11/10/2012, M K
Bhadrakumar*, Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Um
negócio multibilionário de armas com o Iraque; uma reunião de cúpula com a
Turquia; um exercício de remendar cercas com a Arábia Saudita, um debut
nos contatos com a esfíngica Fraternidade Muçulmana egípcia – tudo isso só num
mês no turbulento Oriente Médio. E tudo isso acontecendo justamente quando o
“retorno” dos EUA à região depois da agitação da eleição de novembro ainda é
sonho distante. Em versão curta, a Rússia, de repente, apareceu em todo o Oriente
Médio.
Nouri al-Maliki |
Moscou
anunciou ontem, 3ª-feira, que o Primeiro-Ministro do Iraque Nouri al-Maliki
estava em visita à capital e que os dois países assinaram contratos de “mais de”
US$4,2 bilhões em armas, aí incluída a compra, pelo Iraque, de 30 helicópteros
de ataque Mi-28 e 42 sistemas de mísseis terra-ar Pantsir-S1, úteis também na
defesa contra ataque de jatos.
A
declaração conjunta russo-iraquiana divulgada em Moscou revelou que o negócio
estava em discussão há pelo menos cinco meses e que as discussões prosseguiam,
agora para a compra, pelo Iraque, de jatos MiG-29, veículos pesadamente
blindados e outros tipos de armamentos. Um anúncio saído do Kremlin dizia que
Maliki deve reunir-se com o presidente Vladimir Putin na 4ª-feira (hoje) e que a
agenda de discussões é dedicada à cooperação entre Rússia e Iraque no campo da
energia.
Os
políticos norte-americanos entrarão em frenesi. Há notícias de que o telefone
não parou de tocar no gabinete de Maliki em Bagdá, a partir do instante em que
começaram a circular notícias de que viajara a Moscou e que alguma coisa
“grande” poderia estar em andamento. Não paravam de chegar consultas do
Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional sobre quem armara
aquela visita, nesse ponto dos acontecimentos.
A
questão, de fato, é que Maliki continua a ser perfeito enigma para Washington.
Sem dúvidas é amigo dos EUA, mas bem pode ser mais amigo do Irã. Agora, pelo que
se vê, também se sente atraído pela Rússia – como Saddam Hussein.
Washington
e Ancara muito o perturbaram, trataram Maliki como galinha morta e chegaram a
dar por encerrado seu futuro político, quando se aproximaram do norte do
Curdistão, à caça de lucrativos negócios de petróleo, ignorando os protestos de
Maliki, de que o Iraque é país soberano, a capital é Bagdá e há uma Constituição
ali que diz que países estrangeiros não têm autorização para negociações diretas
com “partes” do país, ignorando o governo central.
Vendas
militares, sim. O “Big Oil”, não
Bashar al-Assad |
Não
só ignoraram os protestos de Maliki como também o puniram por opor-se ao golpe
(“mudança de regime”) na Síria e por apoiar fortemente o presidente Bashar
al-Assad. Nos últimos tempos começaram a agulhar-lhe o flanco, por ajudar o Irã
a enviar suprimentos ao combalido regime sírio. Cometeram até a afronta máxima
de dar asilo a um líder sunita iraquiano, já condenado por tribunais iraquianos
e, portanto, fugitivo.
Atualmente,
EUA e Turquia dedicam-se a unificar os vários grupos sunitas no Iraque,
movimento sórdido, que pode levar à balcanização do Iraque.
O
Curdistão já é região independente, de facto, por efeito da interferência
de EUA e Turquia. O plano de jogo é continuar a minar o Iraque, patrocinando a
criação de uma entidade sunita no Iraque central, como o Curdistão no norte, o
que deixaria os xiitas iraquianos confinados no sul paupérrimo.
A
visita à Rússia mostra que Maliki ainda não se deu por vencido e que não mais
admitirá esse tipo de afronta à soberania do Iraque. O que é praticamente certo
é que proporá a Putin que as empresas de petróleo russas voltem ao Iraque,
trazendo a combate todos seus investimentos e sua tecnologia, retomando assim os
fios no ponto em que foram deixados quando os EUA invadiram o Iraque em 2003.
