quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Oriente Médio de Obama: retórica e realidade

David Bromwich

25/5/2011, David Bromwich, New York Review of Books
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ser presidente do mundo várias vezes pareceu a Barack Obama trabalho mais agradável que ser presidente dos EUA. O discurso do Cairo, em junho-2009, foi sua primeira performance nesse papel, e ele disse várias coisas surpreendentes, vindas de líder norte-americano – dentre outras, disse que “é hora de pararem os assentamentos [israelenses]”. Mas, como hoje já se sabe, o que viria depois do Cairo nunca chegou sequer a ser planejado. Apesar de Obama ter dito a Benjamin Netanyahu que parasse de construir “assentamentos”, jamais reforçou o dito com alguma específica sanção, nem com a ameaça de suspender algum favor. Jamais se viu qualquer contato entre Obama e líderes políticos árabes legítimos e pró-paz, e é perfeitamente claro para todos que a questão palestina jamais foi preocupação central da política exterior do atual governo dos EUA. Pouco depois do discurso do Cairo, a guerra do Afeganistão e os ataques com aviões-robôs tripulados à distância, contra regiões tribais em território do Paquistão, passaram a ocupar o centro do palco.

Obama sempre preferiu a autoridade simbólica das grandes frases à autoridade real de uma política construída e orientada – política em que se disputam os detalhes, política que tem de ser sustentável, política que deixe ver, muito mais do que só esconda, os objetivos em busca dos quais tenha sido construída. As ordens para matar ou capturar Osama bin Laden e para o atentado que deveria ter assassinado Anwar al-Awlaki num ataque de aviões-robôs, que foi dada imediatamente depois do sucesso bin Laden, são exceções que afirmam a regra: foram ações de momento, decididas e disparadas só pelo presidente, sem consultar ninguém. Nesse sentido pode-se dizer que o novo discurso sobre o Oriente Médio, dia 19 de maio, no Departamento de Estado, foi um retorno a um gênero preferido.

Presidente Barack Obama se reuniu com o primeiro-ministro 
Benjamin Netanyahu de Israel no Salão Oval na Casa Branca, 
sexta-feira, 20 de maio, 2011
Quando fala para público internacional, Obama tende a falar como se fosse os EUA falando ao mundo. E trata os EUA como o país mais ‘crescidinho’ do mundo. Essa postura gera o risco imediato de soar como pai autoritário, de dedo em riste no nariz... do mundo, risco que o presidente dos EUA, presidente jovem e pai jovem, ainda não aprendeu a evitar suficientemente. Tom muito errado ouviu-se, por exemplo, no discurso que fez numa sessão conjunta do Parlamento Indiano dia 8/11/2010, quando declarou apoio à indicação da Índia para o Conselho de Segurança da ONU, mas ‘avisou’: “Mais poder implica mais responsabilidade”. Aconteceu também no discurso no Departamento de Estado, semana passada, quando ‘repreendeu’ os países árabes por reações imaturas e por culparem o ocidente “como fonte de todos os males, meio século depois do fim do colonialismo”.

Em muitos de seus comentários públicos sobre a Primavera Árabe, durante fevereiro, março e abril, Obama sempre manobrou uma gramática do modo imperativo, de dar ordens, sem que se veja de onde viria a indispensável autoridade para mandar. Acabou por se encurralar, ele mesmo – e deu a impressão de estar trabalhando para tornar inevitável uma intervenção militar – de tanto que disse e repetiu que “Gaddafi tem de sair”. Sim, sim, disse coisa semelhante, mas muito mais vaga e mais gentil, quando falou sobre a “transição” a ser liderada por Hosni Mubarak no Egito, que “tem de ser pacífica” e “tem de começar já”. Parece acreditar que a simplicidade dessa ordem causou, adiante, a abdicação de Mubarak, ofendido.

Gramática e disposição semelhantes viram-se também no discurso de 19 de maio, na referência a Bashar al-Assad e a ordem para que a Síria iniciasse imediatamente uma transição: “O presidente Assad pode escolher: pode comandar uma transição, ou que saia do caminho.” Em resumo: Assad tem de sair, ou o modo como Assad entende o próprio governo tem de ser varrido do mundo. Seja como for, pelo menos, o presidente Assad foi tratado com a formalidade que se exige entre dois presidentes. Diferentes são os “Gaddafi” e “Saddam” pelos quais vários presidentes dos EUA têm indicado sempre o desprezo de hoje contra aliados de ontem, dos quais despem hoje o poder de que se serviram ontem e a dignidade ontem tão útil. 

