quinta-feira, 31 de maio de 2012

Obama choca a Polônia ao referir-se aos “campos da morte polacos”


Donald Tusk

Primeiro-ministro Donald Tusk pediu ao Presidente norte-americano uma explicação 


Não é uma gaffe inédita, mas dita por Barack Obama causou uma forte indignação. O Presidente norte-americano referiu-se aos “campos da morte polacos” e o primeiro-ministro da Polônia pediu uma explicação.

Barack Obama
Obama estava discursando na terça-feira, durante uma cerimônia de homenagem a Jan Karski, um antigo oficial polaco que forneceu ao Ocidente os primeiros testemunhos sobre a política de extermínio nazi, quando fez referência a “um campo da morte polaco”. Para a Polônia, referir desta forma os campos de extermínio instalados no seu território, quando este estava ocupado pela Alemanha nazi, é uma grave distorção da história, e as reações não se fizeram esperar.

Jan Karski
“Quando alguém diz campos da morte da Polônia é como se não houvesse nazis, nem responsabilidade da Alemanha, nem Hitler, e é por isso que a nossa sensibilidade polaca nestas situações é muito mais do que um simples sentimento de orgulho nacional”, disse o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk. Sem exigir de Obama um pedido de desculpas, Tusk deixou claro que as palavras do Presidente norte-americano “feriram todos os polacos” e pediu uma explicação.

Um porta-voz de Obama, Tommy Vietor, disse que o Presidente “se expressou mal”, mas Tusk pediu uma reacção pessoal. “Estou convencido que os nossos amigos americanos vão reagir de forma mais forte do que uma simples retificação e um pedido de desculpas do porta-voz da Casa Branca; espero uma reação susceptível de eliminar de uma vez por todas este tipo de erros”, afirmou.

Bronislaw Komorowski
O Presidente polaco, Bronislaw Komorowski, anunciou que enviou uma carta a Obama e disse estar “convencido de que as palavras injustas e dolorosas sobre o campo polaco não refletem as intenções nem as opiniões dos nossos amigos americanos”. E a comunidade de judeus polacos disse também esperar que Obama “retifique as suas palavras pessoalmente”.

O chefe da diplomacia polaca, Radoslaw Sikorski, lamentou, numa mensagem colocada no Twitter, que “a ignorância e a incompetência tenham ensombrecido uma cerimônia solene”. Obama estava homenageando Jan Karski, que denunciou as atrocidades cometidas contra judeus pelo regime nazi e mais tarde se tornou professor de História na Georgetown University, tendo morrido em Washington em 2000, com 86 anos de idade.

Radoslaw Sikorski
Entre 1939 e 1945, os alemães mataram perto de seis milhões de polacos, incluindo três milhões de judeus. E na Polônia ocupada, Hitler instalou vários campos de concentração e de extermínio, incluindo o de Auschwitz-Birkenau, onde mais de um milhão de pessoas foram mortas, incluindo 300 mil judeus polacos.

Apesar de estes fatos serem mais do que conhecidos e dolorosos para os polacos, a gaffe que Obama cometeu continua a ser bastante comum.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros polaco disse em comunicado que já interveio cerca de 200 vezes ao longo dos últimos dois anos para retificar este erro. Em consequência, jornais como o Wall Street Journal, o New York Times ou a agência Associated Press inscreveram no seu livro de estilo que não se pode escrever “campos polacos” mas sim “campos da Alemanha nazi na Polônia ocupada”.

30/5/2012
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu

Extraído do jornal Público de Portugal 

Furo de reportagem! “Vazou o vídeo secreto de reunião do Comitê Central do Grupo *GAFE!”


Grupo *GAFE (Grobo, Abriu, Fôia Ditabranda, Estado de Sítio)


Participantes principais:
Irmãos Martinho (Grobo) – os três calados em frente à porta
Ropert Murdívita (Abriu) – Chefe do Comitê Central (disfarçado com bigodinho ridículo)
Otário Frescas (Fôia Ditabranda) – o magro (disfarçado de MILICANALHA cinza)
Adora Cremes (Estado de Sítio) – gorda disfarçada de farda branca que olha o relógio

Outros identificados:
Ardaldo Jabá (o que serve água ao Chefe)
Joseh Ianomami (o magrela que fala da Dilma)
Néscio Bostta (o que entra –depois – pela porta)
Gillette Lambuja (francês disfarçado de MILICANALHA austríaco)

Vários ainda não identificados pelo Brigaboa, o “keep trolling”, especialista da redecastorphoto em identificação de GAFES.
Vídeo obtido pelo serviço secreto do blog “O Cafezinho” comandado por Miguel do Rosário.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A casa que Fox TV construiu: Anonymous, espetáculo e ciclos de amplificação (3/3)


(a ser publicado no periódico peer-reviewed Television and New Media

11/5/2012, Whitney Phillips, Scholars Bank, University of Oregon - 3a. Parte

Leia também (e se possível antes):
24/5/2012, 1ª. Parte (1/3) do ensaio
25/5/2012, 2ª. Parte (2/3) do ensaio


Cientistas do concreto

A colusão entre trolls e veículos da grande empresa-imprensa cultiva um conjunto de tropos linguísticos e comportamentais, os quais, por sua vez, exigem e cultivam um estilo específico de trollagem. Exigem, porque esses tropos demarcam exatamente quem e exatamente o quê se qualifica como trolls/trollagem; e cultivam, porque contextualizam e reconfiguram os significados de comportamentos e conteúdos emergentes – um processo que se alinha com o relato de Dick Hebdige de como se desenvolve o estilo subcultura, sobretudo mediante a colagem [orig. bricolage].

