Eric
Hobsbawn (1917-2012)
“Introdução ao Manifesto Comunista”, Ed. Verso, NY, 2012
(abril)
(indicação de Nicolás Alberto
González Varela, e-mail, de 3/10/2012)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Atenção:
Essa é tradução difícil e importante. Todos os comentários, sugestões e
correções são bem-vindos (Vila Vudu)
I
Na
primavera de 1847, Karl Marx e Frederick Engels concordaram em unir-se à chamada
“Liga dos Justos” [Bund der Gerechten], desdobramento da “Liga dos
Proscritos” [Bund der Geächteten], que existira antes, sociedade
revolucionária secreta formada em Paris nos anos 1830s influenciada pela
Revolução Francesa, de trabalhadores alemães – a maioria alfaiates e marceneiros
– e ainda constituída, principalmente, de artesãos radicais exilados. A Liga,
seduzida pelo “comunismo crítico” dos dois, ofereceu-se para publicar um
Manifesto rascunhado por Marx e Engels como sua plataforma política e,
também, para modernizar a organização acompanhando aquelas novas orientações. De
fato, o movimento foi reorganizado no verão de 1847. Passou a chamar-se “Liga
dos Comunistas” [Bund der Kommunisten], comprometida com o objetivo de
“derrubar a burguesia”, promover “o governo do proletariado”, por fim “à velha
sociedade que repousa sobre contradições de classe [Klassengegensätzen] e
estabelecer “uma nova sociedade sem classes ou propriedade privada”. Um segundo
congresso da Liga, também realizado em Londres, em novembro-dezembro de 1847,
aceitou formalmente os objetivos e os novos estatutos, e convidou Marx e Engels
a redigir o novo Manifesto, em que se exporiam os objetivos e políticas da Liga.
Embora
ambos, Marx e Engels tenham preparado rascunhos e o documento claramente
manifeste pontos de vista comuns, o texto final, quase com certeza, foi redigido
por Marx – pressionado duramente pela Comissão Executiva, porque Marx, como
outras vezes, praticamente só conseguia concluir seus escritos se pressionado
por prazo rigidamente demarcado e relembrado. A ausência virtual de rascunhos
sugere que tenha sido redigido rapidamente [i]. O documento resultante, de 23
páginas, intitulado Manifesto of the Communist Party [Manifesto do
Partido Comunista] (mais conhecido, a partir de 1872, como O Manifesto
Comunista), foi “publicado em fevereiro de 1848” , impresso na sede da Workers’ Educational Association
[Associação dos Trabalhadores da Educação] (mais conhecida como
Communistischer Arbeiterbildungsverein, que sobreviveu até 1914), na casa
n. 46 da Liverpool Street no centro
de Londres.
Esse
pequeno panfleto é, de longe, a peça mais influente de escritura política desde
a Declaração dos Revolucionários Franceses, dos Direitos do Homem e dos
Cidadãos. Por sorte, chegou às ruas apenas uma ou duas semanas antes de
eclodirem as revoluções de 1848, que se espalharam como fogo em mato seco, de
Paris para todo o continente europeu. Embora tivesse horizonte firmemente
internacional – a primeira edição anunciava, esperançosa, mas infelizmente
erradamente, que se seguiriam edições do Manifesto em inglês, francês,
italiano, flamengo e escocês – o documento só teve impacto inicial
exclusivamente na Alemanha. Por pequena que fosse a Liga Comunista, teve papel
não insignificante na Revolução Alemã, no mínimo através do jornal Neue
Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana] (1848–49), editado por Karl Marx. A
primeira edição do Manifesto teve três reimpressões em poucos meses, foi
publicada em capítulos no Deutsche
Londoner Zeitung, revista, corrigida e reformatada
para 30 páginas em abril ou maio de 1848, mas desapareceu de circulação com o
fracasso das revoluções de 1848. Quando Marx estabeleceu-se para exílio que
seria de toda uma vida, na Inglaterra, em 1849, o Manifesto tornara-se
peça suficientemente rara para que Marx cogitasse de reimprimir a Seção 3
(‘Socialistische und kommunistische Literatur’) no último número de sua
revista londrina, Neue Rheinische Zeitung, politisch-ökonomische Revue
(nov. 1850), que tivera bem poucos leitores.
Nos
anos 1850s e início dos 1860s, ninguém preveria que o Manifesto teria
futuro glorioso. Uma pequena nova edição foi lançada privadamente em Londres por
um impressor alemão emigrado, provavelmente em 1864, e outra edição também
pequena em Berlim, em 1866 – a primeira que, de fato, foi realmente publicada na
Alemanha. Entre 1848 e 1868, parece não ter havido traduções, além de uma versão
sueca, publicada provavelmente no final de 1848, e uma versão em inglês, em
1850, que só é importante para a história bibliográfica do Manifesto
porque a tradutora parece ter consultado Marx – ou (dado que ela vivia em
Lancashire), mais provavelmente, Engels. Essas duas versões sumiram sem deixar
traço. Em meados dos anos 1860s, praticamente já não havia, impressa, sequer uma
linha do que Marx escrevera até ali.
O
destaque de Marx na Associação Internacional de Trabalhadores [ing. International Working Men’s Association]
(a chamada “1ª Internacional”, 1864-72) e a emergência, na Alemanha, de dois
importantes partidos da classe trabalhadora, ambos fundados por ex-membros da
Liga Comunistas, que o tinha em alta conta, levaram a um ressurgimento do
interesse pelo Manifesto, e pelos outros escritos de Marx. Em especial, uma
eloquente defesa da Comuna de Paris de 1871 (mais conhecida como A Guerra
Civil na França [ing. The Civil War in France) deu a Marx
considerável notoriedade na imprensa, como um perigoso líder da subversão
internacional, temido pelos governos. Mais especificamente o julgamento por
crime de traição dos líderes da Social- Democracia Alemã, Wilhelm Liebknecht,
August Bebel e Adolf Hepner em março de 1872, deu ao Manifesto
publicidade inesperada. A acusação leu o texto do Manifesto para registro
nos autos do julgamento e, assim, deu aos Sociais-Democratas a primeira
oportunidade para publicá-lo legalmente, em grande tiragem, como parte dos
documentos do processo. Quando já não havia dúvidas de que o documento publicado
antes da Revolução de 1848 tinha de ser atualizado e precisava de comentário
explicativo, Marx e Engels escreveram o primeiro de uma série de Prefácios, que,
desde então, acompanharam, quase sempre, novas edições do Manifesto [ii]. Por impedimentos de lei, o
prefácio não pode ser amplamente distribuído naquele momento, mas, de fato, a
edição de 1872 (baseada na edição de 1866) tornou-se base para todas as edições
subsequentes. Entre 1871 e 1873, surgiram pelo menos nove edições
do Manifesto, em seis línguas.