A linguagem que Obama reservou para Ali Abdullah Saleh, presidente do Iêmen – aliado dos EUA na “guerra ao terror” – foi ainda mais linguagem de acomodação. Nesse caso, o presidente deslizou para a construção gramatical preferida dos editoriais não assinados dos jornais de Washington, em tom de observador distanciado que faz comentário simpático: “O presidente Saleh deve seguir a via de cumprir o que prometeu e transferir o poder.”

Até aqui, no que tenha a ver com Obama distribuir ordens. Deve-se dizer que essas ordens emanam de um modo específico de compreender a excepcionalidade do exemplo dos EUA. “Só protestos não violentos e reformas absolutamente pacíficas”, pareceu dizer Obama. Ele só aceitará esses meios de reforma, e a democracia constitucional é o único objetivo político que Obama apadrinhará. É demarcar padrões extremamente exigentes. E, no discurso de 19 de maio, Obama ofereceu três exemplos do sucesso americano: a rebelião contra o império britânico, a guerra civil para abolir a escravidão e o movimento pelos direitos civis dos anos 1950s e 1960s. Dois, desses três movimentos para alargar a democracia norte-americana, foram sangrentos. Essa é evidência que vale a pena destacar, exclusivamente porque a contradição – que, parece, nem Obama viu –  será vista, óbvia, instantaneamente, por todos os árabes. 

Como praticamente todos os políticos e governantes norte-americanos, Obama é prisioneiro de um determinado padrão de ver o que sejam os EUA e a história dos EUA, sempre oferecidos como pedra de toque e exemplos imorredouros de conduta internacional generosa e justa.

Nesse discurso, Obama não se referiu aos “rebeldes” líbios. Em vez disso, destacou a proteção assegurada pelos “aliados” (Grã-Bretanha, França e EUA) contra “a perspectiva de massacre imenso” dos habitantes de Benghazi. Não havia então, nem há hoje, qualquer prova de que houvesse alguma iminência do tal massacre. A ação militar na qual os EUA estão hoje envolvidos, de fato, foi buscar o motivo que lhe faltava no palavreado irado de Gaddafi, num único discurso, dia 22 de fevereiro, quando jurou que seus soldados iriam “de porta em porta”, para caçar e matar os manifestantes. Seja como for, não a Líbia, mas a Tunísia e o Egito, nessa ordem, foram eleitos por Obama como modelo para todas as reformas no mundo árabe.

E que ações concretas Obama propõe, em resposta aos levantes da Primavera Árabe e à repressão sempre violenta que os movimentos receberam dos governos árabes? Em praticamente todos os casos, a resposta é dinheiro. Obama providenciará para preservar a estabilidade financeira, promover reformas e integrar, na economia internacional, as democracias árabes emergentes. Um primeiro empurrão virá de sua decisão de perdoar o 1 bilhão de dólares que o Egito deve aos EUA e de oferecer novo empréstimo de novo 1 bilhão de dólares. Os EUA também apoiarão os esforços do Egito para recuperar “bens que foram roubados” – detalhe que Obama deixou sem explicar  – e ofereceu estímulos a projetos empresariais. E o presidente recomenda “diálogo” entre o governo do Bahrain e os manifestantes pacíficos que estão sendo mortos pelo mesmo governo: “Não se pode manter diálogo real, quando parte da oposição pacífica está na cadeia.”

Muitos participantes de manifestações não violentas estão na cadeia também em Israel – apesar de o padrão israelense não ser o de mantê-los lá, mas deixá-los sair, para novamente, quando novamente for útil a Israel, voltar a prendê-los. Esses atos de repressão contra manifestantes pacíficos ocorrem regularmente junto ao muro de separação em Bil’in. Um dos fatos que Obama não mencionou, sobre o modo como Israel trata os palestinos: várias restrições compatíveis com o discurso do Cairo, e só um ponto menos restritivo (antes, Obama dissera que a expansão das colônias exclusivas para judeus em território palestino é obstáculo à paz), com Obama mudando o próprio foco (agora, a base para a independência dos palestinos estaria nas fronteiras de Israel em 1967).

É ideia aceita e amplamente reconhecida que os dois partidos – Fatah e Hamás -- têm de ser incluídos em qualquer negociação séria para criar um estado palestino independente. Mas políticos israelenses inventaram e repetem, há muito tempo, que seria possível, sabe-se lá como, excluir o Hamás. A formação recente de um governo palestino de unidade, no qual se reúnem os dois partidos, torna absurdo o argumento israelense. Obama de fato admite que é assim, ao enunciar os dois nomes, sem parênteses ou exclamação. Mas em seguida, disse ele, o Hamás deve renunciar à via “do terror e da rejeição”. 

