segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Radiografia-desmonte do Nobel de Mo Yan


13/10/2012, MK Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Anna Akhmatova

O que estamos fazendo - nem nós mesmos sabemos,
mas a cada momento, mais isso nos assusta...
Como quem saiu da prisão,
sabemos algo um do outro,
algo terrível. Estamos num círculo infernal.
Mas talvez isto não sejamos nós”.
“Através dos Espelhos”, in Anna Akhmatova - Poesia: 1912-1964, Porto Alegre, Ed. L&PM, 1991 - trad. port. do Brasil, de Lauro Machado Coelho*




O Prêmio Nobel de Literatura ter sido dado ao romancista chinês Mo Yan provocará mais de um olhar de incômodo ou de arrogância [1]. Não porque Mo não mereça a honraria, mas porque o prêmio tem história sempre muito controvertida. 

Em 2012, as controvérsias distribuem-se em três categorias – se o premiado realmente merece tão excepcional honra; por que alguns outros autores foram mais uma vez deixados de lado; e, terceira categoria, claro, a nacionalidade do premiado.


A primeira categoria induz a crer que nada se sabe nem se pode saber (por algum tempo) – até que a comissão do Nobel desencave outro nome excitante.

A segunda categoria de controvérsias é causa de incômodo – Anna Akhmatova, Yevgeny Yevtushenkov e Andrey Voznesensky foram deixados de lado, e Joseph Brodsky “ganhou”. (Vladimir Mayakovsky suicidou-se aos 37 anos, [2] antes de que o Nobel sequer soubesse de sua existência).

A terceira categoria de controvérsias obriga a considerar uma verdadeira pequena galeria de souvenirs excêntricos do tempo da Guerra Fria.

E onde entra Mo?

Sinceramente, só li sobre ele e não o conheço diretamente; parece ser romancista de vanguarda como Gao Xingjian (2000) cujo A Montanha da Alma [São Paulo: Alfaguara/Objetiva] li duas vezes (e talvez volte a ler), embora esteja longe do romancista emigrado que foi Gao (rejeitado pelo establishment chinês, optou pelo exílio). Todos os comentários concordam [3] em que Mo é autor valiosíssimo. Gao é autor de experimentos com a escritura de diferentes modalidades narrativas, e Mo, ao que parece, buscou reconectar-se à cultura e as tradições chinesas.

Fã apaixonado do realismo mágico na ficção, mal posso esperar para ler Mo.

Mas... É a nacionalidade, estúpido!

O que mais se discute, no caso de Mo, é ele ser CHINÊS e, ainda mais inacreditável e surpreendente, que Mo integra “a sociedade chinesa mainstream [4], como escreve ardilosamente o Global Times chinês. O que nos leva à questão seguinte: haverá aí alguma mensagem política?

Ah, sim! A política jamais se afasta do Prêmio Nobel – como quando premiaram Pasternak (ainda em vida de [Anna] Akhmatova [5]).

Em tom de incontrolável euforia, o Global Times chinês compara 2012 e 1930, quando Sinclair Lewis recebeu o Nobel — como se o Nobel estivesse reconhecendo o aparecimento da China no cenário global hoje; assim como teria reconhecido o aparecimento dos EUA no cenário global, como grande potência, há 82 anos.

Mikhail Sholokov 
Em minha opinião, a coisa aí está mais para Mikhail Sholokov [6] (1965), tudo outra vez. Aqueles tempos foram tão tumultuosos quanto os tempos chineses, hoje.

O “Degelo de Khruchev” [7] arquitetou e promoveu transformação irreversível na economia, na política e na sociedade soviéticas. Autores libertos, desmesurados, nas artes, literatura, música; atletas soviéticos conquistando medalhas olímpicas às pencas; a muito simbólica retirada da múmia de Josef Stalin de onde estivera até então, no Mausoléu de Lênin; a URSS abrindo-se para a “comunidade internacional”; teorias da coexistência pacífica; consumismo; novas cozinhas familiares privadas, não mais coletivas. (Evidentemente, todos esses eventos enfraqueceram muito, dali em diante, o Partido Comunista Soviético).