Nos
quarenta anos seguintes, o Manifesto conquistou o mundo, levado avante
pelo nascimento de novos partidos (socialistas) trabalhistas, nos quais a
influência marxista aumentou rapidamente nos anos 1880s. Nenhum daqueles
escolheu chamar-se Partido Comunista, até que os russos bolcheviques retornaram
à designação original depois da Revolução de Outubro, mas o título Manifesto
do Partido Comunista permaneceu inalterado. Já antes da Revolução Russa de
1917 houve várias centenas de edições em cerca de 30 idiomas, inclusive três
edições em japonês e uma em chinês. Mesmo assim, a principal região de
influência ainda era o centro da Europa, da França a oeste, à Rússia a leste.
Não surpreendentemente, o maior número de edições foram em russo (70) além de
outras 35, nos idiomas do império czarista – 11 em polonês; sete em iídiche;
seis em finlandês; cinco em ucraniano; quatro em georgiano; duas em armênio.
Houve 55 edições em alemão a mais, para o Império Habsburgo; outras nove em
húngaro e oito em tcheco (mas apenas três edições croatas, uma em eslovaco e uma
em esloveno), 34 em inglês (cobrindo também os EUA, onde a primeira tradução
apareceu em 1871), 26 em francês e 11 em italiano – a primeira das quais só
apareceu em 1889 [iii]. Teve pequeno
impacto no sudoeste da Europa – seis edições na Espanha (incluídas as para a
América Latina); uma em português. O impacto no sudeste da Europa foi pequeno
(sete edições em búlgaro, quatro em sérvio, quatro em romeno, e uma única edição
em ladino, publicada, provavelmente, em Salonica). O norte da Europa
aparece moderadamente bem representado, com seis edições em holandês, cinco em
sueco e duas em norueguês [iv].
Essa
distribuição geográfica desigual não reflete só o desenvolvimento desigual do
movimento socialista, e da influência de Marx, especificamente diferente de
outras ideologias revolucionárias, como o anarquismo. Deve fazer-nos lembrar
também de que não havia qualquer correlação forte entre o tamanho e o poder dos
partidos social-democratas e trabalhistas, e a circulação do Manifesto.
Até 1905, o Partido Social-Democrata Alemão [ing. German Social-Democratic Party (SPD)],
com suas centenas de milhares de membros e milhões de eleitores, publicou novas
edições do Manifesto que não ultrapassavam 2.000, 3.000 cópias. O
Erfurt Programme, programa do Partido de 1891 foi publicado com 120 mil
cópias; mas não se editaram mais de 16 mil cópias do Manifesto nos onze
anos entre 1895 e 1905, ano em que a circulação do jornal teórico do Partido,
Die Neue Zeit, era de 6.400 exemplares [v]. Não se esperava que o membro médio
de um partido social-democrático marxista de massa tivesse de ser “aprovado” em
“exames” teóricos. Mas as 70 edições na Rússia pré-revolucionária representaram
uma combinação de organizações, ilegais durante a maior parte do tempo, cujo
número total de membros não pode ter ultrapassado uns poucos milhares. Assim
também as 34 edições em inglês foram publicadas por e para as múltiplas seitas
marxistas que se distribuíam pelo mundo anglo-saxão, que operavam no flanco
esquerdo de quantos partidos socialistas e trabalhistas existiram. Esse era o
milieu no qual “a clareza de um camarada podia ser aferida
invariavelmente pelo número de anotações em seu Manifesto” [vi]. Em resumo, os leitores do
Manifesto, embora fossem parte dos novos e crescentes partidos e
movimentos trabalhistas e socialistas, praticamente com certeza não eram amostra
representativa do corpo de membros dos partidos. Eram homens com algum especial
interesse na teoria subjacente àqueles movimentos. Provavelmente, ainda é assim.
A
situação mudou depois da Revolução de Outubro – também nos Partidos Comunistas.
Diferentes dos partidos de massa da 2ª Internacional (1889-1914), os da 3ª
Internacional (1919-43) esperavam que todos os seus membros compreendessem a –
ou, no mínimo, que mostrassem algum conhecimento da – teoria marxista. A
dicotomia entre os líderes políticos efetivos, desinteressados de escrever
livros, os ‘teóricos’ como Karl Kautsky – conhecido e respeitado como tal, mas
não como decisor político prático – desapareceu.
Seguindo
Lênin, todos os líderes deviam então ser teóricos importantes, porque todas as
decisões políticas eram justificadas por argumentos da teoria marxista – ou,
mais provavelmente, por referência à autoridade textual dos “clássicos”: Marx,
Engels, Lênin e, na sequência, Stálin. A publicação e distribuição popular de
textos de Marx e Engels tornaram-se, portanto, de longe, mais centrais para o
movimento do que haviam sido nos dias da 2ª Internacional. Iam de séries de
escritos curtos, dos quais o pioneiro parece ter sido provavelmente o alemão
Elementarbücher des Kommunismus durante a República de Weimar, e
compêndios correspondentemente selecionados de leituras, como os inestimáveis
Selected Correspondence of Marx and Engels [Correspondência Selecionada
de Marx e Engels], os Selected Works of Marx and Engels [Obras
Selecionadas de Marx e Engels] em dois – adiante em três – volumes, e a
preparação de suas Obras Selecionadas [Gesamtausgabe]; todas essas
publicações patrocinadas pelos ilimitados – para esses objetivos – recursos do
Partido Comunista Soviético e, muitas vezes, impressos na União Soviética em
vários idiomas.
O
Manifesto Comunista foi beneficiado por essa nova situação, por três
vias. A circulação sem dúvida aumentou muito. A edição barata publicada em 1932
pelas editoras oficiais dos Partidos Comunistas Americano e Britânico, “centenas
de milhares” de cópias, foi descrita como, “provavelmente a maior edição de
massa jamais lançada em inglês” [vii]. O título já não era
sobrevivência histórica, mas aparecia então ligada diretamente à política
corrente. Dado que já havia um Estado que declarava representar a ideologia
marxista, o status do Manifesto como texto de ciência política foi
reforçado, e, nesses termos, foi admitido nos programas de ensino de
universidades, destinado a expandir-se rapidamente depois da 2ª Guerra Mundial;
o marxismo para leitores intelectuais encontraria seu público mais entusiasmado
nos anos 1960s e 1970s.
