Comentário da Vila Vudu: Sobre o que é e faz a imprensa na Inglaterra (No Brasil, então... NEM SE FALA!), mas lá ainda há jornais que fiscalizam jornais! – A propósito do guru contratado pelos tucanos...
5/9/2010, James Hanning, The Independent, UK
Traduzido pelo coletivo de tradutores da Vila Vudu
Por três anos, o jornalista Andy Coulson fez exatamente o que o primeiro-ministro, seu chefe, queria: orientou-o sobre o que “funcionaria bem” na imprensa.
Até a semana passada, poucos teriam reconhecido uma foto de Andy Coulson. Noticiem que tem 42 anos e é jornalista, que nasceu
Alastair Campbell costumava dizer que, quando o assessor de imprensa [ing. Public Relations, PR; no Brasil, os “marketeiros políticos”, em tempos de campanha eleitoral, e os “assessores de comunicação”, formais ou informais, cumprem exatamente a mesma função] vira notícia, é hora de demiti-lo.
Semana passada, quando o New York Times publicou investigação detalhada sobre práticas ilegais no News of the World, NoW [jornal de Rupert Murdoch], Andy Coulson virou notícia, antes até de que muita gente soubesse de quem se tratava. Hoje, Coulson representa a mais tóxica ameaça à credibilidade do governo e da imprensa britânicos.
É virada impressionante, que lança luz sobre a imprensa e seu papel na vida pública, até um ponto que o público raramente consegue ver.
Cameron sentiu-se aliviado quando nomeou Andy Coulson, ex-editor de News of the World, como chefe de sua assessoria de comunicações, em maio de 2007. Há meses procurava por alguém para o papel que Alistair Campbell desempenhara ao lado de Tony Blair. Sondara vários jornalistas e consultou pelo menos três. Então William Hague,
O problema é que Coulson não era exatamente “limpo”. Da equipe de jornalistas que comandara no News of the World dois estavam na cadeia, condenados por prática de grampear telefones celulares. Durante o julgamento, provou-se que a prática não se limitara aos grampos nos telefones dos príncipes William e Harry. O júri considerou provado que outras cinco celebridades também haviam tido celulares grampeados.
O NoW alegou que o jornalista encarregado de cobrir a família real Clive Goodman e Glenn Mulcaire, investigador privado, haviam trabalhado por conta própria. Que o jornal não sabia nem aprovava o que estavam fazendo; e que nenhum executivo jamais autorizara qualquer prática ilegal. Coulson, editor conhecido por “trabalhar com a mão na massa”, demitiu-se, ostensivamente assumindo o papel mais digno, e disse que assumia a responsabilidade pelo que acontecera
De fato, ninguém, na administração da empresa News Internacional, tentou manter Coulson na redação; nem se via qualquer sentimento de que quanto mais depressa saísse mais depressa conseguiria reabilitar-se e voltar ao trabalho. Ao contrário. Coulson contaminara o trabalho de todos e tinha de pagar. Destinos diferentes tiveram Goodman e Mulcaire – que moveram ações por demissão sem justa causa e, adiante, assinaram acertos confidenciais –, vistos como os que levaram a culpa por ter feito algo que muitos jornalistas consagrados vêem como parte aceitável “do negócio”.
Mas Coulson tinha amigos e muita gente, com bons motivos, previa que não permaneceria desempregado por muito tempo. O que tornava Coulson particularmente interessante aos olhos de Cameron era que ele garantiria um vínculo de valor inestimável com a empresa News International, de Rupert Murdoch, também proprietário de The Sun, do Times e de News of the World (NoW). E Murdoch tinha um currículo impressionante de candidatos apoiados por ele e eleitos. O apoio de Murdoch tornaria qualquer eleição favas contadas, ou quase. E Cameron enfrentava o problema de ter de convencer alas céticas de seu partido, de que era mais do que criação, tirada do bolso do colete, da própria imprensa. Nesse impasse, ganhar o apoio do homem cujos jornais haviam praticamente eleito Margaret Thatcher e Blair seria praticamente questão de vida ou morte. Para Murdoch, Cameron convencia, no máximo, como peso leve. A que cargos concorrera? Teria a casca grossa indispensável para ser um líder real? Cameron precisava de uma cabeça-de-ponte para chegar a Wapping [1].
