segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sarkozy, Obama e o Iluminismo


28/10/2011, *MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Sem violência física, é possível obrigar alguém a cuspir a goma de mascar que esteja mascando com evidente prazer?

A Rússia provou que sim. 

Esse é o contexto no qual se insere o sucesso da diplomacia russa na reunião do Conselho de Segurança da ONU, sobre a Resolução n. 1.973, na 5ª-feira passada.  

Dmitry Rogozin
O formidável enviado russo à OTAN, Dmitry Rogozin, que sabe fazer com as palavras o que só políticos excepcionalmente bem dotados fazem, disse uma vez, em agosto, que a aliança ocidental estava “mastigando a Resolução n. 1.973”, como se fosse goma de mascar, para mostrar deliberadamente que não dava nenhuma importância nem à Resolução nem ao Conselho de Segurança. 

A R 1.973 garantiu uma “zona aérea de exclusão” sobre a Líbia, e o Ocidente foi em frente e bombardeou a Líbia até destruir o país, matou milhares de civis inocentes e esquartejou Muammar Gaddafi com uma faca (há imagens, que não se deve divulgar, mas existem). 

Sarkozy
Ocorre-me que já ninguém sabe dizer o que teriam a ver, hoje, a história da civilização ocidental e aquele famoso “Iluminismo”, se se veem hoje esses crimes bárbaros. O Iluminismo terá sido só mais um mito? Será que o ocidente algum dia saiu da Idade das Trevas – seus Nicolas Sarkozy e Barack Obama et al.? 

Seja como for, nunca antes a diplomacia russa no período pós-soviético trabalhou tão brilhantemente pela causa da paz, como ao apresentar ao Conselho de Segurança da ONU, 5ª-feira, o projeto de Resolução que exigia o fim imediato das operações da OTAN na Líbia. A iniciativa só apareceu no último momento, quando a OTAN movimentava-se já, sob um ou outro pretexto, para aplicar o golpe da legitimidade política, fazendo crer ao mundo que o povo líbio, coletivamente, estaria clamando pela permanência de tropas ocidentais na Líbia.


O movimento dos russos foi impecavelmente lógico. Afinal, os céus líbios já estão livres da artilharia mortífera de Gaddafi. Quem precisaria de “zona aérea de exclusão”? 

Super - Obama
Engraçado é que a Resolução apresentada pelos russos, e que pôs fim aos delírios da OTAN na Líbia, foi aprovada por unanimidade. Sarkozy e Obama ficaram sem alternativa. É mais que justo que, hoje, os russos, que obrigaram o “ocidente” a cuspir a goma de mascar que tanto estavam gostando de mastigar, estejam rindo sozinhos. Muito justo.

Em termos geopolíticos, a OTAN ficou, agora, numa sinuca de bico. Toda a agenda da OTAN, que previa abrir asas e voar para o norte da África e ali fazer ninho, dependia de a OTAN permanecer na Líbia. Mas Washington e Bruxelas cederão assim facilmente, sem luta?

Uma coisa é certa: Rússia e China não cairão em nenhum “golpe da Resolução do Conselho de Segurança”... no caso da Síria.

*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

Egito: “Não pagaremos as dívidas da tirania”


Wael Gamal

Wael Gamal وائل جمال 
 Traduzido para o português pelo pessoal da Vila Vudu

Na transição de uma oligarquia ou tirania para uma democracia (...) acontece de as pessoas negarem-se a cumprir contratos e quaisquer outras obrigações, porque são contratos e obrigações contraídas pelo tirano, não pelo Estado. 
Aristóteles, Política, livro III [1]

O Egito deve cerca de 35 bilhões de dólares (ou 210 bilhões de libras egípcias) de dívida externa, o que impõe aos egípcios carga anual de cerca de 18 bilhões de libras egípcias. São dívidas que se acumular durante o regime anterior seguindo as prioridades políticas e econômicas daquele governo. Pagamos aquela dívida de nosso próprio bolso, dinheiro que poderia ser gasto em serviços sociais, saúde ou educação. 

Por isso, organizações e ativistas sociais no Egito e no exterior decidiram que o dia 31/10/2011 seja declarado Dia Mundial para o Cancelamento da Dívida do Egito. 

É o início de uma campanha popular para tirar essa carga dos ombros do povo egípcio, que não foi nem é de modo algum responsável pelas decisões de assumir aquelas dívidas, nem jamais foi consultado sobre como se gastou aquele dinheiro, e ao qual o antigo governo jamais prestou contas.

