quarta-feira, 29 de junho de 2011

O desmonte da Líbia

Um banquete de mendigos

Vijay Prashad
27/6/2011, Vijay Prashad, Counterpunch 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Os quartéis-generais da OTAN partilham, com as cavernas da Al-Qaeda, o erro da húbris. O jihadis crêem que os seus mujahideen em farrapos expulsaram a União Soviética do Afeganistão. Nada, na visão de mundo dos jihadis permite que aceitem partilhar a mesma glória com os EUA, os sauditas e os paquistaneses, muito menos com as cupins econômicos que corroeram o coração da base industrial soviética. 

Praticamente do mesmo modo, os estrategistas da OTAN crêem que sua campanha de 78 dias de bombardeio libertou o Kosovo das garras dos soldados de Slobodan Milosevic. Nos relatórios da OTAN arquivados em Bruxelas não se encontra nem uma linha sobre a importância do que fizeram os russos naquela guerra, quando retiraram o apoio que davam a Milosevic e o deixaram “olhando estrelas” – como se lê em sua famosa invocação da Batalha do Kosovo de 1389. 

A verdade é que nem os mujahideen nem os bombardeiros da OTAN são, cada um por si, capazes de vitórias militares com real impacto político. Uma escaramuça aqui, um bombardeio acolá, ok. Mas nenhum golpe decisivo capaz de inverter o rumo de um movimento político.

O secretário demissionário da Defesa dos EUA Robert Gates reclama que os europeus não estão assumindo a responsabilidade que deveriam assumir, na campanha da OTAN. Sarkozy da França replica que Gates está deprimido por causa da aposentadoria. Por isso, “usa palavras amargas”. 

Só quando chegam às vésperas da aposentadoria, ou já aposentados, esses sensíveis guardiães-protetores da ordem hierárquica mundial dizem a verdade. 

Eisenhower alertou os EUA contra o complexo industrial militar, mas só no discurso de despedida em 1961. Robert McNamara e James Wolfensohn, ambos presidentes do Banco Mundial, só questionaram as respectivas empedernidas certezas, depois que as portas do Banco fecharam-se às costas deles. Gates sugere que os EUA já não são capazes de usar o poderio bélico para manter uma hegemonia que se esgarça todos os dias: por isso, dependem cada dia mais dos “parceiros” europeus. As naves europeias fazem água, enquanto o sorvedouro grego cresce. A Europa estrebucha.

As críticas de Gates apareceram no momento em que o Congresso produzia sentença confusa, sobre a Casa Branca: não autorizou a aventura na Líbia; não autorizou maior participação dos EUA na operação da OTAN. Mas, ao mesmo tempo, não cortou os fundos necessários para manter a operação lá. Os aviões-robôs [ing. drones] dos EUA podem continuar a operar em conjunto com outras aeronaves de guerra da OTAN para cavar ravinas entre os bairros civis de Trípoli. Muitos no Congresso temem que, além do impasse que cresce na Líbia, cresçam também as pressões que a claque humanitária-intervencionista (Samantha Powers, Susan Rice) e Telavive fazem sobre Obama, para que endureça contra a Síria e, talvez, também contra o Irã. “Será que já não estamos metidos em guerras que cheguem?! – perguntou Dennis Kucinich (D-Ohio). – “Inventaremos agora de fazer guerra contra mais uma nação que não nos atacou?!”

A discussão sobre tecnicalidades legais do “War Powers Act” dará em nada. Poucos presidentes dos EUA algum dia deram atenção àquela lei. 

Mais importante e mais significativa, isso sim, é a quebra do consenso em torno da doutrina da guerra perpétua que governa a economia política dos EUA: dinheiro dos cidadãos-contribuintes queimado em guerras sempre gera os estímulos econômicos de longo prazo de que são feitas as reeleições; mas dinheiro investido no lado social do livro-caixa é considerado “dinheiro morto”. 

Por essa brecha, bem aí, vem Wen Jiabao, o premiê chinês, com “How China Plans to Reinforce the Global Recovery" (Os planos da China para reforçar a recuperação global”, 23/6/2011, Financial Times). Wen paga para ver. A China está a postos, mas não, ainda, para assumir sozinha os desafios políticos. A China tentará operar através do grupo BRICS (Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul).

Um banquete de mendigos

Os 12 mil ataques da OTAN e os 2.505 alvos atingidos nada conseguiram, do objetivo de impedir que o regime de Gaddafi continue a trabalhar para afirmar-se. O exército da Líbia continua a atacar Misrata, a cidade do perpétuo medo. A linha da fronteira entre leste e oeste da Líbia permanece inalterada. O regime de Bashar al-Assad da Síria talvez caia antes que o de Gaddafi. A filha de Gaddafi, Aisha, já iniciou em Bruxelas o processo contra a OTAN pelo assassinato de sua irmã Mastoura, de um irmão e de dois netos de Gaddafi. Depois do ataque de 30 de abril último, o ministro russo das Relações Exteriores disse que “a destruição física de Gaddafi e de membros de sua família impõe sérias considerações”. 

O almirante da Marinha dos EUA Samuel Locklear disse ao deputado Mike Turner em maio que as forças da OTAN trabalham para assassinar Gaddafi (ou, em termos mais contidos, como Turner relatou, “o escopo da proteção civil está sendo interpretado de modo que admite a remoção da cadeia de comando do exército de Gaddafi, o que inclui o próprio Gaddafi”). Gaddafi luta cada dia com mais astúcia. Com tudo a perder, está decidido a insistir.

O tempo trabalha a favor de Gaddafi. A cada dia que passa, mais detalhes do golpe de propaganda da OTAN vêm à tona. 