A colagem descrita como a “ciência do concreto” (1979: 103), o bricoleur é o cientista do concreto: reúne e reconfigura artefatos socialmente significantes; depois reanima a própria criação com significado(s) novo(s).

No 4chan, a “junção explosiva” de coisas que antes permaneciam desconectadas e coisas (que-)sóaquiestãoconectadas (Hebdige 1979: 103) é acelerada pelas estruturas materiais do próprio 4chan. Especificamente, o 4chan é efêmero; os painéis só podem conter tanta informação porque vão apagando dados antigos, para abrir espaço para novo conteúdo. Resultado disso, poucas threads/”Assunto” permanecem na página por mais de poucos minutos; e as que chegam às manchetes da página desaparecem em, no máximo, uma hora. Mas o conteúdo que “cola”, se número suficiente de usuários aderem a um determinado fragmento de conteúdo, seja porque respondem seja porque repassam, esse será incluído no léxico da subcultura. Em outras palavras, tornar-se-á um meme.

A definição do termo meme é: fonte de alguma discussão. Muitos teóricos, entre os quais Henry Jenkins, insistem que a teoria memética, frequentemente descrita em termos de infecção viral, traz um modelo de transmissão não deliberada; e, por isso, mina a intervenção individual (2009). Simpatizo com os interesses de Jenkins e, como ele, também resisto à ideia de que os públicos sejam pouco mais que “veículos transmissores” passivos do conteúdo distribuído pela empresa-imprensa jornalístico-comercial.

Isso posto, dentro do contexto da cultura da trollagem, “meme” tem conotação muito mais ativa. Para os trolls, os memes estão coerentemente articulados num sistema holístico de significado subcultural: os memes só fazem sentido em relação a outros memes. Para que os usuários não se percam nessas mutáveis areias subculturais, todos contam com que todos reconhecerão e replicarão memes específicos e famílias de memes, ao mesmo tempo em que se manterão em dia com os temas do programa de Jones [1] (ou mais apropriadamente com o 4chan). Reconhecer um meme, remixar um meme, citar um meme – essas ações estabelecem um conjunto de fronteiras da subcultura, garantindo assim um “todo significativo” no qual outros significantes podem articular-se coerentemente (Hebdige 1979: 103, 113).

No espaço de trollagem [orig. trollspace], aqueles signos aparentemente caóticos – manifestos em língua ou mediante artefatos – fazem muito. No contexto da trollagem, eles constroem mundos.


Over 9000 Penises [Mais de 9.000 Pênis], supermeme que teve estrondoso sucesso e foi muito celebrado, ilustra o processo pelo qual se constroem os mundos e oferece exemplo “de manual” da relação de amplificação que há entre os trolls e a imprensa-empresa-comercial jornalística. Não apenas ilustra o modo como se constroem os espaços de trollagem; também ilumina os tipos de mundos que os trolls tendem a criar.

Afinal, os trolls não oferecem conteúdo gerado ex-nihilo; são “vingadores” culturais que extraem nutrição-diversão do que já existe. E na maior parte das vezes, o que já existe passou, antes, pelo filtro da imprensa-empresa-comercial jornalística. A relação entre a trollagem e a chamada “mídia”, assim, não apenas não surpreende; ela, de fato, aproxima-se de uma relação definicional – e nos obriga a repensar, não só o modo como vemos os trolls, mas, também, o modo como vemos a própria imprensa-empresa-comercial jornalística.

Nossa análise começa com o Pedobear [lit. Ursinho Pedô], uma das imagens que mais longa vida tiveram no fórum /b/. Inspirada no “Safety Bear” [Ursinho de Segurança], usada no Japão para marcar os desenhos animados (anime) impróprios para crianças, a imagem-contraparte que surgiu nos EUA é figura muito mais ambígua (“Pedobear” 2011). Às vezes babando, às vezes suando, às vezes portando um sombrero ou as palavras “DO WANT” [quero (muito)], o Pedobear está sempre caçando/procurando alguma coisa. Só quando se entende o quê, precisamente, ele caça/procura, a forma ganha novo significado – “Pedo” é forma encurtada de “pedófilo”, o que faz do Pedobear o mascote não oficial da pornografia infantil [ing. child pornography, “CP” no mundo da trollagem].


Isso não implica dizer que o Pedobear represente interesse ou apoio na vida real, à exploração infantil. A imagem é praticamente sempre usada com sarcasmo, como crítica implícita a aparente predileção que outros anons manifestem por meninas ou mulheres muito jovens; ou em relação a algum outro meme; muitas vezes em relação ao meme-cluster que cerca “To Catch a Predator”, de Dateline, e seu anfitrião, Chris Hansen.

A imagem do Pedobear às vezes, sim, acompanha pornografia infantil e às vezes destaca ou, mesmo, celebra ativamente imagens sexualizadas de crianças. Mesmo nesse território escorregadio, contudo, uma vez que é muitas vezes usada como isca que uns trolls lançam contra outros – a pornografia infantil é dos poucos temas suficientemente chocantes para incomodar até os trolls mais “casca grossa”. Consequentemente, a apesar do fato de que postar pornografia infantil no 4chan é crime punido com expulsão (se os administradores da página encontram pornografia infantil, seja do tipo que for, o endereço IP [dez dígitos] do postador é rastreado, e o anon é expulso para sempre), postar pornografia infantil ou, como quase sempre acontece, a ameaça de postar esse tipo de material, ou fazer piadas sobre postar pornografia infantil – ameaças que sempre vêm acompanhadas da imagem do Pedobear – tornaram-se, elas próprias, um meme.