Cancelar a “dívida odiosa”

“Dívida odiosa” [2] é conceito jurídico cunhado pelo teórico Alexander Sack, que teria sido ministro das Finanças da Rússia em 1927, no período posterior à Revolução Russa. O conceito prega que se aplique a contratos firmados pelo governo um princípio jurídico que rege os contratos privados. Por esse princípio, para que uma dívida continue a ser legalmente vinculante ela deve servir a fins legítimos. Nesse contexto, entende-se que são “odiosas” as dívidas contraídas por ditador ou governo ilegítimo em nome da nação, mas para enriquecer o governante (quer dizer, para engordar as contas bancárias pessoais do tirano e de seus herdeiros) ou para financiar a repressão contra os cidadãos (para, por exemplo, a compra de gás lacrimogêneo ou armas a serem entregues a francos atiradores, como as armas utilizadas para assassinar os mártires da revolução).

“Dívidas odiosas” associam-se frequentemente ao saque financeiro em vários âmbitos, como o financiamento de projetos falidos (como Toshka, o projeto de fosfatos de Abu Tartour, o projeto de ferro de Assuã etc.); o apoio a projetos de desenvolvimento viciados por corrupção (como a privatização de terras públicas e a contratação de empresas privadas, por Estado ilegítimo e corrupto); e ao controle dos recursos do Estado, movimentados a serviço dos “sócios” do tirano – empresas e empresários “amigos”, à custa do sacrifício do povo.

“Dívida odiosa” é dívida contraída por regime que não representa o povo e que – com pleno conhecimento do credor – serve para fins que em nada beneficiam o povo nem visam ao bem público. Por tudo isso, muitos definem como “dívida odiosa” a dívida que enriquece os tiranos e empobrece a sociedade. A nação é obrigada, nesses negócios, a canalizar todos os seus recursos para pagar dívidas já existentes – o que limita a capacidade da sociedade para desenvolver-se. 

Apoiados nessa lógica propôs-se a ideia de que a dívida odiosa do Egito fosse cancelada no momento em que fosse derrubada a ditadura endividada – como no caso do Iraque depois da queda de Saddam Hussein [3], e da África do Sul, depois de derrubado o regime do apartheid. 

A Dívida do Egito escraviza os egípcios
Do ponto de vista legal, o conceito de “dívida odiosa” aplicado às dívidas de ditaduras depostas implica um desafio a um velho princípio do direito internacional – que exige que aquelas dívidas sejam pagas, mesmo que assumidas por regimes ditatoriais já inexistentes. Apesar do desafio, o conceito de “dívida odiosa” foi invocado em vários casos históricos. Alguns remontam ao século 19, sobretudo uma sentença da Suprema Corte dos EUA, que confirmou a legalidade do não pagamento das dívidas de Costa Rica aos credores Grã-Bretanha e Canadá, por serem dívidas contraídas sob regime ditatorial. E o Equador é exemplo ainda mais recente de modelo que prosperou.

Durante a década dos 1970s o Equador, como muitos outros países do Terceiro Mundo, caíram na armadilha do endividamento externo a baixas taxas de juros que, contudo, imediatamente depois começaram a subir muito. Assim, pelo aumento das taxas de juro cobradas por bancos norte-americanos (de 6% em 1979, para 21% em 1981), a dívida externa do Equador aumentou mais de 12 vezes a partir do valor inicial: de 1,174 bilhão de dólares em 1970, para 14,250 bilhões de dólares em 2006. E só 14% da dívida externa contraída entre 1989 e 2006 foram usados para projetos novos; todo o restante foi comprometido para pagarem-se dívidas antigas. 

Logo no início da greve geral que derrubou o presidente Lucio Gutiérrez em 2005, formou-se uma comissão para auditar a dívida do país. Essa comissão ofereceu ao governo do Equador os fundamentos legais e políticos nos quais se baseou para decidir não pagar as dívidas odiosas em novembro de 2008. Em junho de 2009, o Equador obteve um acordo pelo qual sua dívida externa foi reduzida em mais de dois terços. Por acordo firmando com 90% dos credores internacionais, o Equador teve de pagar apenas 35 centavos por cada dólar da “dívida odiosa” – com o que o país livrou-se daquela carga. De fato, o valor dos títulos já caíra drasticamente depois da greve geral e da deposição do presidente por movimento popular, o que levou a pagamentos ainda menores do que os devidos antes. 

O Equador conduziu suas negociações com boa informação e prudência, o que gerou esperanças para todos os países do Terceiro Mundo que manifestem vontade política para livrar-se do peso morto da “dívida odiosa”. 

Atualmente, a sociedade civil e os movimentos populares na Irlanda e na Grécia organizam comissões populares de auditagem da dívida e já pressionam para que se constituam comissões oficiais. Túnis já tem uma comissão para auditar as dívidas odiosas contraídas pelo governo de Zine Abdine Ben Ali e trabalha para que sejam canceladas. 

Com isso, temos nós, no Egito, boa margem de manobra para pressionar, coordenar esforços e mobilizar as pessoas na direção de conseguir que se cancelem também as dívidas do regime de Mubarak. 

