domingo, 12 de setembro de 2010

A vida no Talibanistão (3/3) - 3. Casado com a máfia

3/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

Terceiro de uma série de 3 artigos:

1. Meta esses infiéis na cadeia, 2/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

2. O grau zero da cultura, 3/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online

Leia também artigo publicado por este autor, já traduzido pela Vila Vudu, imediatamente depois desta série:

O “Af-Pak” e o Novo Grande Jogo, 8/9/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online


Há dez anos, o Talibã no Afeganistão – o Talibanistão – vivia um pesadelo social, cultural, político e econômico. Há dez anos, o fotógrafo sediado em New York Jason Florio e eu atravessamos sem pressa as terras do Talibanistão, de leste a oeste, da fronteira com o Paquistão em Landi Kotal à fronteira com o Irã em Islam Qillah.


Que dias, aqueles! Bill Clinton curtia suas últimas aventuras na Casa Branca. Osama bin Laden não passava de hóspede discreto do Mullah Omar – e só ocasionalmente chegava às primeiras páginas dos jornais. Ninguém suspeitava de que viria o 11/9, ou a invasão do Iraque, ou a “guerra ao terror”, nem se cogitava do reposicionamento da griffe “guerra do Af-Pak”, nem de uma crise financeira global. Reinava a globalização, e os EUA eram, sem quem os desafiasse, o cão-alfa.

O governo Clinton e os Talibãs já estavam enfiados bem fundo no território do Oleodutostão – discutindo o tortuoso recém-proposto gasoduto Trans-Afegão.


O que se faz aqui é ao mesmo tempo lançar um olhar a um mundo há muito tempo perdido e abrir uma janela para um futuro possível no Afeganistão. Há quem diga que pouco mudou. Ou mais coisas mudaram?


Se a esquizofrenia definiu o poder dos Talibãs, o que ainda reina aqui é a esquizofrenia dos EUA.


Será que os EUA e a OTAN chegarão logo a algum ‘momento Saigon’ – e partirão? Nada indica que sim. O general David “Sempre me posicionando para 2012” Petraeus, como seu antecessor general Stanley McChrystal, fazendo avançar suas forças especiais, força máxima de Assassinatos & Cia., para derrotar os Talibã, o mesmo Petraeus – sem ironia – pode dizer ao programa Fox News, como disse semana passada, que o “objetivo último” da guerra é “a reconciliação” do ultra corrupto governo de Hamid Karzai com os Talibãs.


Isso de fato implica que enquanto não se criarem em campo condições “condições favoráveis”, o governo que apadrinha máfias de traficantes de droga e empresários contratados pelo Departamento de Defesa dos EUA continuarão a – literalmente – matança. Quanto a Petraeus, mestre das chamadas Relações Públicas, tudo fará para vender sua griffe de “surge” afegão aos norte-americanos como alguma espécie de “vitória” – exatamente como conseguiu também reposicionar a griffe “guerra do Iraque” e continuar a vendê-la. E a griffe-guarda-chuva (também reposicionada) convenientemente rotulada “Talibã”, que parece devorar “surges” no café da manhã, se encolherá, à moda pashtun, e confiará que Alá um dia dar-lhe-á a vitória – vitória coisa séria, não fantasia de “Relações Públicas”.


Então, partamos outra vez de volta para o futuro.


HERAT, SPINBALDAK, BALOQUISTÃO – Chegar a Herat depois de viagem infernal partindo de Kandahar, foi como se eu tivesse fumado do excepcional ópio afegão e estivesse em viagem sem escala num delírio persa. Eu havia encontrado mulheres intelectuais, de uma ONG escandinava, postadas bem no centro da teocracia talibânica, mas em Herat elas pareciam estar no lugar certo. Porque Herat parecia absolutamente impermeável a qualquer tirania.


O oásis de Herat – que tem mais de 5 mil anos de história conhecida – é o berço da história e da civilização afegãs. Nasce do rico solo da Ásia Central; Heródoto chamou-o de “o celeiro da Ásia Central”. Por séculos foi ponto de contato e cruzamento entre os impérios turco e persa. Toda a população foi convertida ao Islã no século 7º. Quando entrei na grande mesquita – construída no séc. 7º e reconstruída no século 12 – senti que, afinal, chegava à Pérsia.