Encorajado pelo marketeiro Matthew Freud (convenientemente, genro de Rupert Murdoch) e por George Osborne, Cameron aceitou contratar Coulson. Não se sabe se Cameron então perguntou a Coulson o quanto sabia sobre os grampos telefônicos no NoW durante o tempo que lá trabalhara. Parece que lhe bastaram, como garantia, a indicação de Hague, Osborne e Freud e o que lhe disseram, que Colson não tinha esqueletos no armário. Colegas também disseram que “os feitos superam os malfeitos”.
Por três anos, Andy Coulson fez exatamente o que o chefe queria: orientou-o sobre o que ‘funcionaria’ na mídia, um ‘faro’ para o que seduziria “gente comum” (i.e., gente estranha ao círculo estreito, fechado, de Cameron), e deu-lhe acesso ao mais poderoso barão ‘midiático’. Depois que Gordon Brown caiu em desgraça, o império Murdoch “reposicionou-se”, como quer o jargão da imprensa inglesa, na direção dos Tories. Rebekah Brooks, confidente de Coulson, sua predecessora no reino do News of the World e atual editora-executiva de News International, também acabou seduzida pelo carisma de Cameron. James Murdoch, seu chefe imediato, também, com algum apoio enunciado por grunhidos, do pai, Rupert. Nascia o novo Camerlot [2] que reinaria na Grã-Bretanha, e Coulson era parte crucial desse reino. Nada mau, para alguém que muitos apostavam que acabaria na cadeia, apenas alguns anos antes.
Mas o caso dos telefones grampeados teimava
Mais recentemente, outro dos cinco que denunciaram invasão de privacidade no primeiro processo, Max Clifford, também processou o jornal de Coulson-Murdoch. Só houve acordo, depois de a Justiça ordenar que News of the World revelasse todos os documentos, inclusive, e muito importantes, todos os detalhes sobre quem, precisamente, dentro do jornal, recebia “o material” (assumindo assim que não seria só Goodman) gravado pelos grampos ilegais. Clifford recebeu 1 milhão de libras e retirou a queixa. Mais um, daqueles cinco, o agente de esportes Sky Andrew, mantém aberto o processo e, até agora, tem rejeitado todas as propostas de acordo.
Há cerca de 20 outros processos ainda pendentes contra o jornal, muitos deles envolvendo nomes conhecidos. Inúmeros advogados têm procurado a polícia, para saber se nomes de clientes seus aparecem nos arquivos de Mulcaire e muitos são informados de que sim, lá estão. E quanto ao trabalho da Polícia? A extensão aparentemente industrial da ilegalidade cometida por jornal que continua ativo exige, é claro, mais que dois jornalistas condenados – a penas brandas.
A Polícia foi perguntada sobre isso, ano passado, por uma Comissão de Cultura, Mídia e Esportes do Parlamento. O Comissário-assistente John Yates explicou que a ocorrência de nomes ou números telefônicos (alguns com PINs de segurança) naqueles arquivos não prova que o telefone tenha sido grampeado. Quando o caso contra Goodman e Mulcaire veio à tona, explicou o Comissário-assistente, a Polícia começou a investigar os casos que lhe pareceram ter maior chance de sucesso. Em alguns casos, as vítimas – muitas delas intimidadas pelas matérias publicadas no jornal News of the World – preferiram não colaborar nem apresentar queixa. Seja como for, a impressão dominante é que a extensão do crime não parece compatível com o pequeno número de culpados já identificados e condenados.
Foi quando entraram em circulação as teorias de conspiração. Por que a Polícia estaria dando “cobertura” ao império Murdoch?, perguntavam uns. Por que Andy Hayman, oficial então encarregado das investigações na Yard, e que dissera que a Polícia “só encontrara algumas vítimas”, assina hoje uma coluna no jornal News International? A Comissão de Mídia dos Comuns quis saber quanta colusão houvera entre a Polícia e o jornal News of the World. A celebrada série “Falso Xeique”, publicada pelo NoW e que gerou acusações de corrupção contra três jogadores paquistaneses de críquete, não seria responsável também por outras histórias que teriam levado a perseguições policiais e condenações sem julgamento? Tudo isso, disseram vários, seria evidência de que haveria aí relações tão íntimas quanto pouco saudáveis, mais uma prova de que Rupert Murdoch manda no mundo.