Adam Hanieh, professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, diz que, apesar de o Egito já ter pago 24,6 bilhões de dólares entre 2000 e 2009, a dívida aumentou cerca de 15% durante o mesmo período. Em artigo sobre as transformações em curso na economia egípcia depois da revolução, Hanieh acrescenta: “Essas cifras deixam à vista a surpreendente realidade de que a relação financeira entre o Egito e os credores da economia global opera na direção de extrair a riqueza dos pobres do Egito e de redistribuí-la entre os bancos mais ricos dos EUA e da Europa”. 

A “dívida odiosa” não é só um inimigo do passado que atenta contra nossa vida e nosso sustento; é também uma carga que ameaça nosso futuro. Livrar-se dela é imperativo econômico, moral e legal. Apesar disso, é pouco provável que a batalha se decida nas instituições financeiras internacionais e nos bancos: muito provavelmente exigirá também confrontação interna. 

A dívida egípcia: “Todos os olhos atentos à dívida”

“Abre os olhos! O dinheiro para pagar a dívida sai do teu bolso” – é o lema da Campanha Popular pelo Cancelamento das Dívidas do Egito, a ser lançada dia 31/10/2011, para livrar nossa revolução de um peso acumulado por um governo que nunca representou os egípcios – peso que continuar a pesar sobre nossos salários, nosso nível de vida e sobre nossas oportunidades de futuro. 

A Dívida do Egito esmaga  os egípcios
A campanha será posta em marcha simultaneamente com iniciativas que também começam em Londres e Berlim, das quais participam movimentos da sociedade civil e organizações da Grã-Bretanha e da Alemanha. O lema acima indica que criar comissão independente para auditar a dívida externa, associada a campanha popular que pressione para o cancelamento da dívida não é o fim do caminho. É, antes, o começo de uma mudança radical no modo de fazer a gestão da política econômica no Egito. 

O problema não está só em o Egito estar pagando juros a credores internacionais em volume que supera o que o país gasta em bem-estar social para os 85 milhões de egípcios, por exemplo, na área da saúde. O problema mais grave é a orientação das políticas econômicas do país, a falta de transparência na formulação de políticas econômicas e a nenhuma oportunidade garantida aos cidadãos para que participem da formulação daquelas políticas, para atender seus próprios interesses. 

Cancelar a dívida do Egito com credores da União Europeia foi a primeira proposta apresentada por Samir Radwan, que serviu como ministro da Economia depois da revolução. Essa reivindicação, contudo, foi apagada poucas semanas depois, substituída por proposta para que se fizesse o contrário: mais pagamentos às instituições internacionais. Adiante, decidiu-se congelar as dívidas externas, mas num preço alto demais para os pobres e para a economia; principalmente sob um orçamento de austeridade que privilegiava os interesses dos ricos, tanto em termos de impostos como em termos da prioridade dada aos subsídios distribuídos pelo governo. Esse fato mostra que uma coisa é certa: se tivermos de pagar as prestações da dívida de nosso próprio bolso, no futuro a decisão de tomar empréstimos de instituições nacionais ou internacionais deve ser submetida a amplas supervisões, nas quais a sociedade civil tenha papel mais importante, incluídas as organizações de direitos civis, ONGs, grupos de proteção ao consumidor, sindicatos e o público em geral. Esse exemplo deixa claro que o cancelamento das dívidas odiosas da ditadura não acontecerá sem confronto contra a ordem econômica que herdamos, confronto que não terá êxito sem a participação da maioria dos interessados. 

Portanto, a auditoria da dívida deve ser verdadeira porta de entrada para uma economia mais democrática, que reflita as necessidades das pessoas, antes que a necessidade de lucrar, de uns poucos. Pode ter função importante no movimento para enfrentar a elite rica que se esconde nas trincheiras que protegem a economia da ditadura e os tecnocratas leais que servem àqueles interesses. Pode fazer frente à liderança política, que usa o pretexto da dívida do regime de Mubarak para ocultar e justificar a supressão de nosso direito a salário justo, a empregos adequados, a melhores serviços de saúde e de educação, e que continua a repetir o mesmo slogan fracassado: “E de onde querem que tiremos dinheiro para tudo isso?”




Notas dos tradutores

[1] Em inglês, Aristotle's Ethics and Politics, tr. by J. Gillies, p. 169. ARISTÓTELES, Política, pode ser baixado, gratuitamente, em português. 
 
[2] Odious Debts: Loose Lending, Corruption, and the Third World's Environmental Legacy , Cap. 17: “The Doctrine of Odious Debts.

[3] “Em 2004, o chamado Clube de Paris, para favorecer os interesses ianques perdoou em 80% o valor da dívida atribuída ao Iraque porquanto, como foi concluído, tinha sido obra iníqua de Saddam Hussein e, como assim, os novos ocupantes não queriam despender somas demasiado excessivas por factos cuja responsabilidade enjeitaram” (A viagem dos Argonautas, português europeu).