Deve-se
esperar que Maliki chute para fora do Iraque as petroleiras do “Big Oil”
americano e as petroleiras turcas – o que terá implicações profundas no mercado
mundial de petróleo, porque as fabulosas reservas iraquianas são comparáveis às
sauditas.
Bem
evidentemente, Maliki decidiu afirmar a soberania do Iraque.
Recentemente,
cancelou acordo com a Turquia, remanescente dos tempos de Saddam, que permitira
presença de militares turcos no norte do Iraque para monitorar as atividades dos
separatistas do PKK. Mas Ancara rugiu e ignorou Maliki. O negócio, agora, com os
russos, permitirá que Maliki reconstrua as forças armadas do Iraque e forçará os
turcos a pensar duas vezes antes de violarem o espaço aéreo iraquiano ou supor
que os militares turcos continuarão indefinidamente no norte do Iraque, sem
serem perturbados.
Significaria
que o Iraque esteja optando pela via de desafio estratégico aos EUA? Não. Os EUA
ainda são o principal fornecedor de armas para o Iraque. Empresas americanas já
venderam e devem entregar ao Iraque 30 jatos F-16. Nada mais distante do projeto
de Maliki do que desafiar os EUA – pelo menos por hora.
O
movimento de Maliki deve ser interpretado mais como “declaração” bem assertiva
de que o Iraque é país independente. Pode-se dizer que não é movimento muito
diferente do que anda fazendo o presidente Mohammed Mursi do Egito.
Mohamed Mursi |
Posto
em termos simples, os EUA terão de aprender a conviver com movimentos desse
tipo: com o movimento do Iraque para reaquecer suas relações militares com os
russos e com o movimento de Mursi de dedicar à China a sua primeira visita como
chefe de Estado. Quase se pode prever que o próximo movimento de Mursi será
também ressuscitar os laços entre Egito e Rússia. O ministro das Relações
Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov é esperado no Cairo no início de novembro,
para o primeiro contato de alto nível com o governo de Mursi.
Verdade
é que muito dependerá da compostura e da elegância que os EUA sejam capazes de
mobilizar, no processo de adaptar-se às novas realidades no Oriente Médio. No pé
em que estão as coisas, os EUA conseguiram vender $6 bilhões de armas ao Iraque.
Os negócios, pois, prosperam.
A
primeira reação do Departamento de Estado dos EUA ao contato entre Maliki e os
russos, foi mostrar tranquilidade. A porta-voz Victoria Nuland disse que o
negócio com os russos não implicaria qualquer estresse nos laços
“militares-militares” EUA-Iraque, que são “muito amplos e muito profundos”.
Victoria Nuland |
Revelou
que prosseguem as negociações para “umas 467 vendas militares” para o Iraque, no
valor de mais de $12 bilhões “se tudo avançar”. Nuland disse que “estamos
negociando cerca de $12,3 bilhões em negócios militares com o Iraque. Entendo
que ninguém precisa se preocupar, porque nossas relações são, simplesmente,
fortíssimas”.
Uma
nova química, ainda não testada
Mas
não pode passar sem registro o toque de ansiedade nas palavras de Nuland. A
verdade nua e crua é que “os russos estão chegando” e, dessa vez, vêm
capitalistas e globalistas; também conhecem o mercado iraquiano, e o soldado
iraquiano está habituado às armas russas. Durante a era Saddam, o Iraque era o
maior comprador de armas russas e estima-se que Moscou tenha perdido cerca de $8
bilhões em vendas de armas, depois do golpe (“mudança de regime”) patrocinado
pelos EUA em Bagdá, em 2003.
Mais
do que previsivelmente, a Rússia fará o possível para repor as garras no mercado
iraquiano e recuperar o tempo perdido. Mas negócios que envolvam armas
invariavelmente carregam componente político e estratégico. No curto prazo, o
“não-conhecido não conhecido” é se Maliki escolherá partilhar as capacidades
iraquianas com seus aliados íntimos, iranianos e sírios.