Ao apostar nesse ponto controverso, Obama consagra como fato a ficção de que a violência teria sido constante na vida dos israelenses nos dois últimos anos e que o Hamás seria fonte de parte significativa dessa violência. Houve número maior de ataques com foguetes, mas há boas indicações de que os ataques não são orquestrados pelo Hamás. A verdade é que a expansão das colônias israelenses, o suplício diário de passar pelos pontos de controle na Cisjordânia, o assalto continuado a sitiantes e pastores palestinos, a destruição de casas e a expulsão de palestinos das terras onde vivem geraram várias novas facções mais violentas e declaradamente extremistas que o Hamás.

A estratégia de Obama parece ter sido fortemente influenciada por ideias de políticos de centro conectados com Israel, como Thomas Friedman. A ocupação é ruim, dizem a Obama esses seus conselheiros informais, mas é problema que cabe aos palestinos e israelenses resolverem. Não insista, não mande, nada de “termos impostos”. Friedman gosta de acrescentar que israelenses e palestinos têm de “querer paz” mais do que os norte-americanos querem. Tudo como se fossem dois garotos aos murros num jardim de infância, ou duas gangues de rua, que têm de cansar-se de brigar, para conseguirem ‘fazer as pazes’. A analogia fracassa, porém, quando os brigadores sejam absolutamente diferentes em tamanho, força e armamento. Também deixa de ser pertinente quando o império já esteja sofrendo perdas graves, como efeito colateral da briga. E segundo opiniões tão diversas quanto as de Hillary Clinton e de David Petraeus, o conflito sem solução entre Israel e palestinos é a principal e maior “causa-raiz” do terrorismo dirigido contra os EUA.

Ao limitar-se no discurso de 19 de maio a dar conselhos genéricos aos dois lados que tentara reunir em 2009, Obama despedia-se de qualquer engajamento pessoal ou institucional – como os dois anos de cerrada diplomacia que terminaram dia 13 de maio, com a renúncia de George Mitchell – para promover novas discussões ou insistir em acordar condições para criar-se um estado palestino. Fez um vago alerta contra a serventia de os palestinos insistirem em recorrer à ONU em busca de reconhecimento. E não deixou qualquer porta aberta ou entreaberta para futuros contatos, além do lento trabalho do tempo, com meditações sobre o exemplo dos EUA.

A menção explícita às fronteiras de 1967 talvez seja mais relevante do que pareceu à primeira leitura do discurso de Obama. Porque esse é o único ponto, extraído da longa história das negociações, que Netanyahu e sua coalizão de direita muito trabalharam para afastar das manchetes. “O sonho de um estado judeu e democrático não pode basear-se em ocupação permanente”. Se se combinam essa frase, dita por Obama na 5ª-feira, e a ideia de tomar as linhas de 1967 como base para trocas de terras (“a serem mutuamente acordadas”), a frase implica que os EUA não reconhecem nem um fiapo de legitimidade ao movimento dos colonos judeus. (Netanyahu respondeu imediatamente a essa linha do discurso, em declaração que fez em Jerusalém, em que disse que as fronteiras de 1967 são “inadmissíveis.”)

Nas três principais questões – (1) fronteiras, território e segurança; (2) o status de Jerusalém; e (3) a clara compreensão do que seja um “direito de retorno” dos palestinos –, Obama recomendou “às partes” que comecem pela primeira, que é a mais fácil. E que só depois ataquem os problemas mais difíceis: como se admitirá a grande expansão de propriedades exclusivas para judeus numa Jerusalém Leste árabe; sob que tipo de soberania, una ou partilhada, a cidade existirá; e como se partilhará o direito de retorno, de modo que não prejudique ainda mais os palestinos, com o devido respeito aos medos que os israelenses exageram.

Exceto pela decisão consciente de pronunciar a palavra “1967” – a qual, como soubemos depois, Netanyahu havia claramente pedido a Obama que omitisse –, o discurso de Obama para o Oriente Médio não ousou muito. Limitou-se a uma segura e irrepreensível generalidade. Foi cuidadoso nas promessas (prometeu principalmente dinheiro), que ele próprio poderá cumprir. 

A abstração etérea tão frequente nos discursos de Obama apareceu na expressão “território contínuo”, necessário para a independência palestina. Em discurso no dia 10/12/2010, no Saban Forum da Brookings Institution, Hillary Clinton disse a mesma coisa de modo muito mais claro: “A terra entre o rio Jordão e o Mediterrâneo é limitada, e os dois lados devem saber exatamente que parte pertence a cada um. Devem definir uma linha contínua traçada num mapa, que separará Israel da Palestina.” 