O primeiro componente é a expressão “mais de 9.000” [orig. over 9000], valor numérico arbitrário, tirado de DragonBallZ, uma série de mangás muito popular. Originalmente lançada no Japão em 1989, DragonBallZ fez sucesso na televisão dos EUA em 1996 e tornou-se ícone cultural para uma geração de fãs de anime e de videogames. Num episódio, os vilões Vegeta e Nappa preparam-se para enfrentar um herói de nome Goku; consultam seus scouter, aparelho que afere o nível de poder do adversário. Nappa pergunta o que o scouter indicou sobre níveis, e Vegeta responde num grunhido: “It’s over nine THOUSAAAAAND” [Acima de nove miiiiiiiiil] e, ato seguinte, esmaga o scouter, com a mão (“9000!!” 2006).

Alguém postou o clip no fórum /b/. Talvez pela nostalgia, talvez porque “mais de 9.000” fosse tradução errada de “mais de 8.000”, o que gerou muita discussão (e muita trollagem), talvez porque moot implantou, logo depois, um filtro que trocava todas as ocorrências do número 7, para “Mais de 9.000”, os Anonymous adotaram “Mais de 9.000” como resposta-padrão para qualquer pergunta que envolvesse valor numérico.

O segundo componente do meme é muito mais direto. Em setembro de 2008, algum anon decidiu trollar as páginas de mensagens de Oprah, apresentando-se lá como pedófilo. Oprah, que passara toda a semana advogando a favor de leis para impedir a busca online de crianças para exploração sexual, foi informada sobre aquele postado e decidiu divulgar a mensagem do anon. “Permitam que eu leia algo que foi postado em nossa página” – começou ela, em tom grave – “por alguém que se diz membro de uma conhecida rede de pedófilos. Diz que não perdoa e que não esquece. O grupo reúne mais de 9.000 pênis e todos estão... estuprando... criancinhas” (“Oprah OVER 9000 PENISES” 2008).

Em menos de uma hora, um segundo anon baixou o comentário de Oprah, como se fosse ato inadvertido de interação com o Anonymous Credo, e aplicou sobre o clip um vídeo de som, com o Pedobear, Oprah, personagens de DragonBallZ e Chris Hansen (“Pedobear remix” 2008). Para a comunidade troll, foi vitória total, absoluta, completa. Na edição de 2008 da Encyclopedia Dramatica, o verbete “Oprah Winfrey” era foto de Oprah sentada com um monstro de ar dissimulado. Usando o popular meme “[substantivo] [adjetivo] é [substantivo]”, a foto levava, como título: “Sucesso troll é sucesso” [orig. “Successful troll is successful”] (2008).

Mas por quê? O quê, exatamente, foi sucesso, na operação “Mais de 9.000 pênis?” É extremamente bem sucedido, em primeiro lugar, pelo apelo transgressor. Não é acaso que os trolls tenham dedicado esse fórum a essa questão, nem é insignificante que o lulz resultante tenha durado tanto tempo depois de terminado o raid [ataque] inicial. Os trolls não teriam gostado, ou não teriam gostado tanto, se a questão não fosse tão absolutamente sensível, para tanta gente. De fato, a exploração infantil, sobretudo quando tenha traços sexuais, é dos poucos tabus idênticos para, praticamente, todos os pontos de vista do espectro político. Resultado disso, seja no 4chan ou fora de lá, a pedofilia (sejam referências sejam ameaças) é das ferramentas mais exploráveis de todo o arsenal dos trolls. Que a “piada” tenha chegado até o show de Oprah Winfrey foi irresistivelmente divertido para os trolls participantes.

E ainda muito mais divertido foi o status de Cavalo de Troia subcultural que o meme provou que tinha. Simplesmente por enunciar a expressão “mais de 9.000 pênis”, e poderia ter dito “mais de 9.000” qualquer coisa, Oprah demarcou o território dos trolls.

Qualquer um, por mais remotamente conectado ao 4chan (ou à cultura online de modo geral) que fosse, imediatamente soube que a trollagem avançara até lá, e, melhor ainda: que a própria Oprah era agora um peão, no jogo dos trolls. Tudo isso aumentou a visibilidade online dos trolls, acrescentando ainda mais infâmia a um enxame já infame; e operou como catalisador para mais inventividade memética.

Bricolage: Ciclos de amplificação e espetáculo

Além de valer como exemplo “de manual” do modo como os trolls e a empresa-imprensa-comercial jornalística alimentam-se e realimentam-se continuamente; além de ser caso exemplar de como as intervenções da empresa-imprensa-comercial jornalística geram cada vez sempre mais base de alavancagem para novas ações da subcultura, a operação “Mais de 9.000 Pênis” expõe as semelhanças retóricas e comportamentais que há entre a trollagem e a empresa-imprensa comercial jornalística. Dessas, a que mais salta à vista é a busca incansável, de sucesso.

Para os trolls, “Mais de 9.000 Pênis” foi sucesso, porque detectou e explorou um tropo cultural particularmente sensível e, no processo, gerou grande quantidade de lulz. Mas os trolls não foram os únicos que tiveram sucesso: o sucesso do ataque de trollagem fala muito, também, do sucesso dos produtores de Oprah. Os objetivos divergiam bastante, dado que Oprah falava a um público simpático e horrorizado, e os trolls falavam só a um público horrorizado, mas os meios pelos quais os objetivos dos dois lados foram plenamente alcançados eram, de fato, exatamente os mesmos, idênticos.