Saúde, educação, cultura e outra lição de Cuba: o esporte


Max Altman
Por Max Altman

 

Cumpre inicialmente ressaltar que a Organização Desportiva Panamericana inflou a competição, sabe-se lá por que razão, com esportes praticados por poucos países e dentro desses países por pouca gente, geralmente endinheirada, e, fundamentalmente, esportes de pouca ou nenhuma tradição olímpica.

Mas que garantem preciosas medalhas: badminton, squash, boliche, raquetebol, softbol, pelota basca, karatê, boxe feminino, esqui aquático, patinagem, ciclismo de montanha, ciclismo BMX, vela I 24, vela laser radial, vela RSX feminino, vela RSX masculino, vela sunfish, ginástica de trampolim, rugby.

Para se ter uma ideia, o México, país anfitrião, de suas 42 medalhas de ouro, uma terça parte foi assegurada por esses esportes: 4 no squash, 5 no raquetebol, 5 na pelota basca.



A cobertura da nossa imprensa escrita e televisionada foi basicamente distorcida em relação à essência dos resultados e patrioteira ao ressaltar apenas as medalhas de ouro dos atletas brasileiros sem atentar para a análise da qualidade do desempenho. A cobertura da TV Record, que deteve os direitos de transmissão, pecou pelos mesmos motivos, embora diante das evidências das imagens tivesse que esboçar críticas e observações com algum critério técnico.

À parte os Estados Unidos, grande e tradicional potência desportiva e olímpica, que de resto não enviou a Guadalajara seus principais atletas, a grande vencedora foi a equipe de Cuba. Muitos mais uma vez se perguntam como um país de apenas 11,2 milhões de habitantes, com parcos recursos econômicos, bloqueado há mais de 50 anos pelo poderoso vizinho do norte, consegue tão destacadas resultados essencialmente nas modalidades tradicionalmente olímpicas nas quais concentra seus esforços.

Em primeiro lugar, a educação física é realmente um direito do povo e maciçamente praticada em Cuba. Dezenas de milhares de treinadores observam e peneiram na prática diária dos exercícios físicos, na rede de ensino básico, médio e universidades, crianças e jovens com talento para a prática deste ou daquele esporte. Levam-nos posteriormente para a iniciação e formação numa dada modalidade. Observados, os melhores são conduzidos para os centros de alto rendimento onde são burilados, recebem treinamento específico e são cercados de atenção adequada.

Outro aspecto a destacar é que absolutamente todos os atletas se preparam e se exercitam no próprio território cubano com treinadores, técnicos, professores de educação física, fisioterapeutas, médicos desportivos, árbitros, nutricionistas, massagistas, administradores desportivos e chefias cubanos.

Cuba chega até a exportar técnicos para outros países, como é o caso do próprio Brasil. Não há um único atleta nascido em Cuba, que treine e more no exterior, sob os cuidados de técnicos estrangeiros e membro de equipes locais. Todo e qualquer resultado atlético, positivo ou não, é fruto autenticamente cubano dos esforços da própria nação, nunca de um isolado talento individual ou de esforços individuais.

Para se ter uma ideia estatística do valor da performance cubana, deixando de lado os Estados Unidos que não levaram sua principal força, comparemos os resultados do segundo, terceiro e quarto colocados em relação à população e ao poderio econômico.

Cuba tem 11,2 milhões de habitantes e 70 bilhões de dólares de PIB; Brasil, 193 milhões e 1,7 trilhão; México, 112 milhões e 900 bilhões. Desse modo, cada medalha dourada de Cuba corresponde a 193 mil habitantes e 1,2 bilhão de dólares; Brasil a 4,021 milhões de habitantes e 35,4 bilhões de dólares; México a 2,660 milhões de habitantes e 21,4 bilhões de dólares.

Finalmente, dois comentários mais sobre o boxe e o atletismo, duas modalidades olímpicas tradicionais. Quando no Pan do Rio em 2007, os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara desertaram de sua equipe, atraídos pelos acenos pecuniários de empresários alemães, a grande mídia brasileira exultou.

As manchetes estampavam: pugilistas fogem para a liberdade. Localizados, foram deportados para Cuba. Os meios de comunicação locais estrebucharam: os boxeadores foram devolvidos pelo governo brasileiro para serem vítimas da vingança dos Castro. Pouco tempo depois, Rigondeaux e Lara saíram normalmente de Cuba e foram para Miami em busca de riqueza e glória.

Hoje lutam muito pouco. Dependem de inescrupulosos empresários. A fama e o dinheiro se esvaem. Mais adiante, com o passar do tempo, quando não mais puderem lutar, serão jogados fora como laranjas chupadas.

Teófilo Stevenson e Félix Savón, tricampeões olímpicos de boxe, jamais abandonaram suas equipes nem o seu país, apesar dos milionários convites para se profissionalizar. Quando encerraram a carreira, passaram a treinar e formar novos campeões. Têm a admiração e a amizade dos seus pupilos e do povo de seu país.