Todos sabem que uma linha contínua não pode ser linha descontínua. Será que todos sabem também que “estado contínuo” (termo consagrado na diplomacia do Oriente Médio) não pode ser estado descontínuo? Obama retrocedeu muito, de volta à imprecisão, exatamente nos pontos em que a precisão mais importa.

No discurso de 19 de maio, Obama nem tentou disfarçar o desagrado com a conduta do governo de Netanyahu. Mas no momento Obama não tem meios para pressionar Netanyahu, que não firam mais o próprio Obama que Netanyahu e que o firam nos EUA – sobretudo no campo dos doadores judeus confiáveis, que os Republicanos vêm tentando afastar do partido Democrata, cada vez com mais empenho, ao longo das três últimas campanhas eleitorais presidenciais. Peregrinações a Israel de Republicanos conhecidos, como Sarah Palin e Mike Huckabee, e o convite a Netanyahu para falar ao Congresso dos EUA, feito por Eric Cantor, líder da maioria, sugerem que aí houve plano secreto executado à vista de todos.

Na década passada, a palavra “ocupação” apareceu ocasionalmente em discursos de presidentes dos EUA ao criticar a expansão colonial israelense na Cisjordânia. Mas a palavra “1967,” apesar de todos saberem que teria de ser a base para quaisquer negociações, apareceu ainda muito menos vezes. Essa decisão discursiva (uma palavra sim, outra não) agradava a Netanyahu e aos seus aliados do movimento dos colonos judeus, os quais evidentemente esperavam que se mantivesse e que, com o tempo, a mudança das palavras levaria a uma mudança de substância. 

Até que a imprensa noticiou depois do discurso de Obama que, antes do discurso, Netanyahu pedira a Obama que não pronunciasse a palavra “1967”, ninguém sabia nem poderia ter descoberto que Netanyahu estava obcecadamente empenhado em impedir qualquer menção a 1967. 1967 era tabu. 

Mas Ethan Bronner, em artigo no New York Times, explicou que, embora nenhuma das partes jamais tivesse esperado que se demarcasse uma precisa linha reta (daí a importância de algumas trocas de territórios), Netanyahu hoje se opõe firmemente à ideia de que (como Bronner escreve, parafraseando expressão de Netanyahu) “qualquer terra que seja preservada para Israel deva ser compensada por outra terra”. O que significa isso? Significará que Netanyahu só aceitará negociações que levem a alguma espécie de ‘aquisição’ de terras, por Israel, a partir das terras que ocupou em 1967? Netanyahu reiterou sua objeção, no comentário do dia 20 de maio, depois de encontrar-se com o presidente Obama na Casa Branca. Israel, disse ele, “não pode retroceder para as linhas de 1967” – por dois motivos: porque aquelas antigas fronteiras deixariam o país exposto a ataques; e, também, por causa de “algumas mudanças que aconteceram em campo”.

Na próxima semana, o próprio Netanyahu já tem ingressos garantidos para mais duas ocasiões nas quais poderá trabalhar para seduzir outros corpos norte-americanos e ganhar simpatias para as “algumas mudanças”, simpatia que não conseguiu obter de Obama: a Conferência Anual do AIPAC, dia 22 de maio, e o Congresso dos EUA, onde discursará dia 24 de maio.

A reação de extrema hostilidade de Netanyahu contra um único ponto, pode ter obscurecido a importância do muito que ele obteve, de muito substantivo, de Obama. Porque, sim, há mensagem claríssima na evidência de que Obama declarou, por omissão, no discurso do Departamento de Estado, que o governo dos EUA não tem qualquer plano para promover ou intermediar novas negociações de paz entre Israel e o governo de unidade palestina. Nem uma palavra sobre Gaza e só um rápido conselho, de espectador distanciado, sobre a Cisjordânia. 

Em termos bem práticos, portanto, mais um presidente dos EUA deu as costas a qualquer ativo engajamento na luta contra o desafio da ocupação israelense na Palestina. Antes das eleições presidenciais de 2012, os EUA não farão qualquer pressão a favor de um estado palestino. 

Quanto ao movimento de massas que já está crescendo dos dois lados das fronteiras de Israel, Obama parece ter calculado com seus botões que, em breve, em alguns poucos anos, os israelenses já terão aprendido a entender como profecia benevolente o que ele disse no discurso de 19 maio.

Um comentário:

  1. Prezados
    O que o articulista não percebeu é que o PRESIDENTE DO MUNDO, na verdade, mas na verdade MESMO é Benyamin Netanyahu.
    Isso foi possível perceber a prestação de VASSALAGEM prestada pelo Congresso após o discurso de Bibi...
    Obama é em sí apenas figura... de retórica.
    Castor

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