Ambos, os trolls e a produção de Oprah tocaram o coração do público, usaram linguagem supercarregada de emoção e exploraram com perfeição o ângulo do interesse humano. E o mais significativo de tudo, para essa análise: ambos, Oprah e os trolls, tinham algo a ganhar, do incômodo (da dor, do sofrimento, da ansiedade) que causavam ao público.


A evidente superposição de Oprah & trolls não é surpresa. Os trolls frequentemente entram numa forma complicada de jogo de sombras ideológicas, com os mesmos que eles procuram explorar, sobretudo no relacionamento com a chamada “mídia dominante” (as grandes empresas-imprensa-comercial jornalísticas), o que dá novos significados à expressão “passar a perna”, “enganar”, “ludibriar com esperteza” (ing. outfoxed).

Como os veículos da “grande” mídia comercial, os trolls vão aonde está a notícia; como os veículos da “grande” mídia comercial, os trolls gostam de sensacionalismo e hipérboles. Em resumo, ambos, os trolls e a empresa-imprensa-comercial jornalística vivem mergulhados no espetáculo – o processo mediante o qual se fundem dinheiro & negócios e entretenimento (Kellner 2003).

Evidentemente, o que um lado entende como dinheiro & negócios diverge do que, para o outro lado equivale a dinheiro & negócios. Mais basicamente, a empresa-imprensa comercial jornalística vive investida nos movimentos do capital. Os trolls vivem investidos nos movimentos do lulz. Mas para alcançar esses objetivos declarados – os trolls, aliás, descrevem a eterna busca por mais e mais lulz, como “negócio sério” [ing. serious business] – os dois campos têm de provocar o maior impacto possível. Têm de envolver um público; têm de “fidelizar” a atenção desse público; têm de manter o público sempre atento e interessado. A relação entre trolls e a “mídia”, em outras palavras não é de oposição diametral.

Biella Coleman
Diferente da dinâmica que Gabriella (Biella) Coleman sugere em sua fascinante análise da Igreja da Cientologia e dos Anonymous pós-Chanologia, na qual propõe que o ethos e as táticas dos segundos são inversão direta do ethos e das táticas dos primeiros (2010), os trolls e a grande empresa-imprensa-comercial jornalística são, de fato, homólogos. Os dois lados têm comportamento idêntico, para objetivos divergentes.

Fica-se tentada a sugerir que a empresa-imprensa comercial jornalística não passa de grande instituição de trollagem, ou que, pelo menos, algumas personalidades “midiáticas” são, pessoalmente, trolls. Mas seria reduzir o problema, porque a trollagem, especialmente a trollagem associada ao 4chan e aos primeiros Anonymous, quer ser identificada como subcultura. Os trolls são gente que age como troll, fala como troll e trolla como troll, porque optaram por essa identidade.

Mas posso sugerir que os trolls tem muito mais em comum com a “mídia”, ou talvez, mais apropriadamente, que a “mídia” tem muito mais em comum com os trolls, do que seus apoiadores e defensores empresariais, ou que seus consumidores, aceitariam admitir.

Em termos do engajamento com a “mídia”, e baseada nas acentuadas semelhanças entre as ações de trollagem e as práticas das empresas-imprensa comerciais de jornalismo sensacionalista [2], posso dizer que os trolls agem e pressionam a cultura, não porque desafiem diretamente a cultura dominante, mas porque incorporam a cultura dominante, explorando, sobretudo, o imperativo sensacionalista que mantém altos os níveis de venda de publicidade comercial.

Nesse sentido, a trollagem ecoa o détournement como descrito por Guy Débord e Gil Wolman. Segundo Débord e Wolman, o détournement [3], que pode ser traduzido livremente como “sequestro” ou “captura” [também “recombinação”], ocorre quando objetos culturais são recontextualizados, o que torna um dado objeto cultural carregado de novo significado subversivo. Há captura ‘menor’, quando objetos neutros são alinhados, o que reconfigura o significado de cada um deles; e há captura em grande escala subversiva, quando se ressignificam objetos culturais já significantes. O Colbert Report, que afeta o neoconservadorismo para miná-lo, é exemplo do segundo caso; uma imagem tratada em Photoshop, de um gato montado num cachorro, pode ser exemplo do primeiro caso.

Seja a captura “menor”, seja em grande escala subversiva, as duas formas de captura ou de recombinação desafiam ou, no mínimo, remixam ideias dominantes mediante captura criativa ou, em alguns casos, mediante apropriação “absurdista” (Débord and Wolman, 1956). Mais interessante para esse estudo, os objetos podem ser “recombinados” pela cópia, pela sátira, pela reprodução, cujo efeito é “reforçar o significado real de um elemento original” (Jappe 1999: 59). Nesses casos, um objeto – uma frase bem conhecida de obra literária, um fotograma de filme, um fragmento de noticiário – é posto em contexto opositivo e tratado por ironia, o que faz com que o objeto se autodenuncie.

A trollagem, que é simultaneamente cópia e sátira, repetição & sarro, que usa tropos dominantes para “responder” a instituições dominantes, é caso exemplar de “recombinação”. Os trolls trollam a rede Fox News de televisão, atuando como atua a rede Fox News; e trollam Oprah Winfrey atuando como atua Oprah Winfrey. E rolam de rir, quando seus alvos escolhidos inadvertidamente, põem-se a atacar a imagem especular deles mesmos.

Sejam os trolls motivados por preocupações políticas, ou não; tenham ou não o objetivo de desafiar ou desmascarar a ideologia dominante, seus comportamentos e sua linguagem recombinam tropos existentes e, assim, deixam ver a fonte daqueles tropos – fonte, pelo menos, indireta.