Em Guadalajara, com equipe totalmente renovada e muito jovem, o boxe cubano de 10 categorias disputadas participou de nove – não levou o super-pesado. Ganhou 8 medalhas de ouro e só perdeu uma luta, a de mosca.

Quanto ao atletismo, o esporte olímpico por excelência, o único que pode ostentar o dístico “citius, altius, fortius’ – mais rápido, mais alto, mais forte – em que raramente um só atleta consegue levar mais de duas medalhas, jamais 5, 6 ou 7, Cuba - de 47 provas disputadas -conquistou 19 medalhas de ouro e o Brasil, 10.

Ainda que se leve em conta que os Estados Unidos não mandaram sua equipe principal nem a Jamaica seus extraordinários velocistas, os atletas cubanos realizaram em 7 provas marcas que os colocariam no pódio olímpico: vara feminino com Yarisley Silva; 400 com barreiras com Omar Cisneros; vara masculino com Lázaro Borges; dardo masculino com Guillermo Martinez; 110 c/barreiras com Dayron Robles; martelo feminino com Yipsi Moreno e disco feminino com Yarelis Barrios.

Se o Brasil, país de população jovem, seguir a lição de Cuba: massificação da prática desportiva nas escolas de todos os graus, construção de instalações adequadas nos colégios e universidades, formação de milhares de profissionais do esporte com a missão básica de buscar e peneirar talentos, para mais tarde formá-los e burilá-los em centros de treinamento de alto rendimento, certamente será também uma potência olímpica e das mais poderosas.

1º Encontro Mundial de Blogueiros e a Carta de Foz de Iguaçu


O 1º Encontro Mundial de Blogueiros, realizado em Foz do Iguaçu (Paraná, Brasil), nos dias 27, 28 e 29 de outubro, confirmou a força crescente das chamadas novas mídias, com seus sítios, blogs e redes sociais. Com a presença de 468 ativistas digitais, jornalistas, acadêmicos e estudantes, de 23 países e 17 estados brasileiros, o evento serviu como uma rica troca de experiências e evidenciou que as novas mídias podem ser um instrumento essencial para o fortalecimento e aperfeiçoamento da democracia.

Como principais consensos do encontro – que buscou pontos de unidade, mas preservando e valorizando a diversidade – os participantes reafirmaram como prioridades:

1.      - A luta pela liberdade de expressão, que não se confunde com a liberdade propalada pelos monopólios midiáticos, que castram a pluralidade informativa. O direito humano à comunicação é hoje uma questão estratégica;

2.      - A luta contra qualquer tipo de censura ou perseguição política dos poderes públicos e das corporações do setor. Neste sentido, os participantes condenam o processo de judicialização da censura e se solidarizam com os atingidos. Na atualidade, o WikiLeaks é um caso exemplar da perseguição imposta pelo governo dos EUA e pelas corporações financeiras e empresariais;

3.      - A luta por novos marcos regulatórios da comunicação, que incentivem os meios públicos e comunitários; impulsionem a diversidade e os veículos alternativos; coíbam os monopólios, a propriedade cruzada e o uso indevido de concessões públicas; e garantam o acesso da sociedade à comunicação democrática e plural. Com estes mesmos objetivos, os Estados nacionais devem ter o papel indutor com suas políticas públicas.

4.      - A luta pelo acesso universal à banda larga de qualidade. A internet é estratégica para o desenvolvimento econômico, para enfrentar os problemas sociais e para a democratização da informação. O Estado deve garantir a universalização deste direito. A internet não pode ficar ao sabor dos monopólios privados.

5.      - A luta contra qualquer tentativa de cerceamento e censura na internet. Pela neutralidade na rede e pelo incentivo aos telecentros e outras mecanismos de inclusão digital. Pelo desenvolvimento independente de tecnologias de informação e incentivo ao software livre. Contra qualquer restrição no acesso à internet, como os impostos hoje pelos EUA no seu processo de bloqueio a Cuba.

Com o objetivo de aprofundar estas reflexões, reforçar o intercâmbio de experiências e fortalecer as novas mídias sociais, os participantes também aprovaram a realização do II Encontro Mundial de Blogueiros, em novembro de 2012, na cidade de Foz do Iguaçu. Para isso, foi constituída uma comissão internacional para enraizar ainda mais este movimento, preservando sua diversidade, e para organizar o próximo encontro.

Ler também:

domingo, 30 de outubro de 2011

O acordo de 26-27/10/2011 (Grécia) é inaceitável


O movimento #Occupy Wall Street pôs em movimento processo criativo e emancipatório. Tem de ser apoiado e estimulado.