Donatella Rovera (da Anistia Internacional) passou três meses na Líbia, investigando várias acusações. Em relatório, diz agora que a maioria das acusações são absolutamente falsas, forjadas. Uma dessas, e não pequena nem acusação nem falsidade, é a acusação de que Gaddafi estaria distribuindo Viagra aos soldados, para “animá-los” a estuprar mulheres em massa (acusação que Luis Moreno-Ocampo, da Corte Criminal Internacional da ONU, repetiu como se fosse fato). Há vários outros crimes em andamento, como bombardeio militar de áreas civis, mas são cometidos tanto pelos soldados líbios como pelos jatos bombardeiros da OTAN. Nem um lado, nem outro está em posição de julgar seja lá quem for, no campo moral.

A guerra da OTAN na Líbia já nada tem a ver com a Resolução n. 1973 da ONU e seu pressuposto filosofado (a Responsabilidade de Proteger Civis). O relatório de 6 de junho do International Crisis Group (“Making Sense of Libya”) declara com todas as letras que ninguém, por lá, parece preocupado com os civis, dado que a crise dos refugiados explode sem qualquer controle e o número de civis mortos só aumenta. Ninguém criou qualquer “corredor humanitário” em nenhuma das duas metades do país, para permitir que os civis tentem salvar-se do que já é, plena e completamente, guerra civil. A situação é vergonhosa.

O impasse afeta o moral em Benghazi. As potências do Atlântico não avançam e os Estados do Golfo pouco dão, o que deixa o Conselho “de Transição” preso entre estacas apertadas. Mas o vice-presidente do Conselho, Abdel Hafiz Ghoga, cantou canção diferente dia 25 de junho, quando esperava nova proposta política de Gaddafi. “Queremos preservar a vida. Queremos por fim a essa guerra o mais rapidamente possível. Temos algum espaço aberto para negociar”. O “espaço aberto” não existe nem nunca existiu, mas o que conta é o sentimento: Gaddafi está encurralado entre as bombas da OTAN e a condenação comandada por Ocampo. Os dois andares da cobertura Novotel Hotel em Jeddah (Arábia Saudita), onde Idi Amin foi acolhido, já não estão para alugar. E Chávez, da Venezuela, já voltou atrás, da oferta de casa e comida no Palácio de Miraflores. De importante e significativo, é que Ghoga dá sinais de que até a liderança em Benghazi, apesar dos firmes laços que a une a Paris e Langley, já percebeu que lhes servem, na Líbia, a todos, um banquete de mendigos, só de comidas sem gosto.

Até o International Crisis Group já chegou à conclusão de que “um acordo político é, sem qualquer dúvida, a melhor solução para a difícil situação criada pelo impasse militar”. Os dois lados devem aceitar um cessar-fogo imediato, a ser monitorado pelos soldados dos batalhões de paz da ONU que já estão por lá. Não se cogita de negociações diretas entre Benghazi e Tripoli, mas uma terceira parte poderia mediar o acordo. Não se cogita de essa terceira parte ser uma das potências do Atlântico – que não gozam da confiança de nenhum dos lados em confronto. 

Segundo o relatório do Crisis Group, “Iniciativa política conjunta da Liga Árabe e da União Africana – a primeira, preferida da oposição; a segunda, do regime – é uma possibilidade, para conduzir um acordo de paz”. Há base para esse diálogo, construída nas visitas do “Painel Líbia”, da União Africana, a Trípoli e Benghazi; e no trabalho do Enviado Especial da ONU à Líbia, o jordaniano Abdul Ilah Khatib (famoso por ter dito das potências do Atlântico, que “Só quando há uma crise, elas [as potências do Atlântico] percebem que têm de fazer alguma coisa.” Mas, como também se lê no relatório do Crisis Group, nada disso servirá para coisa alguma “se os líderes da revolta e a OTAN não repensarem suas atuais posições.”

A União Africana vai reunir-se na Guiné Equatorial no próximo dia 30/6. O presidente do “Painel Líbia” da União Africana, o presidente da Mauritânia Mohamed Ould Abdel Aziz já declarou que “Gaddafi não pode continuar a governar a Líbia”. Mas a União Africana, diferente da OTAN e de Benghazi, não imporá a saída de Gaddafi como precondição para negociar. A ideia de que “Gaddafi tem de sair”, como diz o Crisis Group, é receita para truncar qualquer diálogo. É bem provável que as negociações resultem em fim do reinado de Gaddafi; mas, se acontecer, será como resultado possível de negociação entre os dois lados. Uma reunião preparatória para o Painel da União Africana, dia 26/6, não sugeriu nenhuma ideia diferente dessa. O problema não é esse. O problema é que o mapa do caminho que a União Africana já traçou só funcionará se a OTAN afastar-se da Líbia.

E então? Será que a OTAN e as potências do Atlântico admitirão que os países dos BRICS e da União Africana assumam o manche? 

A Guerra Fria acabou no exato momento em que o projeto do Terceiro Mundo foi derrotado. Durante os anos 1990s, os países da África, Ásia e América Latina tentaram desenvolver um novo conjunto de instituições que neutralizassem as potências do Atlântico como potências dominantes. O Movimento dos Não-Alinhados formou o Grupo dos 15 (G15), depois estreitado para formar o bloco IBSA (Índia-Brasil-África do Sul), que hoje é o bloco BRICS.  

Os BRICS já se candidatam à governança planetária, com plataforma muito mais decididamente multipolar e policêntrica que a das velhas potências do Atlântico. A União Africana agiria muito mais como agente dos BRICS que de Washington e Paris. A Líbia é um bom teste, no processo de transferência de poder, do moribundo G-7, para a formação mais robusta e potente dos BRICS. Mas as potências do Atlântico tentam impedir que aconteça. Por isso, estão trabalhando no desmonte da Líbia.

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