Mahmoud Ahmadinejad |
Significativamente,
delegações síria e iraniana de alto nível também estiveram em visita a Moscou nos
últimos meses. O Presidente do Irã, Mahmoud Ahmedinejad está agendando visita a
Bagdá. De fato, no mesmo momento em que russos e iraquianos assinavam o negócio
de armas em Moscou, o Comandante da Marinha dos Guardas Revolucionários do Irã
chegou ao Iraque, para uma visita – mostrando que há laços ainda fortes entre
Bagdá e Teerã. Que ninguém duvide: Washington assiste ansiosa a essa
movimentação nesse front.
Especialistas
russos escreveram, no passado, sobre a emergência de um novo “bloco” no coração
do Oriente Médio, compreendendo Irã, Iraque, Síria e Líbano, com o qual Moscou
pode esperar ter laços especiais.
Mesmo
assim os sinais que se veem hoje são de que a diplomacia regional de Moscou no
Oriente Médio está mudando de marcha, determinada a construir pontes sobre as
divisões geradas na região pela crise síria.
Sergei Lavrov |
Sim,
claro, a empreitada parece estranha, audaciosa demais. Mas, sim, Putin visitará
a Turquia na próxima semana; Lavrov espera viajar a Riad no início de novembro
para participar da segunda reunião do Diálogo Estratégico entre Rússia e os
estados do Conselho de Cooperação do Golfo (que já foi abruptamente adiado uma
vez pelo regime saudita, como represália contra o claro apoio dos russos ao
regime de Assad na Síria); e Lavrov fará “visita sincronizada” ao Cairo, para
reunir-se com os novos líderes egípcios e com representantes da Liga Árabe.
Ao
divulgar a agenda das missões diplomáticas de Lavrov, o Vice-Ministro russo de
Relações Exteriores, Mikhail Bogdanov acrescentou que “Nós [a Rússia] estamos
interessados no diálogo e em discutir abertamente uma parceria com nossos
colegas árabes do Golfo, os quais, especialmente a Arábia Saudita, o Qatar e
outros, têm papel considerável, não pequeno, nos assuntos sírios. Sempre
favorecemos a discussão dessas questões, inclusive os desacordos, em mesa de
negociações, sobretudo depois que instalamos o mecanismo do Diálogo
Estratégico”.
Mikhail Bogdanov |
Bem
visivelmente os alquimistas russos andam testando fórmulas novas, que possam
ajudar na cicatrização das feridas sírias. Mas, como Bogdanov procurou deixar
claro, essas formulações são ainda remédios de amplo espectro, que devem servir
para estimular o metabolismo basal das relações russas na região, com parceiros
recalcitrantes, muito incomodados com o atual quadro relacionado à Síria. Em
termos ideais, Moscou gostaria de ver a cura surgir no quadro mais amplo de
laços econômicos que beneficiem os dois lados.
Os
laços entre russos e turcos e russos e sauditas, por exemplo, estavam-se
fortalecendo no período de pré-crise síria. Os laços com a Turquia de certo modo
estagnaram; e os laços entre russos e sauditas entraram em período de aguda
turbulência.
Evidentemente,
Moscou trabalha para restaurar o status quo ante.
Interessante
é a avaliação feita pela diplomacia russa, segundo a qual a atual conjuntura
oferece uma janela de oportunidades para oferecer aberturas a Ancara e Riad,
independente da hemorragia que continua a sufocar a Síria.
O
pano de fundo para essa avaliação é significativo. Pela avaliação que faz,
Moscou evidentemente entrevê sinais de renovada possibilidade de que se alcance
alguma solução política para a crise síria, apesar de o céu continuar carregado
de nuvens negras. É avaliação audaciosa, carregada de méritos.
No
pé em que estão as coisas, Turquia e Arábia Saudita enfrentam problemas graves
na Síria. Ninguém supôs que o regime sírio tivesse vontade política e base
social suficientes para resistir tanto; nem turcos nem sauditas esperavam que a
“mudança de regime” se convertesse no que hoje se vê, com desenlace ainda
incerto e consequências cuja extensão ninguém previu, não só para a nação síria
mas para toda a região e, inclusive, para Turquia e Arábia Saudita.