A verdade só muito raramente é simples, sim. E não parece simples, nesse caso. Fontes na Polícia concordam que o trabalho poderia ter sido mais cuidadoso, que muitos cujos nomes apareceram nos arquivos de Mulcaire deveriam ter sido prevenidos de que seus telefones podiam estar grampeados. A Polícia também poderia também ter insistido em alguns pontos que surgiram durante o julgamento, quando outros jornalistas do NoW foram citados. (Apareceu um “Neville”, em contexto suspeito, mas, apesar de o principal repórter do jornal chamar-se Neville Thurlbeck, nunca foi sequer convocado para depor.) Mas apesar de haver clara co-operação entre a Polícia e jornalistas do NoW – e, aliás, também, entre a Polícia e jornalistas de outros jornais – negaram-se enfaticamente todas as suspeitas de que houvesse qualquer impropriedade nessa co-operação.
“Investigamos tudo, do caso Goodman/Mulcaire; usamos o caso como exemplo para outros; mas há um limite para o que mais poderíamos fazer e que tivesse alguma possibilidade de gerar condenações”, disse um alto oficial da Polícia. “Para ser bem franco, depois daquilo surgiram outros assuntos mais importantes.” Muitos advogados ainda temem que a Polícia, em parte para preservar seus dados, esteja escondendo provas contra o NoW, mas a Polícia tem dito que – por causa da dificuldade de as provas que há levarem a alguma condenação –, a Polícia entende que o caso está esgotado. “Quanto antes acabar, melhor”, disse uma fonte, há poucas semanas.
Pode não ser bem assim. Semana passada, longa matéria no New York Times dizia que a Polícia deixou de levar várias provas ao conhecimento dos Procuradores da Coroa, dando mais peso à acusação de que a Policia teria sonegado provas. São acusações que devem ser examinadas pela Home Secretary, Theresa May, que tem a opção de requisitar que a Corregedoria da Polícia investigue o modo como foi conduzido o inquérito policial sobre essa saga.
E quanto a Coulson? Semana passada, Sean Hoare foi o primeiro de seus ex-colegas de jornal a denunciar Coulson publicamente, acusação que, para Downing Street, seria movida por amargura pessoal. Ontem circularam notícias que Coulson teria sido chamado para depor como testemunha da defesa do ex-membro do Partido Socialista Tommy Sheridan que está sendo julgado por perjúrio. O jornal NoW publicou matérias sobre a vida sexual de Sheridan, que processou o jornal e foi indenizado.
Noutra ponta, os advogados encaminham pedidos de acesso aos dados da Polícia, tão logo a Polícia os disponibilize. Aumenta a fila dos interessados
David Cameron disse que não há quem não mereça uma segunda chance, o que só significaria alguma coisa antes de Coulson ter consumido sua segunda chance, ao declarar à Comissão, oficialmente, que nada sabia sobre os grampos. É possível que não soubesse, e que as provas circunstanciais e seu ex-colega Sean Hoare estejam tentando enganar todos nós. Perguntado sobre o mesmo assunto por Cameron há 18 meses, Coulson dissera “categoricamente” que nada tinha com o caso, que nada sabia sobre grampos em celulares.
O que Cameron pode fazer? Coulson é a notícia do dia, e está em todos os jornais, preocupação constante para o primeiro-ministro, mesmo que seja puro como neve. O peso das provas circunstanciais e também das provas cada dia mais conclusivas e legais é grande demais para ser afastado com um sopro. O instinto de Cameron, se continuar persuadido da inocência de Coulson, é dar a volta ao comboio e apoiar seu homem, tanto por razões pessoais quanto por razões profissionais. Deveria ordenar que Coulson se afastasse, até o fim dos julgamentos e que tudo seja esclarecido? Para os amigos de Coulson na Fortaleza Wapping de Murdoch, até isso seria admissão de culpa, que teria consequências diversas, todas pesadas, para seus ex-colegas de trabalho (...).