A
URSS emergiu da 2ª Guerra Mundial como uma das duas superpotências, liderando
vasta região de estados comunistas e agregados. Os Partidos Comunistas
Ocidentais (com a notável exceção do Partido Alemão) emergiram mais fortes da 2ª
GM do que jamais haviam sido ou poderiam ser. Embora a Guerra Fria já estivesse
em curso, quando completou cem anos o Manifesto já não era editado
exclusivamente por editores comunistas ou marxistas, mas recebia grandes edições
de empresas editoras comerciais não políticas, com introduções de intelectuais
ilustres. Em resumo, já não era documento clássico marxista; tornara-se
documento clássico político.
Assim
continua, mesmo depois do fim do comunismo soviético e do declínio dos partidos
e movimentos marxistas em muitas partes do mundo. Em Estados sem censura,
qualquer pessoa que tenha acesso a uma boa livraria ou a uma boa biblioteca, tem
acesso fácil a ele. O objetivo de uma nova edição, em 2012, portanto, não é
tanto tornar acessível o texto dessa espantosa obra-prima nem, menos ainda,
voltar a um século de debates de doutrina sobre a interpretação ‘correta’ desse
documento fundamental do marxismo. O objetivo é, isso sim, lembrar-nos que
o Manifesto ainda tem muito a dizer ao mundo nas primeiras décadas do
século 21.
II
E
o que o Manifesto ainda tem a dizer?
É,
é claro, documento escrito para um momento particular na história. Parte dele
tornou-se obsoleta quase imediatamente – por exemplo, as táticas recomendadas
para os Comunistas na Alemanha, que não foram as aplicadas por eles durante a
Revolução de 1848 e depois. Outras partes também se tornaram obsoletas, conforme
aumentava o tempo que separava o escrito e os leitores. Guizot e Metternich há
muito tempo aposentaram-se dos postos de governos-líderes nos livros de
história; o Czar já não existe (embora o Papa, sim). E quanto à discussão de
“Literatura Socialista e Comunista”, os próprios Marx e Engels admitiram em 1872
já estava fora de moda.
Mais
diretamente ao ponto: com o passar do tempo, a linguagem do Manifesto foi
deixando de ser a linguagem dos seus leitores. Por exemplo, muito já se disse
sobre a frase segundo a qual o avanço da burguesia teria arrancado “uma parte
significativa da população à idiotia
[1] [Idiotismus] da vida
rural” [2]. Mas, embora já ninguém
duvide de que Marx naquele momento partilhava
o desprezo habitual dos citadinos pelo – tanto quanto a ignorância sobre – o
mundo camponês, a frase em alemão, real e analiticamente mais interessante
(“dem Idiotismus des Landlebens entrissen”) não fala de “idiotia” [ing.
stupidity], mas de “horizontes estreitos” ou “o isolamento, o afastamento
da sociedade mais ampla”, no qual viviam as pessoas do campo. A palavra em
alemão ecoa o significado de idiotes grego, do qual deriva idiot
[ing.] de onde idiocy [ing.]: “pessoa interessada só nos próprios
assuntos privados, não nos interesses da comunidade mais ampla”. Ao longo das
décadas desde os anos 1840s – e em movimentos cujos membros, diferentes nisso de
Marx, não tinham educação clássica – o significado original evaporou e a
interpretação desviou-se.
Isso é ainda mais evidente no
vocabulário político do Manifesto. Termos como “Stand” [3],
“Demokratie” ou “Nação/nacional” ou
pouco se aplicam à política do final do século 20 ou já não conservam o
significado que tiveram no discurso político ou filosófico dos anos 1840s. Para
oferecer um exemplo óbvio: o “Partido Comunista” que apresentava nosso texto
como seu Manifesto nada tinha a ver com os partidos da moderna política
democrática, ou com os “partidos de vanguarda” do Comunismo Leninista, muito
menos com os partidos de Estado de tipo soviético ou chinês. Nem com qualquer
dos partidos que existiam. “Partido” ainda significava essencialmente uma
tendência ou corrente de opinião ou política. Mas, sim, Marx e Engels reconhecem
que, quando encontrou expressão em movimentos de classe, desenvolveu-se um tipo
de organização (“diese Organisation der Proletarier zur Klasse, und damit zur
politischen Partei”).
Daí
que a distinção, na Seção IV, entre “partidos existentes da classe trabalhadora
(...) os Cartistas na Inglaterra e os reformadores agrários nos EUA e os
outros”, ainda não havia [viii].
Como o texto esclarece, naquele estágio o Partido Comunista de Marx e Engels não
era nenhum tipo de organização, nem tentava criar alguma organização – muito
menos uma organização com programa específico diferente do de outras
organizações [ix]. Vale lembrar que
não aparece no corpo do documento, sequer uma vez, sequer o nome da Liga
Comunista, a organização para a qual o Manifesto fora redigido.
Mais
importante que isso, é claro não só que o Manifesto foi redigido em e
para uma específica situação histórica, mas, também que representou uma fase –
relativamente imatura – do desenvolvimento do pensamento marxiano. Vê-se bem
evidente, nos aspectos econômicos.
Embora
Marx tenha começado a estudar economia política seriamente em 1843, só ao chegar
a Londres, depois da Revolução de 1848, é que decidiu desenvolver a análise
econômica exposta em O Capital, depois que conseguiu ter acesso aos
tesouros da Biblioteca do Museu Britânico, no verão de 1850. Assim, quando o
Manifesto foi escrito, muito claramente ainda não existia a distinção entre
(a) a venda do trabalho pelos proletários aos capitalistas e (b) a venda da
força de trabalho – que é essencial na teoria marxiana da mais valia e da
exploração, nem essa distinção foi operada no/pelo Manifesto. Nem o Marx
maduro aceitaria a ideia de que o preço da mercadoria “trabalho” seria seu custo
de produção – i.e, o custo do mínimo fisiologicamente necessário para manter
vivo o trabalhador. Em
resumo: Marx escreveu o Manifesto mais como comunista
ricardiano, que como economista marxiano.
Mesmo
assim, embora alertando os leitores de que o Manifesto era documento de
valor histórico, desatualizado em vários aspectos, Marx e Engels promoveram e
auxiliaram a publicação do texto em 1848 – com mínimas alterações, quase todas
pequenas correções para tornar mais clara a exposição original [x]. Mas preservaram, sem qualquer
alteração, a análise histórica.
Assim,
Marx e Engels reconhecem que o Manifesto permanecia como declaração plena
de que a análise ali construída continuava a ser o que distinguia o comunismo de
ambos, de todos os demais projetos circulantes para criar uma sociedade melhor.
O núcleo daquela específica análise estava na demonstração do desenvolvimento
histórico das sociedades, especificamente da sociedade burguesa, que se impôs às
sociedades anteriores, revolucionou o mundo e, simultaneamente, criou
necessariamente as condições que levariam à superação da própria sociedade
burguesa.