Durante a Idade Média, Herat foi um grande centro do Islã sufi – de islamismo místico e profundamente espiritual. Não por acaso, o santo padroeiro da cidade é Khawaja Abdullah Ansari, poeta e filósofo sufi do séc. 11. Genghis Khan conquistou Herat em 1222 e só deixou vivos 40, dos 160 mil habitantes que lá encontrou. Menos de dois séculos mais tarde, a cidade recuperou a glória, quando o filho de Tamerlan e a esposa – rainha Gowhar Shad – transferiram a capital do império, de Samarcanda para Herat.


O império de Tamerlan foi o primeiro em que se mestiçaram a cultura nômade da estepe turca e a alta sofisticação da cultura persa. No bazaar, mercadores anciãos contaram-me – o primeiro ocidental que lá aparecia em quase dois anos – como, no começo do séc.15, a cidade era tão rica quanto Veneza, produzindo os mais finos tapetes, jóias, armas e miniaturas, além de mesquitas, madrassas, banhos públicos, bibliotecas e palácios.


Heródoto teria uma síncope ante a ironia histórica de os Talibãs – com sua fúria patológica contra o sexo feminino – reinarem hoje numa cidade persa na qual um dia reinou uma das figuras de humanista feminina mais sedutoras de toda a Ásia. Gowhar Shad – a mulher, versão persa de Lorenzo de Medici – costumava casar suas “damas de lábios de rubi” com os Talibãs da época.


A rainha construiu um fabuloso complexo, com mesquita, madrassa e seu próprio túmulo, nos arredores de Herat. O túmulo – azulejos persas azuis com decoração floral e vertiginosas inscrições corânicas – é unanimemente reconhecido por historiadores de arte como uma das obras primas da arquitetura islâmica. Sobre o túmulo, uma frase simples “A Bilkis de seu tempo”; “bilkis” pode ser traduzido como “Rainha de Sabá”.


O que resta do complexo são cinco elegantes minaretes, alguns poucos degraus de mármore e pedaços do túmulo de Gowhar Shad. O Império Britânico pôs abaixo praticamente tudo no final do séc. 19 e os soviéticos minaram a área nos anos 1980s para manter longe os mujahideen. Habitantes de Herat contam que, quando os soviéticos bombardearam a cidade em 1979, provocaram mais desgraça que Genghis Khan.




Os Talibãs não tinham nem ideia da prodigiosa história literária e política de Herat. Herat interessava a eles como galinha dos ovos de ouro – o cruzamento pelo qual passavam levas e mais levas de contrabando; veículos de segunda mão, produtos eletrônicos e computadores que vinham de Dubai e Bandar Abbas a caminho do Paquistão. As taxas de pedágio pagas pelas centenas de caminhões carregados que atravessavam Herat todos os dias alimentaram o banco central Talibã e financiaram a guerra para conquistar o norte do Afeganistão que teimava (como ainda teima) em fugir ao seu controle.


Diferente do resto do Talibanistão, não há pobreza de massa em Herat. Cambistas pashtuns paquistaneses disseram várias vezes que os negócios iam bem. Em dois vastos bazaars, crianças de oito anos teciam, apertadas em salas minúsculas, 12 horas por dia, os tapetes que enchiam os mercados asiáticos (hoje, isso mudou; os tapetes são sintéticos, ou made-in-China). Até o toque-de-recolher, às 22h, os bazaars viviam apinhados de gente, como as lojas de sucos e sorvetes.


Intelectualmente, essa Pérsia em miniatura foi enterrada, quando os Talibãs a ocuparam, em 1995; pintores, poetas e professores cruzaram a fronteira, para o Irã. Os Talibãs trancaram todas as mulheres dentro de casa; proibiram visitas aos santuários sufi; impuseram o grau zero de educação, fechando todas as escolas; separaram hospitais para homens e para mulheres; fecharam os banhos públicos; e proibiram as mulheres de freqüentar o bazaar.


Houve resistência. Todos os dias, das 8h às 11h, ao longo dos últimos três anos, Latifah – formada pelo Instituto de Medicina de Herat – manteve sua escola primária doméstica, em casa, onde lecionava matemática, língua persa, língua pashtun, língua inglesa, biologia, física, química e estudos corânicos. Era curso de dois anos, com um mês de férias. Oficialmente, essa escolha “não existiu”. “Mas eles sabem”, disse-me ela. Nunca houve repressão. Mas ela se angustiava quanto ao futuro.