Criticar os trolls e a trollagem sem considerar a relação de homologia que há entre eles e a cultura dominante – nesse caso, entre os trolls e a trollagem e a imprensa-empresa-comercial jornalística que alimenta os trolls, é, portanto, equivalente a “denunciar” os defeitos e “erros” de uma imagem, não do objeto refletido.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (em inglês) estão no ensaio original.
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Notas dos tradutores

[1] The Alex Jones Show é um programa de rádio.

[2]No Brasil-2012, o argumento aplica-se também, e, talvez, sobretudo, à chamada “imprensa séria”, reunida no Grupo GAFE (Globo-Abril-FSP-Estadão), mas ativa também fora desse grupo. O Grupo GAFE vive hoje (de fato, vive assim desde a primeira eleição do presidente Lula) da prática de sensacionalismo o mais alucinado, mascarado como se fosse alguma preocupação “ética”, algum interesse em “transparência”, ou com a “defesa da natureza”, ou com alguma defesa dos princípios de justiça e democracia civilizadas. E não se pode dizer, sequer, que as empresas do Grupo GAFE sejam instituições de trollagem, porque o lulz é anárquico e portanto, por definição, é progressista, e as empresas do Grupo GAFE são (historicamente) doentiamente conservadoras, quando não são, mesmo, ativamente atrasistas e fascistizantes.]

[3] Guia Prático para o Desvio/Guia Prático para a Deturnação/Guia Prático para a Recombinação, publicado no jornal surrealista belga Les Lèvres Nues #8 (maio de 1956). Pode ser lido, numa tradução de Portugal. Sobre o Guia, leia também comentários interessantes, em português.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Droga Mata!



Publicado em 29/05/2012 por Mário Augusto Jakobskind*

A revista Veja, pouco confiável por ser useira e vezeira em editar matérias que não se sustentam, desta vez fez alarde com uma acusação do Ministro Gilmar Mendes, segunda a qual o ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva teria lhe proposto o adiamento do julgamento do chamado mensalão. 

O encontro entre Mendes e Lula, no escritório de Nelson Jobim, ocorreu há um mês e só agora o ministro revelou o suposto pedido. O adiamento proposto por Lula, ainda segundo a revista Veja, se daria em troca do silêncio da Comissão Parlamentar de Inquérito mista sobre Cachoeira  em relação ao próprio ministro, que se encontrou com o senador Demóstenes Torres em Berlim.

Há denúncias de que Cachoeira de lama pagou as passagens e estadas tanto de Mendes como do senador que ditava regra sobre moralidade e por debaixo do pano fazia o jogo sujo de Carlos Cachoeira de lama. Mendes garante que ele mesmo custeou a viagem e volta e meia vai a Berlim visitar a filha, que la reside.

Se o Ministro puder provar que pagou a passagem daquela vez (ninguém pediu), afinal a denúncia é grave, encerraria de uma vez por todas com a dúvida. Por enquanto vale apenas a palavra de Mendes, considerada bastante questionável.   

A notícia divulgada pela Veja, como sempre acontece, foi repercutida na Folha de S. Paulo, em O Globo e no Jornal Nacional. Lula negou que tenha feito a proposta. 

A matéria da revista Veja com a denúncia de Mendes deve ser encarada com reserva e se for melhor analisada não se sustenta. Por que Lula faria o pedido quando a mídia de um modo geral está em cima dos ministros do STF exatamente para apressar o julgamento do mensalão? Com a experiência que tem como ex-presidente por que ele se exporia dessa forma tão grosseira?  

Jobim também desmentiu a matéria da revista Veja, uma publicação sob suspeita de prática de baixo jornalismo. O esquema é conhecido. Os repórteres saem em campo já com a pauta determinada e dirigida para chegar a uma conclusão. Seja o que for falado por alguém alvo dos Civitas, a matéria conclusiva está pronta antes mesmo de ser elaborada. Os inimigos não serão poupados.

Desta vez, Gilmar Mendes se superou. Ele já esteve envolvido em outras matérias no mínimo  discutíveis, uma delas a de ter concedido habeas corpus a Daniel Dantas e na tentativa de desmoralizar o então delegado Protógenes Queiroz, que conduzia o inquérito contra o referido banqueiro acima de qualquer suspeita.

Se Lula tivesse mesmo feito o pedido seria uma demonstração de incompetência política, algo que até seus inimigos admitem que não corresponde aos fatos. Seria até um expediente prejudicial aos próprios implicados no mensalão que está para ser julgados nas próximas semanas. 

Vários Ministros do STF, entre eles Ricardo Lewandovsky, já disseram que nunca foram pressionados por Lula quando ele exercia a Presidência da República.

Seria absolutamente descabido e pouco inteligente, o que não é uma característica de Lula, reconhecido até pelos inimigos como um político hábil e inteligente, que agora sem mandato pressionasse Gilmar Mendes. E uma pressão, diga-se de passagem, prejudicial aos próprios petistas, entre os quais José Dirceu e Jose Genoino, que serão julgados antes das eleições.

Não se exclui a possibilidade de que este novo apronto da sujísima Veja com Mendes tenha se destinado a retirar dos holofotes algumas questões vinculadas à Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso sobre as ligações de Cachoeira de lama com o mundo político e mesmo midiático.

A Veja foi pautada pelo meliante Cachoeira e nestes dias ganhou uma defensora de peso, a Senador Kátia Abreu, agora no PSD de Gilberto Kassab, que escreveu artigo tomando as dores da revista que lhe dá grande acolhida. Usou os mesmos argumentos que outros defensores da publicação, como o imortal Merval Pereira, ou seja, que a convocação de Policarpo Júnior seria um atentado à liberdade de imprensa. 