Diferente
da economia marxiana, a “concepção materialista da história” que embasa essa
análise, portanto, já encontrara sua formulação madura em meados dos anos 1840s.
E permaneceu substancialmente inalterada nos anos posteriores [xi].
Sob
esse ponto de vista – de incorporar a visão histórica – o Manifesto já é
documento de definição do marxismo, embora o esboço geral ali apresentado
tivesse ainda de ser preenchido com análises mais
completas.
III
Como
o Manifesto atingirá o leitor que chegue hoje a ele, pela primeira vez?
Dificilmente o novo leitor conseguirá resistir à força da convicção apaixonada,
da síntese densa, de altíssima concentração, ao vigor intelectual e do estilo
desse assombroso panfleto.
Dá
a impressão de ter sido escrito numa só explosão de criatividade, em sentenças
lapidares que se vão juntando para sempre na memória, como aforismos
inesquecíveis que se tornaram conhecidos em todo o mundo, também fora dos
limites do debate político: da primeira linha “Um espectro apavora a Europa – o
espectro do Comunismo”, até a última “Os proletários nada têm a perder, além das
cadeias. E têm um mundo a ganhar!” [xii]
O
registro linguístico do alemão do século 19 em que o Manifesto foi
escrito também é espantoso: só frases curtas, parágrafos com, no máximo, cinco
linhas – regra só quebrada em cinco parágrafos, das mais de 200 linhas do
documento, em que o parágrafo tem 15 ou mais linhas. Além de tudo mais que
também é, o Manifesto Comunista é retórica política de força quase
bíblica. É impossível negar o impressionante poder desse documento, também como
literatura [xiii]
[4].
Mesmo
assim, o que mais perturbará o leitor contemporâneo é o notável diagnóstico que
ali lerá, do caráter revolucionário e do impacto que teve, no mundo a “sociedade
burguesa”. Não se trata só de Marx ter reconhecido e proclamado as
extraordinárias realizações e o dinamismo da sociedade que ele mais detestava –
o que muito surpreendeu e perturbou mais de um defensor posterior do capitalismo
contra “a ameaça vermelha”. O mais espantoso é que o mundo transformado pelo
capitalismo que Marx descreveu em 1848, em passagens de eloquência lacônica,
fatal, de cores de chumbo, é perfeitamente reconhecível hoje, no mundo em que
vivemos, 150 anos depois doManifesto, a qualquer leitor sensível que o
aborde.
Curiosamente,
o otimismo político quase delirante, irrealista, de dois jovens revolucionários
(28 e 30 anos) é, comprovadamente, a segunda força mais poderosa que ainda emana
do Manifesto.
Porque,
por mais que o “espectro do Comunismo” apavorasse, sim, os políticos, e por mais
que a Europa vivesse período de profunda crise econômica e social, e por mais
que estivesse a poucos anos da eclosão da maior revolução política que o
continente jamais conhecera, não havia suficientes dados de realidade, naquele
momento, para a crença do Manifesto de que se aproximava o momento de
derrubar o capitalismo (a revolução burguesa na Alemanha não passaria de
prelúdio, a ser seguido, imediatamente pela revolução proletária). Nada disso
aconteceu assim. Como hoje sabemos, o capitalismo se posicionava, então, para
sua primeira era de avanço triunfalista global.
Dois
traços dão ao Manifesto a força que ainda tem.
Primeiro,
a visão, mesmo na véspera de um passo gigantesco na marcha triunfal do
capitalismo, de que esse modo de produção não é permanente, nem estável, nem
seria “o fim da história”; que seria apenas fase temporária da história da
humanidade – a qual, como tudo que antes houve, seria superada por tipo novo de
sociedade (até que sobreviesse a desgraça comum das duas classes em guerra – e,
essa, uma frase raramente relembrada do Manifesto).
Segundo,
o reconhecimento, no Manifesto, das tendências necessárias do
desenvolvimento histórico do capitalismo. O potencial revolucionário da economia
capitalista já era bem evidente – Marx e Engels nunca pretenderam ser os únicos
a verem isso. Desde a Revolução Francesa, algumas das tendências que eles
observaram já geravam efeitos substanciais – por exemplo, o declínio de
“províncias independentes ou frouxamente conectadas, mas com interesses, leis,
governos e sistemas de impostos separados, em oposição aos estados-nação, com
governo único, sistema de leis unificado, um só interesse nacional de classe,
fronteira única e uma só tarifa aduaneira”.
Mesmo
assim, ao final da década dos 1840s, o que “a burguesia” conseguira era muito,
muito menos do que os milagres a ela atribuídos no Manifesto. Afinal, em
1850 o mundo não produziu mais que 71 mil toneladas de aço (quase 70% disso, na
Grã-Bretanha) e construiu apenas 24 mil quilômetros de estradas de ferro (2/3
dos quais na Grã-Bretanha e nos EUA). Não foi difícil para os historiadores
mostrar que mesmo na Grã-Bretanha, a Revolução Industrial (termo usado
especificamente por Engels a partir de 1844) [xiv] só conseguira criar um país
industrial – ou, pelo menos, predominantemente urbano) até a década dos 1850s.
Marx
e Engels não descreveram mundo que já tivesse sido transformado pelo capitalismo
em 1848: eles previram que o mundo estava logicamente destinado a ser
transformado pelo capitalismo.
Hoje,
no 3º milênio do calendário ocidental, vivemos em mundo no qual aquela
transformação já aconteceu, pelo menos em grande parte. Em vários
sentidos, podemos hoje ver mais claramente a força das previsões do
Manifesto, do que as muitas gerações que o leram antes de nós, desde a
publicação ou os leitores contemporâneos do documento. Porque, até a revolução
nos transportes e nas comunicações posteriores à 2ª Guerra Mundial, havia
limites poderosos contra a globalização da produção; era fisicamente impossível
dar “um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em cada país”. Até a década
dos 1970s, a industrialização manteve-se, em vasta medida, confinada às suas
regiões de origem. Algumas escolas marxianas puderam até argumentar que o
capitalismo, pelo menos em sua modalidade imperialista, longe de ter forçado
“todas as nações, à beira da extinção, a adotar o modo burguês de produção”,
estaria por sua própria natureza perpetuando – ou, mesmo, criando – o
subdesenvolvimento no chamado Terceiro Mundo.
Enquanto
um terço da espécie humana viveu sob economias do tipo soviético comunista,
pareceu que o capitalismo jamais conseguiria sujeitar todas as nações e
obrigá-las a “tornarem-se burguesas, elas também”. Parecia que o capitalismo não
teria potência para “criar um mundo à sua própria imagem”.
Antes
dos anos 1960s, a declaração do Manifesto, de que o capitalismo traria
consigo a destruição da família soava como ideia que jamais se confirmaria.