Para seus amados alunos, Latifah – uma de seis filhas de uma família de classe alta de Herat –, era, nada mais, nada menos, que reencarnação de Gowhar Shad. O pai, engenheiro formado na União Soviética, tinha salário de milhares de dólares antes dos Talibãs. Latifah era parte de uma rede que crescia entre os afegãos do leste, de resistência subterrânea – e cria, embora ninguém jamais procurasse qualquer contato, que havia “uma escola em cada rua” e algumas centenas de professores domésticos.


Além das aulas, dava assistência médica aos doentes, e trabalhara numa organização de detecção e desmontagem de minas. Dizia que, para casar, queria “alguém como eu, que me dê permissão para continuar a trabalhar.” Deve continuar trabalhando até hoje, em Herat.


Naquela época, eu já atravessara o Talibanistão de leste a oeste. E já carregava duas certezas. Por tudo que vi, a tribalização do Afeganistão urbano não parecia inevitável – apesar de ter sido acelerada pela teocracia rústica dos Talibã. E a talibanização de toda a Ásia Central – tão temida por Washington, Moscou e Pequim – tampouco me parecia possível. Gowhar Shad, humanista indomável, certamente aprovaria a força de espírito de gente como Latifah com seus lábios de rubi.


Livre comércio, aqui vamos nós!

Um cânion horizontal de contêineres no deserto do Baluquistão[1], entregue a um exército de turbante. Dentro, uma Babel de consumismo, de câmeras de vídeo japonesas a calças inglesas, de seda chinesa a componentes de computador vindos de Taiwan.


Nessa versão Talibã da caverna de Ali Babá, pode-se comprar qualquer coisa; só dinheiro, não se aceitam cartões de crédito. Alguns metros adiante, pilhas de pacotes de heroína, cópias de Kalashnikov e petróleo iraniano convergem numa apoteose ao livre comércio. Sim, porque, há dez anos, o “livre comércio” não existia na Organização Mundial do Comércio, mas já existia lá, em Spinbaldak – com direito a cadeira de pista no maior ring de contrabando do planeta, envolvendo os Talibãs, contrabandistas paquistaneses, barões da droga, chefes tribais com suas máfias privadas de transporte, burocratas, políticos, a Polícia e seletos oficiais do exército.


Essa versão low-tech da Rota da Seda – na qual caminhões substituem as caravanas de 500 camelos – era a verdadeira galinha dos ovos de ouro dos Talibãs. A Rota da Seda, que ligava a China à Europa via o Afeganistão e a Ásia Central era controlada pelos mesmos chefes tribais e nômades que hoje andam por ali em Mercedes.




Essa explosão do livre-comércio só existia por causa da interminável guerra civil no Afeganistão – associada à expansão do negócio das drogas e à avassaladora corrupção no Paquistão. Ao mesmo tempo, esse faroeste coincidia com uma explosão de consumo em toda a Ásia Central.


A droga e máfias de transporte – exatamente na região que, hoje, o Pentágono chama de “Af-Pak” – conviviam ali, há dez anos, em alegre conúbio. Os Talibãs, desde que tomaram o poder em 1996, foram encorajados pelos transportadores a abrir caminhos para o contrabando em massa. Foi a máfia dos transportes em Quetta (capital do Baluquistão) que forçou os Talibãs a invadir e ocupar a cidade persianizada de Herat; assim passaram a controlar completamente o caminho até o Turcomenistão. As palavras de um diplomata paquistanês, numa conversa em Islamabad, são verdadeiras ainda hoje: “É essa máfia que, de fato, controla o destino dos governos no Paquistão e no Afeganistão”.


O “controle” de fronteira entre Chaman, no Baluquistão, e Spinbaldak, no Afeganistão, era piada (e assim continua, até hoje); uma espécie de festa-monstro de confraria, regada a infinitos copos de chá verde. Todo mundo conhece todo mundo. Mas de 400 caminhões e carros cruzavam a fronteira diariamente. A maioria dos caminhões Bedford e Mercedes eram roubados – com chapas frias. Não havia nota fiscal de nada do que carregavam. Os motoristas atravessavam coisa como seis fronteiras internacionais com habilitação falsa, nenhuma nota fiscal, nenhum salvo-conduto, nenhum passaporte. Ninguém pagava taxas de alfândega, nem taxa alguma.