Quanto ao Prefeito Kassab, a revista IstoÉ e o Ministério Público o acusaram de estar também envolvido em falcatruas, juntamente com um funcionário que recebeu de propina 106 apartamentos ao liberar obras irregulares na capital paulista. Nenhuma linha em O Globo ou na TV do mesmo nome.

A Veja pratica um jornalismo que lhe vale a denominação de sujíssima. Para se ter uma ideia, recentemente um repórter da revista tentou invadir o quarto de um hotel em Brasília onde estava hospedado o ex-ministro José Dirceu para possivelmente espionar alguma material que o incriminasse ou mesmo instalando algum microfone oculto. A camareira impediu que a transgressão acontecesse. Corre até uma investigação policial sobre o fato e o público não vem sendo informado a respeito.

Não se trata de defender José Dirceu, um dos responsáveis pela atual praxis fisiológica do PT em nome da governabilidade, mas de se repudiar uma prática que depõe verdadeiramente contra o jornalismo. E a corrida a qualquer custo para incriminar o ex-ministro Chefe da Casa Civil é sintomática.

Policarpo Júnior, chefe da sucursal da Veja em Brasília, tem culpa no cartório no mencionado episódio. Além disso, foi pautado por uma Cachoeira de lama, como demonstra cristalinamente vídeo apresentado pela TV Record, no ar também no YouTube. O jornalista está sendo blindado para não comparecer na CPMI.

Assim caminha a mídia de mercado. O mais recente apronto da Veja e Gilmar Mendes está realmente inserido no contexto enlameado do baixo jornalismo. E toda vez que se contesta a revista da família Civita, que para muitos forma uma gang, convoca entidades e colunistas para protestar conta o que eles alegam ser perseguição à liberdade de imprensa.

A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) já deve estar de prontidão para qualquer emergência que porventura venha a envolver a sujíssima Veja na CMPI.

Em tempo: depois de na semana passada cancelar a reunião, o Ministro da Justiça, Jose Eduardo Cardozo, voltou a convocar familiares de desaparecidos políticos citados no livro Memórias de uma guerra suja sobre o depoimento do ex-delegado Claudio Guerra revelando, entre outras coisas, a incineração de dez combatentes contra a ditadura em um forno de uma usina de açucar em Campos. 

Mário Augusto Jakobskind* é correspondente no Brasil do semanário uruguaio Brecha. Foi colaborador do Pasquim, repórter da Folha de São Paulo e editor internacional da Tribuna da Imprensa. Integra o Conselho Editorial do seminário Brasil de Fato. É autor, entre outros livros, de América que não está na mídia, Dossiê Tim Lopes - Fantástico/IBOPE.




Imagens colhidas na internet pela redecastorphoto
Titulo original do artigo:Veja como se faz baixo jornalismo”

Ivan Ivanovitch em abril de 1964



Urariano Motta*

Para ser exato, Ivan, Ivanovitch Correia da Silva não morreu em 31 de março de 64. Foi no dia seguinte; foi no 1º de abril de 64 que ele abandonou o seu espírito. Para ser mais exato, ele não o abandonou. Ele foi abandonado, porque já antes Ivan perdera a vontade, e perder a vontade, parece, é o anúncio primeiro da morte. Digo, corrigindo; já antes de deixar de existir, Ivan já não mais existia.

Quero ser exato, preciso, claro, mas o reino de que me acerco repele tais exatidões. O que vi naquela tarde não se pega como um cão que se agarra e se pega, como uma ave que seguramos entre os dedos, como uma pedra de gelo que sentimos e pegamos. Talvez o melhor seja organizar Ivan à maneira do que organiza a memória, o sentimento, enfim, no que organiza o espírito.

Ivan era grande, largo, testa ampla – estranho, agora eu sei, só agora compreendo, ao escrever estas linhas agora compreendo: Ivan era largo e grande como a minha mãe. Ele foi, ou ele era, o melhor amigo que pode ter um adolescente de 13 anos. Escrevo essa generalização e estaco. Estaco porque essa tentativa de ser objetivo e imparcial só me faz escrever burras generalidades. Quero dizer, portanto, e não serei mais falso: Ivan foi o melhor amigo que tive na altura dos meus 13 anos.

Ivan, que só agora compreendo, não era um daqueles “meu tipo inesquecível” da tóxica revista Seleções. Ele era o amigo mais velho, e isso quer dizer: ele está sobre a cama, no 1º de abril de 64, agitado, movendo-se de um lado para outro de seu leito de capim seco. E me diz, e geme:

-- Tem umas cobrinhas subindo pelas minhas costas. – E bate com as mãos, para retirá-las. E mais se agita: - Eles vêm me pegar. Eles vão me levar.

-- Eles quem, Ivan?

-- Eles, eles – e eles se confundem às cobrinhas, que lhe sobem pelas costas.

Este Ivan não é Ivanovitch Correia da Silva. O Ivan de antes era um jovem de 19 anos, estudante de Química. Passava o dia todo a estudar, todos os dias. Com um método sui generis, como gostava de dizer. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da sua casa. E se punha a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. Como um Chaplin que fosse Carlitos. Se na vida da gente houver algo que nos perca, que mergulhe no abismo a natureza que já se acha perdida, ele contava, e contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que foi a sua perdição:

-- Na greve dos estudantes de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos colegas. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto.

