sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O “Af-Pak” e o Novo Grande Jogo

8/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

Traduzido por Vila Vudu


Há nove anos – um dia antes de o comandante da Aliança do Norte, Ahmad Shah Massoud, o Leão de Panjshir, ser morto por dois jihadistas da al-Qaeda disfarçados como jornalistas; e três dias antes do 11/9 –, quem suporia que o Afeganistão ainda estaria, em 2010, no centro de uma guerra entre 150 mil soldados dos EUA e da OTAN, contra 50 ou 60 jihadistas da al-Qaeda aliados a uma horda de nacionalistas pashtuns rotulados, “em geral” como “os Talibãs”?


Nem o Barbudo eterno do andar de cima, o qual, aliás, segundo Stephen Hawking, não criou esse vale de lágrimas onde vivemos, nem tem culpa de nada.


Outro ano. Outro aniversário do 11/9. E a mesma guerra do Afeganistão. Pode até nem ser mais a “guerra ao terror” – o governo de Obama inventou outra griffe; a coisa agora se chama “operações de contingência no exterior” [ing. “overseas contingency operations”]. Pode ter sido convertida em “a guerra boa” de Obama – sob a nova griffe “Af-Pak” e já ter custado aos contribuintes norte-americanos, só até agora, 100 bilhões de dólares por ano. Tudo isso e Obama continua afogado no pesadelo de ser refém das guerras de George W Bush.


Apesar de Washington talvez ainda alimentar a ilusão de que está no comando, quem manda de fato hoje é Hamid Karzai, o astuto presidente afegão, que joga no ataque, no segundo tempo do Novo Grande Jogo na Eurásia. E, como sempre, jamais se ouve falar sobre o jogo chave do Oleodutostão.


Prendam os suspeitos de sempre

Já deveria ser bem claro, a essa altura, que o Paquistão é um establishment militar-de-inteligência, disfarçado de país. O serviço secreto/exército em geral foi e sempre será pró-Talibã. Quem creia que esse pessoal fará “reformas” – com ou sem os bilhões de dólares da ajuda norte-americana – acredita em Coelhinho da Páscoa.


Porque, para Islamabad, trata-se – e sempre se tratará – da “profundidade estratégica”, a doutrina que rege o Afeganistão como quintal controlado pelo Paquistão (exatamente o que o Afeganistão foi entre 1992, início das guerras entre grupos de mujahideen, e 2001, fim do “governo” dos Talibãs.


O chefe do exército paquistanês general Ashfaq Pervez Kiani – queridinho do Pentágono – ganhou de presente mais três anos de mandato. Karzai não perdeu um segundo para ver o óbvio: Kiani faria o diabo para impor-se como o cão-alfa em Kabul. Assim sendo, tinha de ser acalmado.

Tudo isso, considerando que o principal objetivo do exército do Paquistão é acumular mais bombas atômicas, para o caso de ter de enfrentar aquela especial versão do Armageddon particular no Sul da Ásia – ou de um encontro de vida ou morte com a Índia, inimigo visceral.


Na sua infinita esperteza, Karzai concluiu – acertadamente – que o poder de fogo dos EUA e da OTAN, e os movimentos cenográficos das fracas investidas “contraguerrilhas” do general David Petraeus jamais derrotarão a muralha-guarda-chuva da resistência armada hoje conhecida como “os Talibãs”.


Karzai também sentiu que a estratégia afegã de Obama não tinha futuro algum. Dentro dos EUA, os Republicanos – de olhos postos nas eleições de novembro para o Congresso – super trabalhariam para pintar o presidente como “avesso a guerras”, tanto quanto o Pentágono super trabalharia para forçar Obama a recuar da decisão de fixar a data limite de julho de 2011 para o início de uma transição para alguma coisa semelhante a soberania afegã. E tudo isso enquanto Petraeus vende o “surge” afegão como se fosse vitória – exatamente como fez na versão iraquiana dessa mascarada, carimbando seu currículo, para concorrer à Casa Branca em 2012.


Como o que mais o interessa é perpetuar-se no poder, Karzai avaliou de que lado soprava o vento e decidiu cultivar sua própria horta e melhorar suas relações com os dois vizinhos-chave a leste e a oeste – o Paquistão e o Irã. Anteviu o futuro como negócio de poder partilhado por lá mesmo, sem americanos por perto.


Daí o anúncio formal, feito por Karzai semana passada, da criação de um Alto Conselho de Paz encarregado das conversações de paz com os Talibãs. A ideia foi aprovada há três meses numa loya jirga, em Cabul, na qual se reuniram 1.600 líderes tribais, religiosos e políticos de algumas poucas províncias afegãs. Karzai visa, basicamente, seduzir os soldados de campo Talibãs com dinheiro e oferta de empregos na máquina do governo, e os líderes Talibãs com asilo em alguns seletos países muçulmanos.