Obviamente, não era lugar recomendado para ocidentais. Fomos acusados de espionar “para a ONU”. Só depois de dúzia e meia de altercações em urdu, afinal fomos ‘adotados’ por alguns clãs – que imediatamente puseram a tentar nos vender coisas. Um Toyota Corolla 92 por apenas 3 mil dólares; um caminhão-tanque para bombeiros, Nihonkkai japonês, por menos de 5 mil dólares; um Toyota Land Cruiser 96 por 10 mil, ou uma moto Yamaha novinha em folha por menos de 700.


Abdul Qadir Achkazi era figura chave na família de um senhor-da-guerra local terrivelmente influente. Cidadão do mundo – já vivera em Tóquio, Cingapura e Dubai e tinha um irmão “mártir” da jihad contra a URSS. Reclinado sobre uma almofada, no tapete que revestia seu contêiner-escritório, servindo o undécimo-milésimo copo de chá verde, era a lei do livre comércio em pessoa.


Todo aquele negócio ali chegara de navio, trazido de Yokohama até Bandar Abbas no Irã, via Dubai nos Emirados Árabes Unidos. O transporte de um contêiner cheio de produtos custava, no máximo, 4 mil dólares. Em Bandar Abbas, o contêiner pagou taxa de armazenamento. De Bandar Abbas, atravessou a fronteira Irã-Afeganistão e chegou a Spinbaldak em cima de um caminhão. Ao entrar no Afeganistão, o importador pagou ao Talibã mais de 7 mil dólares em taxas por contêiner, ou só 3 mil, se transportasse brinquedos. Por cada Toyota importado, os Talibã recebiam mil dólares. De Bandar Abbas até Spinbaldak, as despesas de transporte chegavam a 600 dólares, pagos antes de entrar em Herat – a galinha dos ovos de ouro dos Talibãs.


Abdul contou-me que todos os clientes de seu livre-comércio especial era paquistaneses. E todos os vendedores tinham dupla nacionalidade. Sucesso de venda, naqueles dias, eram aparelhos para cassetes, CDs e computadores (hoje, talvez sejam iPhones).


A absoluta maioria dos vendedores confirmaram que quase todas as compras eram entregues em Quetta – mas entregavam onde o cliente pedisse; afinal, controlavam completamente as redes de transporte. No caso de a entrega não ser em Quetta, cobravam-se 30% ‘de taxa’ extra. Se a mercadoria fosse apreendida pela Polícia, o cliente recebia o dinheiro de volta. Mas em Spinbaldak, disse Abdul, “Tudo é legal. Os Talibãs não interferem porque pagamos todas as taxas”. Em frente a um container onde se vendiam boas velhas Sony Trinitrons, um grupo contou que “Lutamos contra os russos. Agora, apoiamos os Talibãs”.


A fronteira com o Irã, em Islam Qila, deserto de infindáveis tempestades de areia, operava na mesma batida. Os caminhões iranianos descarregavam contêineres, que eram imediatamente metidos em caminhões afegãos que inevitavelmente enfrentavam tempestades de areia. A ‘aduana’ afegã era uma fileira de escritórios de empresas de transporte. Perguntados, os funcionários iranianos manifestavam a polidez mortal de pasdaran inimigo do então ainda vivo Saddam Hussein.


Só em 2000 o Paquistão de fato despertou para os bilhões de dólares em taxas e impostos que desapareciam naquele comércio absolutamente informal. 51% do PIB circulavam naqueles canais informais (não mudou muito). O contrabando era – e continua a ser – rede vastíssima que cobre a Ásia Central, o Irã e o Golfo Persa (e aí está um dos motivos pelos quais nenhuma sanção dará jamais qualquer resultado).


Já em 2000 soava como perfeito delírio a ideia de que seria possível romper os laços entre os poderosos líderes tribais e o Paquistão – ao qual eram e continuam ligados por relações de comércio e de propriedades que avançam para muito além dos limites das áreas tribais. Os chefes tribais defendiam furiosamente esse vasto, ilegal corredor duty-free – que até hoje é fonte de lucros para eles.


A porosidade das fronteiras do Paquistão – das montanhas Khyber até o Baluquistão – foi fator importantíssimo para a luta dos mujahideen afegãos na jihad anti-URSS, mas, ao mesmo tempo, permitiu que se infiltrasse, em todo o território do Paquistão, a cultura Kalashnikov. O Hindu Kush como a Linha Durand, barreiras naturais ou humanas, não impediram um fluxo continuado de horrores da Ásia Central para o Sul da Ásia.