E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em um brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem, viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra. Sorrindo em queda livre o meu amigo, na página da revista O Cruzeiro.

Por isso ele gargalha, por sair em edição nacional, por força do seu espírito moleque. Por isso ele se diz, esta é a lógica, dias depois:

-- Tem umas cobrinhas... Eles vêm me pegar!

O meu amigo da foto é quem me resolve problemas de matemática que não consigo resolver. Num deles, um de fração, ele, esperto, me esclarece o que a ambiguidade do problema não deixava ver: existe uma fração de vara enterrada no leito do rio, o corpo dela não vai só até a parte submersa, o todo vai até abaixo da areia depositada sob a água. Bandidos, não deixaram claro, assim é fácil, eu lhe digo. E a minha revolta para ele é um justo motivo de gargalhada. Mas me consola:

-- Na sua idade, eu também não resolvi esse problema.

Não sei se sou idealista, naquele mau sentido dos manuais simplificadores do marxismo, mas agora à distância eu percebo a dignificação que o espírito dá. O respeito que relações assim construídas funda. De passagem, lembro que fui amigo de indivíduos valentões, rápidos nos socos e de força, com quem jamais briguei. Ainda bem, considero. Mas o que eu destaco agora é que não havia espaço entre nós para a troca de insultos. Havia um respeito fundado nos objetivos a alcançar, ou melhor, a natureza das nossas relações não comportava um enfrentamento físico. Assim também com Ivan. Agora compreendo que em nossas relações ideais, ou idealizadas, ele me via como um menino precoce, como um menino de futuro.

Neste passo cabe dizer o que era o futuro em nossa condição. Ele era um dos seis filhos de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Seu Joaquim, para se dignificar, dizia-se marchante, mas apenas vendia carne de porco no mercado público de Água Fria. Simpatizante do velho Partidão, pusera nos quatro primeiros filhos nomes russos, porque à época a Rússia era a pátria da revolução. Eles se chamavam Pedro, Ivanovitch, Serguei, Andrei, Abrahão e Isaac. Os dois últimos coincidiam com o declínio das convicções do velho comunista – ele passara da revolução na terra para a salvação da alma, embora continuasse a sobreviver da venda da carne de porco. Lembro que da sua casa, feia, sem janelas, com fachada de pobre ponto comercial, vinha um permanente cheiro de torresmo. Lembro do cheiro abusivo, enjoado, repugnante que dava aquela coisa gordurosa, fartura de uma coisa só. Entre as fumaças da casa e o box no mercado, seu Joaquim conservara do antigo ardor revolucionário a fé, a paixão da crença no livro, a crença na educação. O estudo que levantaria as massas passou a salvar pessoas. Daí que seus filhos teriam que ser gente, não simplesmente carne, de porco e torresmo.

Naqueles anos de 64, um menino de futuro, naquele cheiro ativo de toucinho torrado, era um menino que gostava de ler, de perguntar, de argumentar, apesar de a sua imagem física não se assemelhar a qualquer futuro. Assim ele era porque o futuro eram os livros, e nos livros, era inquestionável, estava a força que erguera um povo das trevas, do feudalismo. Havia então um respeito mítico, místico, pelos livros. De futuro, até antes do golpe do 1º de abril, era também Ivanovitch. Dos seis filhos de seu Joaquim ele era o mais brilhante, porque, enquanto os demais eram “especialistas”, Ivanovitch era um universalista – gostava de matemática, de química, de física, de política, de filosofia, de romance, lia como um animal que tem fome de letras, e possuía um bom humor que era uma crítica ao mundo.

Por que as pessoas não são lineares? Por que os indivíduos que levam a vida a gargalhar tendem a terminá-la com amargura ou violência? Por que os indivíduos soturnos, sombrios, não são os que enfiam o cano na boca e estouram os próprios miolos? Não, o trágico quer os pletóricos, os plenos de verve e coração. Pois assim como o câncer, que dizem se alimentar da saúde vigorosa, o golpe de 1º de abril comeu o cérebro do meu amigo. E ele que era diurno, solar, tornou-se febril e noturno, naquele fim de tarde.

Cadê Ivan? - perguntei, na volta da padaria.– Cadê Ivan? – perguntei, porque eu queria com ele conversar os últimos acontecimentos, queria que ele me explicasse os tanques na rua, se Arraes ainda era governo, se os comunistas haviam perdido a batalha.

– Cadê Ivan?

-- Vem ver o teu amigo. Veja como ele está.

E sua mãe me conduziu até o quarto, que era uma divisória de tabique sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. E ela se pôs a chamá-lo, a dizer-lhe que eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar à realidade, realidade que ela não sabia ser o pesadelo a se inaugurar. Chamava-o, “Ivan”, para torná-lo ao Ivan de 31 de março, ao rapaz que era a esperança daquela família de seu Joaquim-da-carne-de-porco.

Ele ouviu, hoje sei, ele ouviu porque respondeu, para explicar o seu tormento:

-- As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.

Sei agora que naquele delírio Ivan não perdeu de todo a lógica, a razão. Será que enlouquecemos assim, num diálogo entre a desrazão e a razão? Vejam, e nesta manhã em que escrevo me chega a voz de Nat King Cole cantando como naqueles anos, na tela do Cine Olímpia, do Cinema Império, ouço Nat arremedando o espanhol “adios, mariquita linda”, vejam, agora percebo: ele diminuía o tamanho das serpentes, para ter miríades delas a subir-lhe pelas costas. Vejam, havia uma incompatibilidade de áreas físicas de suas costas para as serpentes normais, em grande número. E por isso ele as diminuía ao tamanho de se verem de microscópio, que lógica infernal, como eram micros só ele as via! Meu amigo delirava e, para ele, para mim, último consolo, perdia a razão, mas não perdia a inteligência.