Hoje, estatísticas dos países ocidentais avançados mostram que quase metade de
todas as crianças nascem sem pai ou são criadas só pela mãe; que metade de todos
os lares nas grandes cidades são lares mantidos por pessoas solteiras.
Em
resumo: o que em 1848 poderia soar como retórica revolucionária oca aos ouvidos
de leitores desatentos – ou, no máximo, como previsão plausível – pode hoje ser
lido como caracterização resumida e precisa do capitalismo que todos vimos em
casa e à volta de casa, no final do século 20. De que outro documento escrito
nos anos 1840s poder-se-ia dizer o mesmo?
IV
Contudo,
se ao final do milênio ainda nos surpreende a precisão com que o
Manifesto anteviu o então distante futuro de um capitalismo massivamente
globalizado, também chama a atenção o rotundo fracasso de outra previsão do
mesmo documento. Salta aos olhos, hoje, que a burguesia não produziu “os seus
próprios coveiros: os proletários”. A queda da burguesia e a vitória do
proletariado absolutamente não parecem, hoje, “inevitáveis”. O contraste entre
as duas metades da análise desenvolvida no Manifesto – a parte que se lê
na seção “Burgueses e Proletários” – exige ainda mais explicação hoje, do que
quando comemorou o centenário, há 150 anos.
O
problema não está na visão de Marx e Engels de um capitalismo que
necessariamente transformaria, como transformou, quase todos que têm de ganhar a
vida nessa economia de homens e mulheres que dependem, para sobreviver de
alugarem-se eles mesmo, em troca de salário ou diárias. Não há dúvidas de que o
capitalismo tendia a fazer o que fez, embora os salários de alguns, tecnicamente
empregados, como altos gerentes de corporações, impeçam absolutamente de
descrevê-los como proletários. O problema não está, tampouco, essencialmente, na
crença de que a população trabalhadora seria força de trabalho industrial.
Enquanto a Grã-Bretanha manteve-se como caso excepcional, no qual os
trabalhadores manuais assalariados eram maioria absoluta da população, o
desenvolvimento da produção industrial exigiu entrada massiva e crescente de
trabalhadores manuais por bem mais de um século depois do Manifesto.
Evidentemente já não é assim no capitalismo moderno de produção de alta
tecnologia, que é intensivo em capital, não em mão de obra – desenvolvimento que
não foi considerado no Manifesto, embora, em seus estudos econômicos da
maturidade o próprio Marx tenha antevisto um desenvolvimento possível, de uma
economia que exigisse cada vez menos trabalho, pelo menos numa era
pós-capitalista [xv].
Mesmo
nas velhas economias industriais do capitalismo, a porcentagem de gente
empregada em fábricas de manufatura já não estava crescendo nos anos 1970s,
exceto nos EUA, onde o declínio começara um pouco antes. De fato, com
pouquíssimas exceções – como Grã-Bretanha, Bélgica e EUA – nos anos 1970s os
trabalhadores industriais chegaram a ser a maior parte do total da população
ocupada no mundo industrial e em industrialização de todos os tempos.
Seja
como for, a derrubada do capitalismo que o Manifesto prevê nunca dependeu
de, antes, a maioria da população ter sido proletarizada. A derrubada do
capitalismo que o Manifesto prevê decorre de assumir-se que a situação do
proletariado na economia capitalista ser tal que, uma vez organizado como
movimento de classe necessariamente político, poderia liderar a avançada,
arregimentar a insatisfação de outros grupos e, assim, adquirir poder político
como “o movimento independente da vasta maioria, para buscar o interesse da
vasta maioria”. Assim o proletariado “se levantará para ser a classe liderante
da nação, constituído, ele mesmo, como a nação” [xvi].
Dado
que o capitalismo ainda não foi derrubado, é fácil dar por fracassada a
previsão. Contudo – por altamente improvável que fosse, em 1848 – a política de
muitos estados capitalistas europeus seria transformada pelo crescimento de
movimentos políticos organizados baseados, eles mesmos, na classe trabalhadora
com consciência política – que praticamente não existia, naquele momento, fora
da Grã-Bretanha. Os partidos socialistas e trabalhistas emergiram em várias
partes do mundo ‘desenvolvido’ nos anos 1880s, convertendo-se em partidos de
massa em estados em que se criara a franquia democrática que eles mesmos muito
lutaram para criar.
Durante
e depois da 1ª Guerra Mundial, quando um ramo dos “partidos proletários” seguiam
a via revolucionária dos bolcheviques, outro ramo passou a operar como pilar de
sustentação do capitalismo democratizado. O ramo bolchevique já não é muito
significativo na Europa, ou os partidos desse tipo foram assimilados à
social-democracia. A social-democracia, como entendida nos dias de Bebel ou
mesmo de Clement Attlee, luta numa ação de retaguarda. Mas os partidos
social-democratas da 2ª Internacional, alguns deles ainda com os nomes
originais, ainda são partidos potencialmente de governo em vários países
europeus. Embora esses governos sejam menos comuns no início do século 21 do que
foram no final do século 20, esses partidos mostraram raro currículo de
continuidade como agentes políticos consideráveis, por mais de um século.
Em resumo: o que está errado não é
a previsão do Manifesto de que movimentos políticos baseados nos
trabalhadores teriam papel central (alguns deles, ainda com “a classe”
registrada na denominação, como os partidos trabalhistas e de trabalhadores que
há na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega e Austrália [5]).
Isso, eles tiveram. Mas a frase está errada: “De todas as classes que enfrentam
hoje face a face a burguesia, só o proletariado é classe realmente
revolucionária”, cujo inevitável destino, implícito na natureza e no
desenvolvimento do capitalismo é derrubar a burguesia (“Sua queda e a vitória do
proletariado são igualmente inevitáveis”).
Já
nos notoriamente “famintos [anos] 40s”, o mecanismo que deveria levar a esse
desenlace – a inevitável pauperização [xvii] dos trabalhadores – não era
plenamente convincente, a não ser que se assumisse, o que já então era
implausível, que o capitalismo enfrentasse naquele momento sua crise final e
estivesse a ponto de ser imediatamente derrubado. Era um mecanismo de duas mãos.
Além
do efeito de pauperização do movimento dos trabalhadores, viu-se que a burguesia
é “incapaz de governar, porque não consegue garantir uma existência ao escravo
dentro da escravidão, porque não se pode deixar afundar em estado tal em que a
burguesia tem de alimentar o escravo, em vez de ser alimentada por ele”. Ao
contrário de gerar o lucro que serve como combustível ao capitalismo, o trabalho
drenava o lucro para longe do capitalismo.