Nesse caso, qual o objetivo do Emirado Islâmico do Afeganistão? Bem, o que aprendi foi que o Talibanistão era condicionado por três “valores”: guerra, comércio e moralidade pia. Os Talibãs conseguiram recriar em praticamente todo o país, a forma mentis de uma madrassa.


As taxas cobradas dos contrabandistas enchiam seus cofres. E uma jihad interna – contra tadjiques, uzbeques, hazaras – justificava o regime. Nem o Estado nem a política tinham qualquer legitimidade; zero noção de cidadania, zero noção de liberdade. Só a crença e a obediência eram legítimas. Dez anos depois, ainda estou convencido de que aquele foi o mais enlouquecido experimento (não) político que o mundo conheceu, exemplo para aparecer nos livros de História.


E assim, afinal, chegamos à fronteira do Baluquistão, entre pirâmides de pneus multinacionais e tráfego totalmente engarrafado de carroças puxadas a burro. O posto da aduana Talibã era uma sala pequena, infestada de moscas. O funcionário estava dormindo. Quando acordou, pediu nossos vistos. Improvisamos – mostramos uma carta do Ministério do Exterior em Kabul. Apanhou a carta e demorou uma eternidade para ler. Afinal, carimbou nossos passaportes. Chegamos à rua principal, como Gary Cooper em Matar ou Morrer [1952, High Noon]. Passou um Talibã de turbante preto. Não resisti: “Bem-vindo ao lar”. Nos metemos num táxi modelo Mad Max, cantamos pneu na poeira daquele buraco negro do século 7º – e a máquina do tempo nos levou de volta ao ano 2000.



“Sim, sim, temos Budas de Bamiyan.”

A informação – enunciada com a calma e a contenção de um míssil Talibã – demorou a fazer sentido. O Primo do Rei das Minas do Baluquistão continuava sorrindo. Estávamos há apenas poucas horas em Quetta, capital da fronteira do lado paquistanês do Baluquistão.


No Afeganistão, fomos presos (duas vezes), ameaçados de ser julgados por tribunal militar, acusados de trabalhar como espiões da ONU. Estávamos exaustos e, no que tivesse a ver com Bamiyan, frustrados. Os funcionários Talibãs em Kabul haviam negado o visto para visitarmos Bamiyan, pelo que disseram, “por motivos de segurança”. Naquele tempo, eu vivia na Tailândia (budista). Quando não estava pensando, tentando entender como funcionaria uma madrassa, no início do 3º milênio, eu sonhava, velho sonho, com conhecer os Budas de Bamiyan. Nunca cheguei a Bamiyan. Em vez disso, Bamiyan veio até mim.


No Quetta Serena Hotel – complexo que parecia ter sido arrancado de Santa Fe, New Mexico – o Primo do Rei das Minas do Baluquistão apareceu em grande estilo: num Toyota Hi-Lux com motorista. Foi o que bastou, para fazer ferver nossa paranóia: os Toyotas Hi-Lux eram itens sempre presentes do Walhalla motorizado dos Talibãs; quando fomos presos no estádio de Kabul, no meio de um jogo, por estar fotografando, quando não fotografáramos coisa alguma, fomos “conduzidos para interrogatório” até o assento traseiro de um Toyota Hi-Lux. Mas o Primo do Rei das Minas do Baluquistão tinha outros planos.


“Vamos conhecer uns nômades.”

Horas depois, estávamos numa tenda, bebericando chá com uma família dos nômades da fronteira do Baluquistão. Comparados aos nômades da miserável Ghazni que víramos no Afeganistão, tentando sobreviver à pior seca dos últimos 30 anos, aqueles viviam, positivamente, com luxo. O chefe da família tentou vender-me um falcão: clientes dos Emirados Árabes Unidos pagavam até um milhão de rúpias por um bom falcão.


O principal do grupo apresentou-se, ele mesmo, como representante comercial afegão no Punjab. Fala com segurança sobre o Afeganistão: os Talibãs estão caindo aos pedaços e o país está dividido em três facções. As três são responsáveis pela destruição geral, tanto quanto a população, sem salvar-se um.