Deve-se supor que os suspeitos de sempre aparecerão travestidos de membros desse conselho de paz. Dentre os quais o ex-líder mujahideen Burhanuddin Rabbani (ao qual Massoud era subordinado); o mujahid Abdul Rasul Sayyaf (suspeito até hoje de ter participado no assassinato de Massoud e ligado aos sauditas); e com certeza algum alto dirigente do Hizb-i-Islami, comandado pelo ex-mujahid Gulbuddin Hekmatyar, o único primeiro-ministro da história do mundo que bombardeou a própria capital (em meados dos anos 1990s).


Hizb-i-Islami e os Talibãs – embora carregados de mútuas suspeitas – lutam mais ou menos pelos mesmos objetivos, i.e., a expulsão “dos invasores estrangeiros”. Os Talibãs são o alvo mais ou menos preferencial contra o qual se concentram os soldados dos EUA e da OTAN – nas províncias de Helmand e Kandahar; e o Hizb é mais forte nas províncias do norte e leste.


O resto desse gambito arquitetado por Karzai é a agenda dos Talibãs. Mullah Omar, o invisível líder Talibã que vive em algum lugar próximo de Quetta, capital da província do Baluquistão, no Paquistão – quer que os invasores escafedam-se imediatamente de lá, e quer de volta o seu próprio [de Mullah Omar] poder. Não há nenhuma chance nesse mundo, nem no inferno nem no paraíso, noutros mundos – de que alguém algum dia veja Omar confraternizando com Karzai, num banquete de cabeça de bode e arroz à Kabul.


O mais importante: Karzai não conseguirá seduzir o que resta da al-Qaeda. Não há mais de 60 jihadistas árabes da al-Qaeda na área tribal do Waziristão Norte, no Paquistão, além de alguns poucos uzbeques, chechenos e turcos. E cerca de 50 jihadistas árabes da al-Qaeda que atravessaram a fronteira para o Afeganistão – praticamente os mesmos números estimados pelo líder supremo da CIA, Leon Panetta, há mais de dois meses.


Fato é que Washington está consumindo tsunamis de dinheiro para enfrentar um punhadinho de instrutores árabes jihadistas. Pior; o que os EUA e a OTAN estão, de fato, enfrentando hoje é versão remix da jihad antissoviética dos anos 1980s – em luta de libertação nacional contra o invasor estrangeiro (e os russos eles já mandaram para casa).


E há também o Talibã paquistanês, como fator complicante. Não passa um dia sem que seu principal porta-voz, Qari Hussain Mehsud, vocifere ameaças. Declararam-se responsáveis por um ataque de homem-bomba que matou 50 xiitas em Quetta, sexta-feira passada. Mehsud insistiu que seus “alvos” agora são, não só os “invasores estrangeiros”, mas também os xiitas – e ameaçou atacar na Europa e nos EUA.


O que é certo é que aumentarão os ataques em Peshawar, Quetta e Lahore (locais que, para o Talibã paquistanês são como New York para a al-Qaeda). A questão, para Islamabad, é o que fazer para desmantelar a rede de trabalho cooperativo que liga a al-Qaeda, os Talibã paquistaneses, os anti-xiitas do grupo Lashkar-e-Jhangvi e o grupo Jundallah do Baloquistão, que são contra o Irã. Mas Karzai não está preocupado com detalhes; está convencido de que, afinal, tem um plano perfeito para garantir “a segurança” do Afeganistão.


Em tudo, se trata, sempre, do Oleodutostão

O que o establishment paquistanês deseja para o Afeganistão é diametralmente oposto aos interesses da Índia. Portanto, deve-se esperar que a Índia contra-ataque – melhorando suas relações com ambos, Rússia e Irã.


Do ponto de vista da Rússia, o principal desafio da segurança nacional no Afeganistão não é a expansão do Talibã para a Ásia Central. O principal desafio da segurança nacional no Afeganistão, do ponto de vista da Rússia é o massivo tráfico de heroína que está devastando a juventude russa. O que levou a Rússia a, em vez de apenas observar, risonha, enquanto os EUA afundam no pântano – agora afegão, como antes se afundaram no pântano vietnamita –, decidir implantar uma versão russa do que deva ser a construção da nação no Afeganistão. Os russos estão investindo em recursos naturais e infra-estrutura no Afeganistão – e não se incomodam com, enquanto ajudam, também embolsarem algum.