Mas
– dado o enorme potencial econômico do capitalismo, tão dramaticamente exposto
no próprio Manifesto – por que seria inevitável que o capitalismo não
garantisse sobrevivência, miserável, que fosse, para a maior parte de sua classe
trabalhadora ou, então... por que não poderia manter um sistema de bem-estar
social?
A
“pauperização”m [em senso estrito. Ver nota xvii] desenvolve-se mais rapidamente
que a população e a riqueza? [xviii] O capitalismo tivera longa vida antes. Mas,
depois de 1848, foi-se tornando óbvio, muito rapidamente, que, depois, não
sobreviveria com a mesma facilidade.
A
visão do Manifesto, do desenvolvimento histórico da “sociedade burguesa”,
incluindo a classe trabalhadora que ela gerou, não levou necessariamente à
derrubada do capitalismo pelo proletariado. Assim, se se abriu caminho para o
desenvolvimento do comunismo, porque visão e conclusão não derivam da mesma
análise.
O
objetivo do comunismo, adotado antes de Marx ter-se tornado “marxista”, é
derivado não da análise da natureza e desenvolvimento do capitalismo, mas de um
argumento filosófico – na verdade, um argumento escatológico – sobre a natureza
e o destino humano. A ideia, fundamental em Marx a partir dali, de que o
proletariado era a classe que não se poderia libertar sem, no mesmo passo,
libertar a sociedade como um todo, aparece pela primeira vez como “dedução
filosófica, mais que como produto da observação” [xix]. Como George Lichtheim escreveu:
“o proletariado aparece pela primeira vez nos escritos de Marx como a força
social necessária para realizar os objetivos da filosofia alemã” como Marx a viu
em 1843-44 [xx].
A
“possibilidade positiva da emancipação alemã”, escreveu Marx na Introdução à
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel [6],
está:
...na
formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade
civil que não seja uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a
dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal
porque os seus sofrimentos são universais, e que não exige uma reparação
particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em
geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano;
de uma esfera que não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha
totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera
que não se pode emancipar a si mesma nem emancipar-se de todas as outras esferas
da sociedade sem as emancipar todas – o que é, em suma, a perda total do homem
–, portanto, só pode redimir-se a si mesma mediante uma redenção total do homem.
A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado
[xxi]. [7]
Nesse tempo, Marx sabia pouco
sobre o proletariado, além de que “está vindo a ser na Alemanha só como um
resultado do crescente desenvolvimento industrial”, e esse era precisamente seu
potencial como força libertadora, uma vez que, diferente das massas pobres da
sociedade tradicional, estava nascendo de “uma radical dissolução da
sociedade”
[8]
e, portanto, pela própria existência, “proclama[va] a dissolução da ordem do
mundo então existente”. Menos ainda sabia sobre movimentos trabalhistas, embora
soubesse muito sobre a história da Revolução Francesa.
Nos
anos 1840s, a conclusão de que a sociedade estava às vésperas de revolução não
era implausível. Nem era implausível a previsão de que a classe operária, embora
imatura, a lideraria. Afinal, semanas depois de publicado o Manifesto, um
movimento dos operários franceses derrubou a monarquia francesa e deu sinal para
revolução à metade da Europa. Mesmo assim, a tendência de o desenvolvimento
capitalista gerar proletariado essencialmente revolucionário continua sem poder
ser deduzida da análise da natureza do desenvolvimento capitalista. Foi uma
possível consequência de seu desenvolvimento, mas não há como demonstrar que
seria a única consequência. Tampouco se pode demonstrar que uma derrubada
bem-sucedida do capitalismo pelo proletariado necessariamente abre caminho para
o desenvolvimento comunista. (O Manifesto só diz que então se iniciaria um
processo muito gradual de mudança). [xxv]
A
visão de Marx, de um proletariado cuja própria essência o faria destinado a
emancipar toda a humanidade e a por fim à sociedade de classes por derrubar o
capitalismo representa uma esperança lida em sua análise do capitalismo, mas não
é conclusão que aquela análise imponha necessariamente.
Mas a análise que o Manifesto faz do capitalismo poderia sem dúvida levar a – especialmente se se inclui a análise marxiana da concentração econômica, a qual era quase invisível em 1848 – uma conclusão mais geral e menos específica sobre as forças autodestrutivas que se concentram dentro do desenvolvimento capitalista. E que bem pode ter levado a um ponto – e, em 2012, não são só os marxistas a aceitarem isso – no qual:
Mas a análise que o Manifesto faz do capitalismo poderia sem dúvida levar a – especialmente se se inclui a análise marxiana da concentração econômica, a qual era quase invisível em 1848 – uma conclusão mais geral e menos específica sobre as forças autodestrutivas que se concentram dentro do desenvolvimento capitalista. E que bem pode ter levado a um ponto – e, em 2012, não são só os marxistas a aceitarem isso – no qual:
A
moderna sociedade burguesa com suas relações de produção, de troca e de
propriedade, uma sociedade que concentrou meios tão gigantescos de produção e de
troca, é como o feiticeiro que já não consegue controlar os poderes do próprio
mundo, poderes que o próprio feiticeiro convocou (...) As condições do arco da
sociedade burguesa são estreitas demais para abarcar a riqueza criada por
eles.
É
perfeitamente racional e razoável concluir que as “contradições” inerentes a um
sistema de mercado baseado em “nenhum nexo entre homem e homem que não seja o
egoísmo e o autointeresse mais nus; que só vise ao “pagamento cash”; que
um sistema de exploração e de “acumulação infinita” nunca será bem-sucedido; que
em algum ponto de uma série de transformações e reestruturação, o
desenvolvimento desse sistema que é essencialmente autodesestabilizatório levará
a um estado de coisas que já ninguém poderá descrever como “capitalismo”.
Ou – em palavras que Marx
escreveria adiante – quando “a centralização dos meios de produção e a
socialização do trabalho afinal atingirem um ponto no qual se tornem
incompatíveis com o tegumento [9]
capitalista”
e aquele “tegumento rompe-se para sempre”. [xxvi] Não importa o nome que se dê ao
subsequente estado de coisas. Mas – como os efeitos da explosão do mundo
econômico sobre o ambiente-mundo o demonstram – esse estado subsequente de
coisas terá necessariamente de sinalizar diferença profunda que o separe da
apropriação privada, na direção do gerenciamento social numa escala global.
É
extremamente improvável que essa “sociedade pós-capitalista’ corresponda aos
modelos tradicionais de socialismo; menos provável ainda que se assemelhe aos
socialismos “realmente existentes” da era soviética. Que formas terá e em que
medida incorporará os valores humanistas do comunismo de Marx e Engels,
dependerá da ação política mediante a qual se promova a mudança. Porque isso,
como diz o Manifesto, é central para a modelagem da mudança
histórica.