De volta a Quetta, depois do aquecimento com os nômades, fomos conduzidos por um labirinto de tijolos de barro até uma casa no meio de um deserto. Crianças brincavam nas “ruas” empoeiradas. Uma delas desapareceu num buraco e reapareceu com uma estatueta. Depois outra. E outra. E outra. Estávamos contemplando a coleção privada do Primo do Rei das Minas do Baluquistão. Inacreditáveis boddhisatvas greco-budistas, arhats helênicos com as costelas à vista, e até fragmentos de um friso. Do século 3º, 4º, talvez mais antigos. Todos eram Budas pré-Bamiyan.


O Primo do Rei das Minas do Baluquistão é, claro, evasivo. Adoraria vender a coleção para um museu ocidental – mas não consegue tirá-la do país. O museu Guimet de Artes Asiáticas em Paris reabriu, depois de trabalho de restauração que custou 50 milhões de dólares; pagariam qualquer preço por aquela “coleção privada”. Obtivera “quase todas as estatuetas no vale Bamiyan”. Algumas, “do museu de Kabul”. Como? Método efetivo: “Entramos e pegamos.”


Nós ainda com os boddhisatvas na cabeça, o Primo do Rei das Minas do Baluquistão levou-nos para conhecer o Grande Homem em pessoa. Fomos conduzidos à sala de estar dele, decorada com um [tapete] Qom de seda do tamanho de uma quadra de tênis, que nem todo o PIB de todas as províncias afegãs conseguiria comprar. O Rei das Minas do Baluquistão é um baluque da região de fronteira – da tribo sanjirani. Controla as minas de carvão, ônix, mármore e granito. E é homem que vai direto ao ponto.


“O Afeganistão é sociedade tribal. Temos de deixá-la como é”. Para ele, a única solução para o país seria o Rei Zahir Shah[2] voltar ao trono: “Mas já se propôs essa solução no início dos anos 1990s. Agora, é tarde demais.” Para o Rei das Minas, os Talibã “são gente muito agradável”. Mas preocupa-se com o futuro, por causa da grande quantidade de armas no país: “Se o Afeganistão entrar em colapso total, as cinzas voarão diretamente para o Paquistão” (palavras proféticas, há dez anos).


O Rei das Minas nos dá adeus, sonhando com gozar as delícias da vida noturna em New York City. Passaram-se alguns meses. Sempre pensei que, no deserto à volta de Quetta, alguns Budas afegãos ainda dormissem, enterrados até a metade, na areia. Então, em março de 2001, tive certeza de que os Budas que havíamos visto haviam, sim, escapado do destino dos Budas de Bamiyan que os Talibãs bombardearam e reduziram a cacos[3]. E, como o Rei das Minas em pessoa previra, aquelas cinzas, carregadas pelos ventos, voaram diretamente para o Paquistão.




Há dez anos, à altura de março de 2001, só muito pouca gente já percebera que já se jogava um Novo Grande Jogo geopolítico na Ásia Central. Os Talibãs eram – e continuam a ser – apenas um dos jogadores (e dos menos importantes). Ainda destroem arte budista, como destroem o próprio Islã. Mas o budismo ensina o desapego, porque nada há que permaneça, tudo passa.


Há dez anos, o Primo do Rei das Minas poderia ser acusado de vários crimes; poucos meses depois, já teria de ser visto como um homem que salvou parte importante da herança do mundo, da orgia de destruição dos Talibãs. Impermanência, só impermanência: se se considera a volatilidade da Ásia Central, também os bombardeadores, talvez mais cedo do que se supõe, serão também reduzidos a cinzas, no Novo Grande Jogo.


Ou não? Passados hoje dez anos, parecem mais fortes do que antes. Contra todo o poder de fogo dos EUA e da OTAN, eles, lá, parecem acreditar que terão de volta o seu Talibanistão.


General Petraeus, embarque imediatamente de volta para o futuro. E dane-se.


Esta terceira parte do artigo, em inglês, pode ser lida em: LIFE IN TALIBANISTAN - Married to the mob



Notas de tradução:

[1]
Veja mapa .

[2] Aí se relatam conversas acontecidas em 2000-1. O Rei Mohammed Zahir Shah morreu em 2007. Há matéria sobre ele, em português (“Último rei afegão morre aos 92 anos em Cabul”).

[3]Os Budas de Bamiyan foram destruídos, por ordem dos Talibãs, em campanha para destruir monumentos que não fossem islâmicos no país, dia 12 de março de 2001. Veja imagens .