E então sobreveio a demissão de Khruchev, em 1964. Um ano depois, havia ainda grandes perguntas no ar, sem respostas, sobre para que lado sopraria o vento, que estrada a União Soviética tomaria. O julgamento Sinyavsky-Daniel [8] com seus traços de ideologia autoritária que lutava para se reimplantar, aconteceu em 1965. Nesse momento, precisamente, Sholokov foi escolhido para receber o Nobel.

Seu romance mais conhecido (Tikhy Don [O Don Corre Tranquilo]) é retrato pungente da luta heroica e trágica dos cossacos, pela independência da região do Don, contra os bolcheviques.

Sholokov era melhor personagem que Mo. Era membro do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética; membro do Soviete Supremo; membro da Academia Soviética; Herói do Trabalhismo Socialista – e laureado com o Prêmio Stálin. Mas, examinado mais de perto, também era figura enigmática – arquetípico e rebelde.

Sholokov escreveu cartas a Stálin reclamando das terríveis consequências do programa de coletivização no final dos anos 1920s e início dos 1930s. E acompanhou Khruchev em sua histórica visita aos EUA em 1959. Foi símbolo do “Degelo de Khruchev”. E denunciou Alexander Solzhenitsyn.



Notas de rodapé

*Epígrafe acrescentada pelos tradutores [NT].

[1] 12/10/2012, New York Times, em: After Fury Over 2010 Peace Prize, China Embraces Nobel Selection

[2] Prominent Russians: Vladimir Mayakovsky (July 19, 1893 – April 14, 1930)
[3] 12/10/2012, The Guardian, UK, Howard Goldblatt em: My hero: Mo Yan.
[4] 12/10/2012, Global Times, em: Nobel Prize a win for mainstream values
[5] Collection of Poems by Anna Akhmatova:  ((Born 1889, Died 1966)
[6] Leia mais sobre Mikhail Sholokhov.
[7] Orig. Khrushchev Thaw. Período, de meados dos anos 1950s ao início dos 1960s, quando a repressão e a censura foram reduzidas na URSS e milhões de prisioneiros foram libertados dos campos de trabalhos forçados, com a política de “des-stalinização” de Nikita Khrushchev. [NT].
[8] Orig. Sinyavsky-Daniel Trial. “Em setembro de 1965, autoridades soviéticas prenderam um conhecido crítico literário, Andrei Sinyavsky, e um tradutor relativamente obscuro, Yuly Daniel, e os acusaram de denegrir o sistema soviético em trabalhos publicados no exterior, sob pseudônimo. Os trabalhos em questão eram satíricos, mas de modo algum antissoviéticos; no ensaio On Socialist Realism [Sobre o realismo socialista], por exemplo Sinyavsky (ou "Abram Tertz") advogava nada mais radical que um retorno ao estilo aventuroso de Vladimir Mayakovsky. Apesar disso, depois de uma campanha furiosa de denúncias pela imprensa em janeiro de 1966, os dois foram condenados, em tribunal espetaculoso em fevereiro. Sinyavsky foi condenado a sete anos, e Daniel a cinco, em regime fechado, num campo de trabalhos forçados.
Tudo sugere que elementos conservadores do regime Brezhnev-Kosygin, determinados a por fim aos “experimentos” artísticos da era Khrushchev, criaram o “caso” como sinal para alertar os artistas de que havia uma linha vermelha que não poderia ser ultrapassada; e para calar os intelectuais. Mas foi sinal ambíguo, em momento em que os conservadores absolutamente não estavam firmemente plantados no poder – e o “sinal” não produziu os efeitos esperados. Sinyavsky e Daniel recusaram-se a representar os papéis a eles atribuídos e defenderam-se vigorosamente no tribunal. Houve protestos nas ruas de Moscou contra as prisões em dezembro de 1965, seguidos de uma campanha pública, que fez crescer o número de protestos e samizdat [prática pela qual indivíduos e grupos de pessoas copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais que haviam sido proibidos pelo governo na União Soviética], que levaram à edição de Chronicle of Current Events [Crônica dos Eventos Atuais] em abril de 1968.
O julgamento Sinyavsky-Daniel tem sido interpretado como a faísca que galvanizou o movimento dissidente, e acabou por induzir muitos intelectuais a deixar de trabalhar dentro do sistema” [De WALLACE, JONATHAN D.. “Sinyavsky-Daniel Trial". Encyclopedia of Russian History. 2004. [NT].

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MK Bhadrakumarfoi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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