Oriente Médio expandido |
Mais
uma vez, e sem cederem um passo na oposição a qualquer intervenção estrangeira
na Síria, que Moscou e Pequim já expuseram amplamente, continua fora de
cogitação qualquer tipo de mandato a arrancar do Conselho de Segurança. E, sem
autorização da ONU, qualquer intervenção ocidental é cada dia mais improvável,
além do fato de que os EUA não dão qualquer sinal de interesse nessa direção;
quanto aos europeus, suas atitudes serão guiadas pelas prioridades das
respectivas crises econômicas nacionais, as quais, segundo a mais recente
estimativa do Fundo Monetário Internacional, escorregam para recessão
prolongada, sem qualquer perspectiva de recuperação no curto prazo.
Sultanato
e Prêmio Nobel
O
povo turco absolutamente não se deixou convencer que de algum interesse nacional
vital dos turcos, esteja sendo ameaçado na Síria. Além do mais, a economia turca
também está crescendo menos, e alguma recessão profunda na Europa criará grave
tumulto para o destino econômico dos turcos. Até agora, o partido governante de
Erdogan, o AKP tem jogado a carta da prosperidade econômica sem precedentes no
país.
Recep Endorgan |
Cada
vez mais, portanto, todo o proativismo em relação à Síria mostra-se
muito mais como ideia brotada do cérebro de acadêmico convertido em ministro das
Relações Internacionais da Turquia, Ahmet Davitoglu, e do
primeiro-ministro Recep Erdogan, do que como qualquer tipo de iniciativa bem
pensada de política externa. Mas ainda que fosse iniciativa política bem
amadurecida, as prioridades políticas de Erdogan estão às vésperas de mudar
muito, agora que se prepara para candidatar-se à presidência da Turquia, sob uma
nova constituição, em 2014.
Envolvimento
sem fim à vista na Síria pode ameaçar suas ambições eleitorais, e já é visível a
pressão do atual presidente Abdullah Gul, cujos índices de aprovação popular são
visivelmente melhores que os de Erdogan.
Erdogan
quer “mudança de regime” na Síria, e ainda trabalha para isso, mas tem de
acontecer já. Erdogan não pode esperar muito, ou a Síria atropelará sua agenda
eleitoral pessoal. Incomoda-o, portanto, muito, que o presidente Barack Obama
não dê qualquer sinal de urgência na “mudança de regime” na Síria e que os
europeus estejam concentrados nos próprios padecimentos.
Tudo
isso considerado, pois, não surpreende que Putin tenha dado absoluta e urgente
prioridade à visita à Turquia – apesar de Erdogan ter estado na Rússia há apenas
dois meses. Putin tem excelentes relações pessoais com Erdogan. A qualidade
dessas relações foram muito úteis para por as relações russo-turcas no novo
plano qualitativo em que se veem hoje e nos últimos anos.
Vladimir Putin |
Putin
é estadista fortemente focado e decidiu dar nova vida ao tango russo-turco. No
processo, o contrato para construir uma usina nuclear de $25 bilhões na Turquia
pode sair do papel, e a Rússia também pode fechar bons negócios de venda de
armas para a Turquia.
Pelo
cálculo dos russos, a ideologia subjacente de Erdogan, que tenta construir
política externa independente, precisa ser encorajada, não obstante alguns
desvios recentes, como a decisão de acolher em solo turco o sistema de mísseis
de defesa dos EUA.
Putin
investe na possibilidade de que, no contexto de um renascer da velha chama entre
russos e turcos, e tirando vantagem do dilema e das dificuldades de Erdogan na
Síria, seja possível alguma discussão forte e significativa entre Moscou e
Ancara, da qual, por sua vez, talvez seja possível evoluir para encontrar real
solução política para a crise síria.
Estamos
em tempos de
Prêmio Nobel. Se Erdogan for persuadido de que pode ser o
primeiro (e, provavelmente, também o último) sultão de toda a história otomana a
receber um Prêmio Nobel da Paz, Putin terá dado, pessoalmente, valiosa
contribuição para a paz do mundo.
______________________
MK
Bhadrakumar*
foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista
em questões do
Afeganistão e Paquistão e escreve
sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais The
Hindu, Asia Online e Indian
Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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