30/10/2011, CADTM – Committee for the Abolition of Third World Debt 
[Comissão para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo] 
Trad. do grego ao inglês, de Mike Krolikowski, in Rede de Tradutores Tlaxcala, editorial
Traduzido do inglês pelo pessoal da Vila Vudu

O acordo firmado na madrugada de 27/10/2011 não é solução para a crise na zona do euro, nem para a crise dos bancos, nem para a crise da dívida, nem para a crise do euro. Aquelas decisões nada resolvem de modo aceitável: apenas prorrogam a crise, sem resolver coisa alguma. Na avaliação dessa Comissão para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo, o acordo é inaceitável.

Chefes de Estados, chefes de governos, líderes da Comissão Europeia (CE) [ing. European Commission (EC)], banqueiros privados e o diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) reuniram-se em Bruxelas para encontrar solução que evitasse o risco de quebra em série de vários dos principais bancos europeus, com especial preocupação por bancos franceses, espanhóis, gregos, italianos, alemães, portugueses e belgas... Os mesmos bancos que, antes de 2007-8, aumentaram imensamente os riscos que assumiram para auferir lucros de curtíssimo prazo para seus acionistas e garantir os bônus delirantemente altíssimos que pagam a seus diretores e corretores. Os empréstimos domésticos e a pequenas empresas são apenas uma mínima parte do giro desses bancos: entre 2-5%. Os massivos incentivos que aqueles bancos receberam dos Estados, do Banco Central Europeu ou do Federal Reserve, jamais foram usados na economia produtiva: sempre foram desviados para as atividades mais altamente especulativas.

Os bancos privados são financiados para o curto prazo e, ao mesmo tempo, assumem papéis de longíssimo prazo: bônus públicos ou privados, negócios no mercado futuro de commodities, troca de moeda e posições em derivativos sobre os quais não há qualquer tipo de controle público. A falência do banco franco-belga Dexia, no início desse mês de outubro de 2011, é resultado direto dessas políticas. O medo de que a falência do banco Dexia desencadeie um “efeito dominó” na Europa e nos EUA foi decisivo para que se organizasse a reunião de “cúpula” dos dias 26/27 de outubro de 2011.

A decisão de cortar em 50% os papéis gregos que estão com os banqueiros, em vez do corte de 21% decidido dia 21 de julho, já era inevitável desde agosto, depois que perderam 65-80% do valor no mercado secundário da dívida. Embora os líderes governantes tenham anunciado que impuseram importantes sacrifícios aos bancos, os bancos saíram-se muito bem, como sempre. Por isso, precisamente, todas as bolsas de valores do mundo mostraram, nos últimos dias, significativos movimentos de alta.

O acordo de 27/10 não é solução para o povo grego sobre o qual recaem os mais pesados efeitos da crise, agravados pelas medidas de “austeridade” que o governo impôs aos gregos. Toda essa operação é comandada pelos credores e está rigorosamente pensada para salvar seus interesses. Esse plano de redução da dívida grega é a versão europeia dos “planos Brady”, que tiveram efeitos tão devastadores nos países em desenvolvimento nas décadas dos 80s e 90s.

O plano Brady – batizado em homenagem ao secretário do Tesouro dos EUA naquele momento - envolveu reestruturar a dívida por troca de papéis, nos principais países endividados que aceitaram o Plano: Argentina, Brasil, Bulgária, República Dominicana, Equador, Jordânia, México, Nigéria, Panamá, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Uruguai, Venezuela e Vietnã.

Naquele momento, Nicholas Brady anunciou que o volume das dívidas seria reduzido em 30% (mas as reduções, quando de fato aconteceram, foram muito menores; em alguns casos, as dívidas até aumentaram) e que novos papéis (“Bônus Brady”) garantiam taxa fixa de juros de cerca de 6%, muito interessante para os credores. Também se impuseram as medidas de “austeridade” ditadas pelo FMI e pelo Banco Mundial. Hoje, em outras latitudes, a mesma lógica provoca os mesmos desastres.

A “Troika[1] (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) impõe infindáveis medidas de ‘austeridade’ ao povo grego, ao povo da Irlanda, aos portugueses. E se gregos, irlandeses e portugueses não reagirem e resistirem, logo logo muito mais gente estará sofrendo: espanhóis, belgas, franceses...

Esse plano de modo algum permitirá que a Grécia resolva seus problemas por pelo menos duas razões:

1. A redução da dívida é absolutamente insuficiente; e
2. As políticas econômicas e sociais aplicadas para atender às demandas do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do FMI (a Troika) fragilizarão ainda mais a Grécia. Essa é a característica odiosa dos atuais acordos financeiros firmados com a Grécia, para futuros empréstimos e para reestruturar dívidas futuras.

A Grécia tem de escolher entre duas possibilidades:

1. Jogar a tolha e ficar, outra vez, entregue aos desmandos do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do FMI (a Troika); e
2. Recusar a ditadura dos mercados e do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do FMI (a Troika) e suspender todos os pagamentos, e ordenar que a dívida grega seja auditada, para que seja possível rejeitar toda a parte ilegítima daquela dívida.