Fato é que os spots que só recentemente iluminaram Coulson podem voltar a iluminar todos os seus ex-colegas jornalistas e empresários de comunicações. Se se vier a comprovar que Coulson sabia, será que outros sabiam, entre eles o presidente executivo da News International, Les Hinton, o editor-gerente Stuart Kuttner e Rebekah Wade, os mesmos, precisamente, que já declararam à Comissão dos Comuns que nada sabiam?
Ainda que Coulson consiga safar-se, nada garante que os processos contra o jornal parem. Até agora, o NoW já pagou mais de 1,5 milhão de libras em acordos com as infelizes vítimas de telefones grampeados. Se o jornal nada tivesse a esconder, por que tantos acordos tão caros?
Para pôr uma pedra sobre o caso, resolvendo-o definitivamente, seria preciso que Glenn Mulcaire, o investigador privado que sempre esteve no centro de tudo, quebrasse a cláusula de confidencialidade que o mantém ligado ao jornal e contasse a sua parte da história. Mulcaire, ex-jogador profissional de futebol, vive, sem emprego, no sul de Londres, com a esposa e cinco filhos, aparentemente atormentado pelo passado. Já foi procurado para que contasse tudo, mas até agora ninguém conseguiu fazê-lo falar. Em qualquer outro caso semelhante, a imprensa estaria sobre ele com unhas e dentes, oferecendo-lhe dinheiro e ele estaria selecionando propostas. Mas, porque poucos jornais acompanham a história, os preços desse leilão continuam baixos. Quem sabe? Essas coisas mudam de um dia para o outro.
Uma trilha de celebridades: jogadores de futebol, políticos, modelos – todos na lista de alvos.
Todos os nomes que aparecem no escândalo dos telefones grampeados têm um traço comum. Todos estavam no centro de alguma matéria
LINHA DO TEMPO
Agosto de 2005 – Glenn Mulcaire, investigador privado, a serviço do jornal News of the World, grampeia o telefone de Gordon Taylor, presidente-executivo da Associação do Jogadores Profissionais de Futebol.
Novembro de 2005 – O editor que cobria a família real no jornal NoW Clive Goodman encarrega Mulcaire de grampear os telefones de funcionários do Palácio St. James. Circulam histórias sobre o príncipe William, que despertam suspeitas de que seu telefone esteja grampeado.
Dezembro de 2005 – A Scotland Yard é avisada.
Novembro de 2006 – Goodman admite ter conspirado para interceptar telefonemas privados “sem autorização judicial”. Mulcaire declara-se culpado na mesma acusação e em outras acusações de interceptação ilegal de telefones. O editor do jornal NoW Andy Coulson diz: “Já implantei medidas para garantir que nada disso se repita.”
Janeiro de 2007 – Goodman é condenado a quatro meses de prisão, e Mulcaire a seis meses. O editor Andy Coulson demite-se.
Julho de 2007 – David Cameron empossa Coulson no cargo de diretor de Comunicações do Partido Conservador. Gordon Taylor processa o jornal NoW por interceptação ilegal de chamadas de seu telefone celular.
Julho de 2009 – São abertos três processos, pelo Procurador da Coroa, pela Comissão de Reclamações contra a Imprensa e por uma Comissão Parlamentar especial, depois de revelações de que a empresa News International, proprietária do jornal NoW, pagara mais de 1 milhão de libras em acordos, para encerrar processos judiciais que ameaçavam revelar provas de práticas criminosas usadas pelo jornal para obter material para publicação.
Fevereiro de 2010 – Comissão Especial de Cultura critica a “amnésia coletiva” dos executivos da empresa jornalística News International.
Setembro de 2010 – Jornais noticiam que a prática de grampear telefones celulares era muito mais difundida do que a empresa jornalística News International confessou.
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Notas de tradução:
[1] “Fortaleza Wapping”, como era conhecido prédio, fortemente protegido,
[2] Trocadilho com “Camelot” e o nome do candidato. Sobre isso, ver “Camerlot confidential: The big money barons and brokers at the court of King Cameron”, The Independent, 1/6/2006.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Is Coulson the most dangerous man in