh serviu-se de ataques com drones e muito suborno para destruir os inimigos. Atraída pela isca, a Arábia Saudita — que sempre, antes, desprezara Saleh — acabou por ceder aos próprios preconceitos anti-xiitas e aceitou apoiar o ditador em sua guerra contra os zaidistas. Saleh tratou os zaidistas – não a al-Qaeda – como principal inimigo. O grupo terrorista havia desaparecido do Iêmen, mas reapareceu em 2004, resultado de recrutamento nas prisões, experiência na insurgência no Iraque e ódio contra a guerra norte-americana de drones. Mas Saleh não usou todo o seu potencial de fogo contra a al-Qaeda. Seus inimigos estavam noutro lugar.

A “Operation Scorched Earth” [Operação Terra Arrasada] em 2009 levou a uma invasão saudita do Iêmen, para pôr fim à resistência zaidista. Dezenas de milhares de refugiados fugiram da região; não se conhece o número de mortos. Ninguém convocou qualquer processo de paz. Foi luta até o último homem.

Protestos de houthis na capital Sanaa
A Primavera Árabe no Iêmen permitiu que os rebeldes houthis se unissem aos protestos contra o governo de Saleh. A Al-Qaeda, enquanto isso, tomava o controle das cidades de Jaar e al-Husn. Um “diálogo nacional” convocado então não levou a qualquer solução. Os houthis queriam um acordo político. Os governos da Arábia Saudita e do Iêmen conseguiram convencer o ocidente de que os houthis seriam aliados do Irã. A partir disso, todas as atenções concentraram-se em manter os houthis longe do poder. Aí, precisamente é que o “plano” falhou mais fragorosamente; os houthis agora já assumiram o controle de Sana’a (capital do Iêmen). Ainda não se sabe se os houthis serão magnânimos na vitória; mas tampouco se pode adivinhar se os sauditas e o ocidente aceitarão qualquer gesto, mesmo que magnânimo, dos houthis.

Parte de uma guerra maior

Síria. No dia em que o rei saudita Abdullah morreu, o braço armado que representa os sauditas na guerra contra a Síria – o Jaish al-Islam de Zahran Alloush – disparou foguetes contra Damasco. Alloush anunciou por Twitter que faria “chover centenas de foguetes sobre a capital durante o dia todo, em resposta à barbárie que o regime cometera com ataques aéreos no Ghouta”. A guerra entre Alloush e o governo de Bashar al-Assad tornou-se guerra menor, mas nem por isso é escaramuça menos mortal na guerra maior no Iraque e Síria. Os inimigos do Presidente Bashar al-Assad não são absolutamente gentis, e assaltam áreas civis sem descanso e com requintes de crueldade.

Estado Islâmico é mantido por Israel, EUA, Qatar... 
Os ataques israelenses dentro da Síria contra o Hezbollah, da resistência libanesa, só complicarão cada vez mais a situação. Confrontos nas Fazendas Shebaa, uma parte do Líbano ocupada por Israel, poderia ter-se convertido em mais uma guerra de Israel contra o Líbano. Enquanto foguetes voavam nas duas direções, o Estado Islâmico distribuiu documento no qual dizia que seria “prematuro” declarar um emirado no Líbano. Beirute respirou aliviada. São raras as boas notícias na região.

Mais para o norte, o Estado Islâmico sofreu duas derrotas militares. Em Kobane – a Stalingrado dos curdos – as Unidades de Proteção do Povo Curdo [ing. Kurdish People’s Protection Units (YPG) finalmente conseguiram expulsar os milicianos do Estado Islâmico. Ataques pela Força Aérea da coalizão dos EUA ajudaram a cortar as linhas de suprimento do Estado Islâmico, embora a sempre porosa fronteira com a Turquia sempre lhes garanta algum socorro.

Também no Iraque, a Brigada Badr, uma milícias de xiitas, atacou o Estado Islâmico na província de Diyala, que foi libertada. Nem o exército iraquiano nem o exército sírio tiveram qualquer função nessas duas derrotas infligidas ao Estado Islâmicos. Mas o Estado Islâmico é difícil de eliminar. O grupo desapareceu dessas áreas, e encontrou outras áreas onde se abrigar. Um ataque pelo Estado Islâmico em Kirkuk tirou a vida de um respeitado líder curdo-iraquiano, brigadeiro-general Sherko Shwany; o Estado Islâmico mostrou que continua no jogo. Empurrado para fora do Iraque e do norte da Síria, talvez assuma afinal a via que o levará ao norte da Jordânia.

O Estado Islâmico manteve preso um piloto jordaniano, tenente Mu’ath al-Kaseasbeh, durante um mês, mas só ameaçou executá-lo depois da queda de Kobane e Diyala. Disse que pouparia a vida do piloto, se a Jordânia libertasse uma quase-suicida-bomba iraquiana Sajida al-Rishawi (a bomba dela não explodiu, num ataque em 2005 em Amã, Jordânia); mas fracassaram as negociações sobre a libertação da moça, e o Estado Islâmico executou dois reféns japoneses. Ao que se sabe, o piloto jordaniano continua prisioneiro do Estado Islâmico. As tensões estão subindo na Jordânia, sobre o papel do reino na coalizão contra o Estado Islâmico. É precisamente o tipo de fissura que o Estado Islâmico quer ver crescendo na Jordânia. Qualquer passo para o sul, fará soar os sinos de alarme na Arábia Saudita.

Mu’ath al-Kaseasbeh; foto maior, de branco
Entrementes, um alto oficial da inteligência jordaniana me informa que já ruiu completamente a tentativa dos EUA para criarem uma força moderada contra o Estado Islâmico. A [operação] Müs’terek Operasyon Merkezi, que a CIA construiu com aliados na Turquia já fracassou. Um depois do outro, todos os grupos rebeldes que a CIA arregimentara trocaram a CIA por outras formações – mais recentemente, foi o Exército Mujahedin que se uniu à Frente Islâmica, grupo que reúne dois outros afiliados da al-Qaeda, Ahrar al-Sham e a Frente al-Nusra.

Verdade é que nem os EUA nem a Arábia Saudita têm qualquer agenda que faça algum sentido na Síria. Permanecem obcecados com derrubar o governo do presidente Assad, mas já estão em pânico ante o crescimento do Estado Islâmico. Quanto maior a audácia do Estado Islâmico em seu território natal, mais potentes os ecos enviados para a Líbia e para o interior da Península Árabe.



[*] Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People’s History of the Third World e Arab Spring, Libyan Winter. 
Publica artigos regularmente em Asia Times Online, Frontline Magazine e CounterpunchÉ usualmente entrevistado pela TRNN - The Real News Network  sobre Geopolítica e Política internacional; é também Editor-Chefe do LeftWord Books, Nova Delhi. É colunista de al-Araby al-Jadeed e Information Clearing House.