Outros países já estão, ou em breve estarão, empurrados para a mesma escolha: Espanha, Irlanda, Itália, Portugal... E a lista não pára aí. Em todos os casos em que se apliquem essas sempre mesmas políticas, em doses diferentes, em toda a União Europeia.

Todos esses planos de “austeridade” devem ser recusados e é indispensável proceder a auditoria das respectivas dívidas públicas nacionais, em processos sob controle público.

Os eventos de 2007-2008 não levaram os governos a adotar medidas de estrita prudência. 

O que se deve fazer é, ao contrário, adotar medidas que impeçam que as instituições financeiras, bancos, empresas de seguros e os fundos “hedge” causem danos ainda maiores. 

É preciso acusar judicialmente, formalmente, diretamente, as autoridades públicas, diretores de empresas e seus cúmplices responsáveis pelas quebras de bancos e do mercado de ações.

É urgente expropriar os bancos e pô-los a serviço do bem comum – nacionalizando-os e pondo-os sob controle dos trabalhadores e dos cidadãos.

Deve-se recusar, não só qualquer forma de indenização aos acionistas, mas é preciso que entreguem seus bens pessoais para cobrir os custos da reestruturação do sistema financeiro.

É necessário rejeitar todos os meios ilegítimos pelos quais bancos privados controlam autoridades públicas e governos eleitos.

Evidentemente, se devem impor também uma série de medidas complementares: controle público sobre movimentação de capitais, proibir a especulação, proibir movimentação de dinheiro para paraísos fiscais, criar impostos que promovam a justiça social, dentre outras.

Na União Europeia, devem-se repelir alguns tratados, como os de Maastricht e de Lisboa.

Também é indispensável mudar radicalmente os estatutos do Banco Central Europeu. Antes que a crise avance para o pior, é mais que hora de mudar radicalmente o rumo do Banco Central Europeu.

Essa Comissão para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo, CADTM, apóia, com outras organizações, as iniciativas já tomadas em alguns países a favor da auditagem da dívida pública, promovida por instituições democráticas públicas de cidadãos.

O movimento #Occupy Wall Street pôs em movimento processo criativo e emancipatório. Tem de ser apoiado e estimulado.

[assina] CADTM Europa
Pascal Franchet
Giorgos Metraliás (Γιώργος Μητραλιάς)
Griselda Piñero
Éric Toussaint
___________________________________

CADTM (Committee for the Abolition of Third World Debt - Comissão para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo) está presente na Grécia, França, Bélgica, Espanha, Suíça e Polônia. A rede CADTM é ativa em 33 países.

A mais recente publicação do CADTM é MILLET, Damien; TOUSSAINT, Eric (coord.) 2011,La dette ou la vie, 2011, Bruxelas: ADEN (em francês).



Nota dos tradutores
[1] A palavra troika (ru. “trio”, triunvirato) tem longa e interessante história desde antes da Guerra Fria e durante toda a Guerra Fria, mas sempre designou “juntas” políticas mais ou menos ilegítimas e sempre autoritárias de governo. Interessante, nessa história é que nunca, antes, desde o início do século 20, até o início do século 21, a palavra troika designou, como hoje designa, também no discurso jornalístico, uma junta de governo ilegítimo e autoritário de três votos, dois quais dois votos são... bancos! (Para saber mais, ver TROIKA)

sábado, 29 de outubro de 2011

A Obra Prima da hipocrisia


Protagonizada por Barack Obama e Hillary Clinton (The Liers)


“A Mentira tem pernas curtas e cassetetes longos” ou “Eu não vou me mover”



Enviado por Raul Longo e Sonia Montenegro

Slavoj Žižek: “Nosso inimigo é a ilusão democrática”

 Slavoj Žižek

28/10/2011, Slavoj Žižek, 
London Review of Books (Blogs)
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu


Anne Applebaum escreveu no Washington Post que os protestos em Wall Street e na Catedral de St Paul são parecidos, “na falta de foco, na incoerência e, sobretudo, na recusa a engajar-se nas instituições democráticas existentes”. “Diferentes dos egípcios” – prossegue ela – “com os quais os manifestantes de Londres e New York comparam-se abertamente (e ridiculamente) nós aqui temos instituições democráticas”
[1] 

Claro que, se você reduz os protestos da Praça Tahrir a simples demanda por democracia à moda ocidental, como faz Applebaum, torna-se ridícula qualquer comparação entre Occupy Wall Street e os eventos do Egito: como poderiam os que protestam em Wall Street exigir o que já têm? O que a colunista do Washington Post bloqueia e não vê é a possibilidade de haver descontentamento geral com os sistemas capitalistas globais que assumem formas diferentes aqui e lá.

“Mas num sentido” – Applebaum concede – “o fracasso do movimento internacional Occupy, que não consegue apresentar propostas sólidas de novas leis, é compreensível: as fontes da crise econômica global e suas soluções estão, por definição, fora da competência de políticos locais e nacionais”. E acaba forçada a concluir que “a globalização já começou, visivelmente, a solapar a legitimidade das democracias ocidentais”. 