V
Na
visão marxiana, não importa como se descreva esse momento histórico no qual “o
tegumento rompe-se para sempre”, a política sempre será, aí, elemento essencial.
O
Manifesto começou por ser lido, primariamente, como documento da
inevitabilidade histórica e, sim, sua força derivou em boa parte da confiança
que inspira ao leitor, de que o capitalismo está inevitavelmente destinado a ser
enterrado pelos seus próprios coveiros e que hoje – não antes, em qualquer ponto
prévio da história – estão presentes as condições para a emancipação. Contudo,
apesar das muito disseminadas “conclusões” na direção oposta – e dado que crê
que as mudança históricas avançam mediante a ação humana, dos homens fazendo a
própria história, o Manifesto não é documento determinista. As covas têm
de ser cavadas por, ou mediante, ação humana.
Mas,
sim, é possível fazer leitura determinista do argumento. Sugeriu-se que Engels
tenderia mais naturalmente ao determinismo, que Marx, com consequências
importantes para o desenvolvimento da teoria marxista e do movimento trabalhista
marxista depois da morte de Marx. Contudo, apesar de rascunhos anteriores de
Engels terem sido citados como prova [xxvii], nada disso pode ser lido
diretamente do próprio Manifesto. Quando deixa o campo da análise
histórica e entra no presente, é documento que fala de escolhas, de
possibilidades políticas, não de probabilidades nem, e muito menos, de certezas.
Entre o “agora” e o tempo futuro imprevisível, quando, “no curso do
desenvolvimento” haja “uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada é
a condição para o livre desenvolvimento de todos”, aí está o campo da ação
política.
No
núcleo duro do Manifesto está a mudança histórica mediante a práxis
social, mediante ação coletiva. O Manifesto vê o desenvolvimento do
proletariado como a “organização dos proletários numa classe e,
consequentemente, num partido político”. A “conquista do poder político pelo
proletariado” (conquistar a democracia) é “o primeiro passo na revolução dos
trabalhadores” e o futuro da sociedade depende de outras ações políticas
subsequentes do novo regime (como “o proletariado usará sua supremacia
política”).
O
compromisso com a política é, historicamente, o que distinguiu (a) o socialismo marxiano, (b) os anarquistas e (c) os sucessores desses socialistas
que rejeitavam toda ação política e rejeição que o Manifesto especificamente
condena. Mesmo antes de Lênin, a teoria marxiana já não era só coisa de “o que a
história mostra voltará a acontecer”, mas, também, de “o que tem de ser feito”.
A
experiência soviética no século 20 ensinou-nos que pode ser melhor não fazer “o
que tem de ser feito” sob condições históricas que, virtualmente, localizam o
sucesso além de qualquer alcance possível. A mesma lição se pode aprender
também, se se consideram as implicações do Manifesto Comunista.
Nesse caso, o Manifesto – e
essa não é a menor de suas notáveis qualidades – é documento que anteviu o
fracasso. Esperou, desejante, que o resultado do desenvolvimento capitalista
viesse a ser “Uma reconstituição revolucionária da sociedade em termos amplos”,
mas, como já vimos, não excluiu a alternativa: “a ruína comum”. Anos depois,
outro marxiano [de fato, foi uma marxiana: Rosa Luxemburgo, em 1915 [10]]
reformulou a mesma ideia, em termos de escolher entre socialismo e barbárie.
Qual das vias prevalecerá é questão que se tem de deixar que o século 21
responda.
______________________________________________
Notas
de rodapé (do autor)
[i]
Só dois itens desse material foi encontrado – um esquema para a Seção III e uma
página de rascunho. Karl Marx–Frederick Engels, Collected Works, vol. 6
(London 1976), pp. 576–7.
[ii]
Durante a vida dos fundadores, foram: (1) Prefácio à (segunda) edição alemã,
1872; (2) Prefácio à (segunda) edição russa, 1882 – a primeira tradução ao
russo, de Bakunin, aparecera em 1869, compreensivelmente sem aprovação de Marx e
Engels; (3) Prefácio à (terceira) edição alemã, 1883; (4) Prefácio à edição
francesa, 1888; (5) Prefácio à (quarta) edição alemã, 1890; (6) Prefácio à
edição polonesa, 1892; e (7) Prefácio “Aos leitores italianos”, 1893.
[iii]
Paolo Favilli, Storia del marxismo italiano. Dalle origini alla grande
guerra (Milan 1996), pp. 252-4.
[iv]
Confio aqui nos números do muito valioso Bert Andréas, Le Manifeste
Communiste de Marx et Engels. Histoire et Bibliographie 1848-1918 (Milan
1963).
[v]
Dados dos relatórios anuais do SPD Parteitage. Mas não há dados numéricos
relativos a publicações teóricas para 1899 e 1900.
[vi] Robert R. LaMonte, “The New
Intellectuals”, New Review II, 1914; cited in Paul Buhle, Marxism
in the USA: From 1870 to the Present Day (London 1987), p. 56.
[vii] Hal Draper, The Annotated Communist Manifesto (Center for
Socialist History, Berkeley, CA 1984), p. 64.
[viii]
O original alemão começa essa sessão discutindo “das Verhältniss der
Kommunisten zu den bereits konstituierten Arbeiterparteien ... also den
Chartisten”, etc. A tradução inglesa oficial de 1887, revista por Engels,
atenua o contraste. Formulação mais confiável compararia os “partidos” de
trabalhadores já constituídos como os Cartistas, etc., e os que ainda não se
constituíram.
[ix]
“Os Comunistas não formam partido à parte oposto aos partidos de trabalhadores
(...) Não trazem princípios sectários seus, pelos quais modelar e moldar o
movimento proletário” (Seção II).
[x]
A mais conhecida, destacada por Lênin, foi a observação, no Prefácio de 1872, de
que a Comuna de Paris mostrara “que a classe trabalhadora não pode simplesmente
tomar de assalto a maquinaria já pronta do estado e fazê-la operar para seus
próprios objetivos”. Depois da morte de Marx, Engels acrescentou a nota de
rodapé que modifica a primeira sentença da Seção I, para excluir as sociedades
pré-históricas do campo universal da luta de classes. Porém, nem Marx nem Engels
deram-se o trabalho de comentar ou de modificar as passagens econômicas do
documento. Pode-se duvidar de que Marx e Engels realmente considerassem uma
total “Umarbeitung oder Ergänzung” [Revisão ou alteração] do
Manifesto (Prefácio à edição alemã de 1883), mas não de que a morte de
Marx tornou a reescrita impossível.
