14/1/2011, Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
Assassinato de Rafiq Hariri
Soldados e mais soldados, por toda parte. Nos vales, nas montanhas, nas ruas de Beirute. Nunca vi tantos soldados. Será que vão “libertar” Jerusalém? Ou, talvez, vão derrubar todas as ditaduras árabes?
Suponho que tenham a missão de impedir que o Líbano escorregue para a guerra civil. Dizem e repetem que o Hezbollah teria destruído o governo – o que só é verdade até certo ponto. Porque na 2ª-feira, dizem, o Tribunal da ONU para o Líbano nos informará que o ex-primeiro ministro Rafiq Hariri teria sido assassinado por membros do Hezbollah.
Os EUA exigem que o Tribunal forneça os nomes dos acusados. A França, claro, idem. E, idem, também a Grã-Bretanha. O que é bem estranho, porque, em 2005, quando Rafiq Hariri foi assassinado a 366 metros de onde eu estava, na Corniche de Beirute, todos tínhamos certeza de que fora assassinado pelos sírios. Não pelo presidente da Síria, vejam vocês. Não por Bashar Assad, mas pelos serviços de segurança do Partido Baath sírio. Acreditei nisso. E continuo acreditando nisso. Mas, agora, o que dizem é que o Tribunal da ONU acusará membros do Hezbollah, amigos da Síria e das milícias iranianas (embora libanesas) no Líbano. E agora, EUA e Grã-Bretanha fazem soar os tambores de guerra.
O Hezbollah será acusado e, claro, o primeiro-ministro – mais corretamente: o ex-primeiro-ministro do Líbano Saad Hariri, filho de Rafiq – já perdeu o emprego.
Para muitos, o Líbano agora mergulhará numa guerra civil, semelhante ao conflito fratricida que se estendeu de 1976 a 1980. Duvido. Uma nova geração de libaneses, educada em Paris, em Londres, nos EUA – voltou ao país e, creio eu, não tolerará o abate sangrento de seus pais e avós.
Em teoria, já não há governo no Líbano, e as eleições que foram limpas e deram a Saad Hariri o Gabinete que teve, já não valem coisa alguma. Na 2ª-feira, o presidente Michel Suleiman iniciará os contatos formais para tentar formar um novo governo.
Mas o que quer o Hezbollah? Está com tanto medo do Tribunal da ONU que precisa destruir o país? O problema do Líbano é perfeitamente simples, por mais que as potências ocidentais prefiram ignorá-lo. O Líbano é Estado confessional. Foi criado pelo Mandato francês depois da 1ª Guerra Mundial. O problema é que, para tornar-se Estado moderno, teria de desconfessionalizar-se. O que o Líbano não sabe fazer. A identidade do Líbano é o sectarismo e aí está a tragédia do Líbano. E, atenção, por favor, presidente Sarkozy, há nisso um ponto de partida francês.
Os xiitas do Líbano, dos quais o Hezbollah é o partido principal, são 40% da população. Os cristãos são uma minoria. Se o Líbano tem algum futuro, será futuro de Estado muçulmano xiita. É possível que não nos agrade; é possível que o ocidente prefira que fosse outra coisa. Mas a verdade é essa. Além disso, o Hezbollah não quer governar o Líbano. Já disseram e repetiram várias vezes que não desejam uma república islâmica. Muitos libaneses aceitam essa ideia.
Mas o Hezbollah cometeu vários erros. O líder, Hassan Nasrallah, fala pela televisão como se fosse o presidente. Gostaria de nova guerra contra Israel, que também termine em “vitória divina”, como diz que terminou sua guerra anterior, em 2006. Temo que os israelenses também gostariam de nova guerra. Os libaneses gostariam de nenhuma guerra. Mas estão sendo empurrado mais e mais na direção de nova guerra que os supostos amigos do Líbano parecem querer muito. EUA e Grã-Bretanha querem muito ferir o Irã. E por isso, precisamente, tanto querem que o Tribunal da ONU acuse o Hezbollah pelo assassinato de Hariri-pai – e pela queda do governo libanês.
E é absolutamente verdade que o Hezbollah quer a queda desse governo. Livrando-se desse governo, livrando-se desse Gabinete, rompem-se as regras do acordo de Doha, pelas quais o governo e os serviços de segurança do Líbano não podem ser afetados.
De fato, é a derrota da “solução” árabe, frente ao quebra-cabeça sectário libanês, e que – com a ajuda dos seus aliados cristãos – está convertendo o Líbano em Estado atemorizado. Não surpreende que ontem não houvesse carros nas estradas. Não surpreende que os libaneses estivessem assustados demais para curtir o sol mediterrâneo. Estamos todos com medo.
Mas acho que o Estado libanês está amadurecendo. Observei ontem que o líder cristão das milícias Forças Libanesas, uma das milícias cristãs, Samir Geagea, instalou nova fotografia à frente do prédio onde funciona o escritório do Partido numa cidade nas montanhas. Mas aparece sem uniforme, em trajes civis. Terno e gravata. Roupa diferente do uniforme de miliciano que costumava usar. Bom sinal.
Num questionário animado que publicou em sua página na internet, Saad Hariri diz que considera a “flexibilidade” uma das principais virtudes. Nos complicados confins da polícia libanesa é das virtudes mais praticadas – indispensável à sobrevivência.
Hariri tornou-se primeiro-ministro dia 11/11/2009, depois de duas campanhas eleitorais bem sucedidas e quatro anos depois da morte de seu pai – evento que definiu a liderança do filho e a política do Líbano.
Durante a campanha eleitoral em que seu bloco “Futuro” sagrou-se vitorioso em 2005, Hariri admitiu: “Mal posso acreditar que esteja acontecendo. Ainda não acredito que meu pai não está aqui. Não me iludo. Hoje, todos votarão em meu pai.”
Hariri tem 40 anos, é casado, tem três filhos e é homem do comércio e da administração privada. É formado em comércio internacional pela Universidade Georgetown em Washington, graduado em 1992; depois, por sete anos, até a morte do pai, foi gerente geral de uma empresa de construções com 35 mil empregados.
Hariri acusou a Síria pelo assassinato do pai – ideia partilhada por muitos libaneses que promoveram enormes manifestações contra os sírios, que puseram fim a década de dominação síria sobre o Líbano. Depois, exibindo a flexibilidade que elogiou, como chefe do bloco sunita numa Líbano dividida, Hariri declarou depois que errara ao acusar os sírios. E reconciliou-se com o presidente Assad.
Há um equívoco de digitação aí: o conflito libanês deu-se ente 1975 e 1990, uma terrível guerra civil de quinze anos, da qual fui testemunha por certo tempo, ao morar em Beirute.
ResponderExcluirAbraços do
ArnaC