Uma reaproximação Índia-Irã é inevitável, apesar da avalanche de sanções cumulativas contra Teerã, que EUA/ONU/União Europeia continuam a lançar – ao mesmo tempo em que o governo indiano ativamente estimula empresas indianas a investir no setor iraniano de energia; e o ministério de Relações Exteriores da Índia assumiu, como prioridade, aproximar-se também diplomaticamente do Irã. Empresas russas, indianas e turcas têm espetacularmente ignorado completamente as sanções ocidentais e continuarão, é claro, a comerciar com o Irã.


Enquanto isso, em Washington, equipes B, do feitio do grupo de estudos sobre o Afeganistão – que anteontem divulgaram seu relatório [1] – multiplicam esforços para inventar um jeito de arrancarem os EUA do labirinto afegão. Mas, apesar de todo seu poder de fogo intelectual, não aparece, no relatório, nem uma palavra sobre o motivo-chave pelo qual os EUA meteram-se no Afeganistão: o Oleodutostão (o segundo motivo chave foi, é claro, a mania que tem o Pentágono de implantar bases para monitorar/espionar seus dois “concorrentes estratégicos” China e Rússia).


Estamos de volta, outra vez, ao jogo TAPI x IPI pelo Oleodutostão; TAPI é o gasoduto de gás natural do Turcomenistão, através do Afeganistão até Islamabad e de lá até a Índia; e IPI é o oleoduto Irã-Paquistão-Índia.


Em poucos dias, como andam “vazando” funcionários do Turcomenistão, haverá reunião crucial em Ashgabat, quando funcionários da TAPI dos quatro países definirão as bases de um negócio de proporções oleodúticas (se for construído apenas como gasoduto, terá 2 mil quilômetros e custará 7 bilhões de dólares).


Mas embora TAP ou TAPI sejam e sempre serão delírio de cachimbo-de-ópio-dutos, fato é que o duto Irã-Paquistão, de 1.100 km de extensão e custo de $7,5 bilhões já está rolando. Foi exatamente o que Irã e Paquistão anunciaram há menos de dois meses, prevendo-se que entre em operação em 2014. É mais uma prova de que as sanções ocidentais contra o Irã nada significam para o Paquistão – porque eles muito mais precisam de energia, do que precisam se preocupar com questões de segurança nacional trombeteadas por Washington.


E o mesmo vale para a Índia. Os pragmáticos líderes em Nova Delhi não podem nem imaginar que o TAPI algum dia veja a luz do dia. É preciso lembrar que, originalmente, o atual duto Irã-Paquistão (IP) chamava-se duto Irã-Paquistão-Índia (IPI) cantado em prosa e verso em todo o sudoeste da Ásia como “o duto da paz”. A Índia pulou fora por causa – e o que mais seria? – da forte pressão dos EUA. Mas agora a Índia quer voltar à mesa – e discutir não só o IPI, mas outro oleoduto, mais remoto, provavelmente submarino, um II (Irã-Índia).


Nova Delhi sabe muito bem que a China saliva à vista da possibilidade de um ramo no norte do duto Irã-Paquistão, ao longo da estrada Karakoram, até Xinjiang na China Ocidental. O ministro das Relações Exteriores do Paquistão Shah Mahmood Qureshi já sugeriu que, se a Índia não se resolver, haverá ali um oleoduto Irã-Paquistão-China.


Os próximos contornos do Novo Grande Jogo na Eurásia dependem amplamente de quem vencerá as guerras do Oleodutostão que envolvem a Ásia Central, o Sul da Ásia e do Sudoeste da Ásia. Considerando o pacote sanções/bloqueios/embargos acumulados do Ocidente, a bola facilmente quicará no campo do Irã, para que o país dê passos de gigante na direção de acumular tecnologia, construir seja o que for – duto Irã-Paquistão ou duto Irã-Paquistão-Índia – e garantir para si fluxo ininterrupto de gás natural.


Qualquer movimento contra o Irã será visto em toda a Ásia como movimento contra a Grade de Segurança Energética Asiática; uma guerra clássica contra o Oleodutostão, em outras palavras, guerra de Washington contra a integração da Ásia.


A via alternativa que há, é surrealismo puro; quem, no planeta, acredita que Karzai convencerá os Talibãs a não querer beneficiar-se, eles também, do mesmo oleoduto/gasoduto que os EUA sonhavam construir, antes de terem decidido apear “os Talibãs” do poder?


Nota

[1]: A New Way Forward: Rethinking U.S. Strategy in Afghanistan (.pdf)



O artigo original, em inglês, pode ser lido em: AfPak and the new great game