[xi]
Comparem-se (a) a passagem na Seção
II do Manifesto (“Será preciso intuição profunda para compreender que as
ideias, visões e concepções dos homens, em uma palavra, a consciência humana,
muda a cada mudança nas condições de sua existência material, nas suas relações
sociais e em sua vida social?”) e (b)
a passagem correspondente no Prefácio à Crítica da Economia Política
(“Não é a consciência do homem que determina sua existência, mas, ao
contrário, é a existência social que determina a consciência”.).
[xii]
Embora seja a versão inglesa aprovada por Engels, não é tradução estritamente
correta do original: “Mögen die herrschenden Klassen vor einer kom-
munistischen Revolution zittern. Die Proletarier haben nichts in ihr [“nela”,
i.e. “na Revolução”; eu sublinhei] zu verlieren als ihre Ketten”.
[xiii]
Para uma análise estilística, ver S.S. Prawer, Karl Marx and World
Literature (Verso, New York 2011), pp. 148-9. Nenhuma das traduções do
Manifesto que conheço tem a força literária do texto original, em alemão.
[xiv] In “Die Lage Englands. Das
18. Jahrhundert” (Marx–Engels Werke I, pp. 566–8).
[xv]
Ver, por exemplo, a discussão do “capital fixe e o desenvolvimento dos
recursos produtivos da sociedade”, nos manuscritos de 1857-58. Collected
Works, vol. 29 (1987), pp. 80–99.
[xvi]
A frase em alemão “sich zur nationalen Klasse erheben” tem conotações
hegelianas que aparecem modificadas na tradução ao inglês autorizada por Engels
e modificada, presumivelmente, porque supôs que não seria compreendida pelos
leitores, nos anos 1880s.
[xvii] Pauperismo não deve ser lido como sinônimo de “pobreza”. As palavras em alemão, tomadas do inglês, são “Pauper” (‘pessoa pobre, destituída (...) que vive de caridade ou de algum amparo público [Chambers’ Twentieth Century Dictionary]) e “Pauperismus” (pauperismo: estado de quem é ou está pobre) [Idem].
[xvii] Pauperismo não deve ser lido como sinônimo de “pobreza”. As palavras em alemão, tomadas do inglês, são “Pauper” (‘pessoa pobre, destituída (...) que vive de caridade ou de algum amparo público [Chambers’ Twentieth Century Dictionary]) e “Pauperismus” (pauperismo: estado de quem é ou está pobre) [Idem].
[xviii]
Paradoxalmente, argumento vagamente semelhante ao argumento marxiano de 1848 tem
sido amplamente usado por governos capitalistas e pregadores do livre-mercado,
para provar que economias de estados cujo PIB continua a dobrar a cada uma ou
duas décadas irão à bancarrota se não abolirem os sistemas de transferência de
renda (estados do bem-estar, etc.), condenados ficar cada vez mais pobres, se os
que ganham tiverem de manter os incapazes de ganhar.
[xix] Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism, vol. 1, The
Founders (Oxford 1978), p. 130.
[xx] George Lichtheim, Marxism (London 1964), p. 45.
[xxi] Collected Works, vol. 3 (1975), pp. 186-7. Nessa
passagem, tenho em geral preferido a tradução de Lichtheim, emMarxism. O
termo alemão “Stand”, foi traduzido por “Classe”, o que hoje gera distorções.
[xxii] Publicado como Outlines of a Critique of Political Economy em
1844 (Collected Works, vol. 3, pp. 418-43).
[xxiii] “On the History of the Communist League” (Collected Works,
vol. 26, 1990), p. 318.
[xxiv] “Outlines of a Critique” (Collected Works, vol. 3, pp. 433
ff). Parece ter sido derivado de autores britânicos radicais, principalmente
John Wade, History of the Middle and Working Classes (London 1835), ao
qual Engels refere-se nessa conexão.
[xxv]
Aparece ainda mais claramente nas formulações de Engels, em dois escritos que
são, de fato, dois rascunhos preliminares do Manifesto, “Draft of a Communist Confession of
Faith” (Collected Works, vol. 6, p. 102) e “Principles of Communism” (ibid., p.
350).
[xxvi] De “Historical Tendency of
Capitalist Accumulation”, in Capital, vol. I (Collected Works,
vol. 35, 1996), p. 750.
[xxvii]
Lichtheim, Marxism, pp. 58-60.
Notas
dos tradutores
*Em português, pode ser lido em: “Manifesto
do Partido Comunista” ou
em inglês, ENGELS, Frederick e MARX, Karl, “The
Communist Manifesto: A Modern Edition”, Verso Books, New York, 2012
(abril), Introdução de Eric Hobsbawm.
[1]Em português do Brasil , “idiotia”
(Dicionário Houaiss) designa uma doença genética . Tradução possível seria, nesse
caso, do mesmo vício que Hobsbawm comenta, “idiotice”
(Dicionário Houaiss).
[2]Em todos os trechos citados,
acompanha-se aqui a edição, em português de Manifesto
do Partido Comunista, Lisboa: Editorial Avante, 1997, trad. de José
Barata Moura.
[3]
Ver nota [xxi], do autor
.
[4]Ver também, interessante: Terry
Eagleton, 23/3/2011, The Times Literary Supplement , redecastorphoto, em português: A era dos manifestos: “A adolescência como
ideologia”
[5]
No Brasil também há Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em
1980.
[6]Em português ver em: “Para
a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”.
[7]
Loc. cit. pág. 10.
[8]
“O proletariado está ainda só a começar a formar-se, como resultado do movimento
industrial; pois o que constitui o proletariado não é a pobreza naturalmente
existente, mas a pobreza artificialmente produzida, não é a massa do povo
mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a massa que provém da
desintegração aguda da sociedade e, acima de tudo, da desintegração da classe
média” (Loc. cit., pág. 20).
[9]
Essa é a tradução de capitalist intertegument que se lê em HOBSBAWM, Eric ,
Sobre História: ensaios, São Paulo: Companhia das Letras [1998], 2006,
trad. Cyd Knipel Moreira, p. 178.
[10]Sobre isso ver em: ROSA
LUXEMBURGO: UM COMUNISMO PARA O SÉCULO XXI
___________________________
Leia mais
sobre Eric Hobsbawn (em português):
16/6/2011, redecastorphoto, em: “Marxismo
hoje: Beppe Grilo entrevista Hobsbawm, 94”
23/12/2011, redecastorphoto, entrevista a Andrew Whitehead, em: Eric
Hobsbawm sobre 2011: “Fez-me lembrar 1848...”
10/3/2012, redecastorphoto, The Spiked Review of Books, Tim Black, em: “Lord
Byron, no Parlamento, em defesa dos luditas”
22/4/2012, redecastorphoto, Eric Hobsbawn, London Review of Books, em: “Depois da
Guerra Fria - Eric Hobsbawm sobre Tony Judt”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.