Isso, precisamente, é o que os manifestantes estão mostrando e impondo à atenção de todos: que o capitalismo global solapa a democracia. Conclusão óbvia, daí em diante, é que temos de começar a pensar em meios para expandir a democracia para além da forma que tem hoje, baseada em estados-nação e sistemas multipartidários, e que se mostrou incapaz de gerenciar as consequências destrutivas da vida econômica. 

Mas, em vez de dar esse passo adiante, Applebaum muda tudo, culpa os próprios manifestantes que protestam nas ruas, listando as seguintes questões: 

Se os ativistas “globais” não tiverem cuidado, acabarão por acelerar o declínio daquele modelo. Os manifestantes gritam em Londres: “Queremos um processo!” Ora, eles já têm um processo: chama-se sistema policial britânico. Se não sabem usá-lo, só conseguirão enfraquecê-lo ainda mais...

O argumento de Applebaum, portanto, parece ser que, dado que a economia global está fora do alcance da política democrática, qualquer tentativa para expandir a democracia para que consiga manejar a economia global... acelerará o declínio da democracia. E o quê, então, devemos fazer? A jornalista sugere que continuemos engajados num sistema político que, segundo ela mesma, não é capaz de fazer o que se espera que faça.

Se há o que não falta hoje, é crítica do capitalismo: estamos inundados de histórias sobre o quanto as empresas poluem cruelmente nosso ambiente; de banqueiros que recebem gordos bônus enquanto seus bancos têm de ser ‘resgatados’ e são salvos com dinheiro público, sobre os pardieiros onde o trabalho de crianças é superexplorado para fabricar roupas baratas que são vendidas em bancas. 

Mas há um truque escondido aí: todas essas histórias assumem que a luta contra esses crimes tenha de ser feita no quadro bem conhecido da democracia liberal. A meta (explícita ou implícita) é democratizar o capitalismo, ampliar o controle democrático sobre a economia global, mediante a exposição na mídia, os inquéritos parlamentares, leis mais duras, inquéritos e investigações judiciais etc. Mas não se questiona o quadro das instituições do estado democrático burguês. Esse é preservado, sacrossanto, até nas modalidades mais radicais do “anticapitalismo ético” – o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, o movimento de Seattle etc. etc. 

Aqui, o insight chave de Marx continua tão pertinente hoje quanto sempre foi: a questão da liberdade não deve ser enquadrada, basicamente, na esfera política – quer dizer, em coisas como eleições livres, judiciário independente, imprensa livre, respeito pelos direitos humanos. A verdadeira liberdade reside na rede “apolítica” das relações sociais, do mercado à família, onde a mudança necessária, para melhorar as coisas, não é alguma reforma política, mas uma mudança nas relações sociais de produção.

Os eleitores não votam para decidir quem será proprietário do quê, ou para decidir sobre as relações entre os trabalhadores numa fábrica. Essas coisas são deixadas entregues a processos fora da esfera política, e é ilusão supor que essas coisas possam ser mudadas com, simplesmente, alguma “ampliação” da democracia: por exemplo, criando bancos “democráticos” controlados pelo povo. 

Mudanças radicais nesse campo têm de ser feitas fora da esfera de instrumentos democráticos, como direitos humanos e outros. Esses instrumentos democráticos têm um papel positivo, é claro, mas é preciso ter em mente que todos os mecanismos democráticos são parte de um aparelho de estado burguês previsto para garantir, sem perturbações, o funcionamento da produção capitalista. 

Badiou acertou ao dizer que o nome do pior inimigo, hoje, não é “capitalismo”, “império”, “exploração” ou coisas do tipo, mas, sim “democracia”. Hoje, o que impede qualquer genuína transformação das relações capitalistas é a “ilusão democrática”, a aceitação de mecanismos democráticos burgueses como únicos meios legítimos de mudança.

Os protestos de Wall Street são só o começo, mas é preciso começar como já começaram lá, com um gesto formal de rejeição, que é mais importante que seu conteúdo propositivo, porque só um gesto desse tipo pode abrir espaço para novos conteúdos. 

Assim sendo, não nos deixemos distrair pela pergunta “Mas o que querem vocês?”. É a autoridade masculina interrogando a mulher histérica: “Você só reclama! Você tem alguma ideia do que você realmente quer?” Em termos psicanalíticos, os protestos são uma explosão histérica que provoca o chefe e mina sua autoridade. E a pergunta do chefe (“Mas o que você quer?”) esconde seu subtexto: “Responda em língua que eu entenda, ou cale a boca!”

Até agora, os que protestam em Wall Street e pelo mundo, têm conseguido muito bem escapar à crítica que Lacan fez aos estudantes de 1968: “Como revolucionários, vocês são histéricas clamando por um novo chefe. Conseguirão”. 


Nota dos tradutores