Muitos anos depois eu o revi. Estava mais largo, obeso, imenso, com os gestos lentos de um drogado. A face, sem acusar reação, só olhos mortiços, distantes, que não me reconheceram. Ele passou ao largo de mim como um hipopótamo sem sombra, como um elefante sem orelhas, sem tromba, sem dentes passaria, só a grande massa de carne...
  
Em 16 de outubro de 2010, fiz a última atualização desta memória sobre meu amigo Ivan Ivanovitch:

“A realidade sempre é infinitamente mais cruel que o narrado. Recebi hoje na fila do supermercado a notícia de que Ivan falecera há um ano. Sem a consciência.”

Texto enviado pelo autor

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contosem Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Pepe Escobar – “Irã e Europa, até que a morte nos separe”


25/5/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pepe Escobar
Quer dizer então que a grandiosa estratégia da política externa do governo Barack Obama, de tentar demonstrar a quadratura do círculo nas duas frentes (tentar obter um acordo nuclear com o Irã e, simultaneamente, repor nos trilhos a economia da Eurozona), afinal deslanchou. Só não se sabe para aonde (Ver “Pepe Escobar: Guerra e cheeseburgers” de 22/5/2012).

Nem Zeus sabe. Todas as discussões da semana passada em Bagdá e Bruxelas só fizeram empurrar a bola cada vez mais na direção de Moscou e de Paris/Berlin.

A história em Bagdá

Conselho de Segurança da ONU
A muito esperada reunião dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU – EUA, China, Rússia, Grã-Bretanha e França, “mais” a Alemanha (P5+1) – com o Irã, em Bagdá, pelo menos produziu um resultado: uma terceira rodada de negociações em Moscou, mês que vem.

Nem poderia ser diferente. Um P5+1 rachado (de um lado, EUA e Europa e, de outro, os países BRICS, China e Rússia) queria que o Irã parasse completamente de enriquecer urânio a 19,75% – apesar de o Irã ter pleno de direito de fazer esse enriquecimento, como signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Em troca, o P5+1 ofereceu aliviar (pouco) o pacote de sanções, permitindo que os EUA vendam ao Irã peças de reposição para aviões e uma vaga “assistência” para desenvolver o setor de energia solar no Irã.

Conversações de Bagdá - Irã  e P5+1
Teerã não mudou um milímetro na posição inicial. Para ser considerada, a proposta do P5+1 teria de ser “significativamente revista e reformada” – segundo informe da agência de notícias IRNA. O principal objetivo do Irã, nessas negociações, é aliviar as sanções do Conselho de Segurança. Para a liderança iraniana, há diferença bem demarcada entre a ONU como um todo, e a muralha de desconfiança que envolve qualquer governo dos EUA. Rússia e China apoiam os iranianos.

Teerã até aceita, em princípio, a ideia de receber do exterior o suprimento de urânio enriquecido a 19,75% de que precisa para produzir combustível para seu reator de uso médico. E talvez até aceite que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) inspecione a base militar em Parchin (embora a AIEA não tenha competência para tanto).

Mas o ponto chave ainda é que o grupo P5+1 reduziu a poeira o Tratado de Não Proliferação. O mantra é sempre o mesmo, repetido desde 2006: Teerã tem de suspender qualquer tipo de enriquecimento de urânio. E a exigência tem sido imposta a ferro e fogo, mediante violentíssimo bloqueio financeiro, cujo objetivo principal é paralisar a economia do Irã, impedindo que o país venda petróleo através do sistema bancário internacional. Dizer que é ação injusta, é dizer escandalosamente pouco.

É quando entra em cena a União Europeia (UE) – com sanções extra e bloqueio ao petróleo, que, em teoria, entrarão em vigor dia 1º/7, que ultrapassam as sanções impostas pelo Conselho de Segurança e, para começar, são virtualmente ilegais. E a isso se acrescenta uma lei norte-americana a entrar em vigor dia 28/6, que proíbe bancos estrangeiros de operarem em negócios para pagar por petróleo iraniano.

Mas o governo Obama precisa de algum acordo – seja firmado em Moscou, ou onde for. É essencial, para que Obama o apresente como triunfo de sua política exterior. – De fato, é muito mais substancioso, como ‘triunfo’, que o assassinato de Osama bin Laden em ataque em território do Paquistão (Ver “Pepe Escobar: Como Osama reelege Obama”, 24/5/2012. 

Se não chegarem a acordo algum, o governo Obama será forçado a pressionar ainda mais a União Europeia para que, até pelo menos o final de 2012, implante a proibição de empresas europeias darem cobertura de seguro a petroleiros que transportem petróleo iraniano (empresas da União Europeia controlam praticamente todo o mercado global de seguros marítimos). [1]

Quem sofre os efeitos das sanções? Não a liderança em Teerã – alvo do muito suspeito projeto de “mudança de regime”. A ditadura militar do mulariato permanece confortavelmente no poder, com o preço do petróleo acima de $54/barril (hoje, o petróleo cru Brent está custando cerca de $106; o West Texas Intermediate, $90 [2]. E Teerã está vendendo energia em várias moedas, do Yuan à Rúpia indiana; e está engajada também em venda “no varejo” a clientes – sobretudo na Ásia.

Moral da história: a União Europeia terá de esquecer para sempre esse absurdo bloqueio contra o petróleo iraniano, para evitar problemas graves para si mesma e, por tabela, para a economia dos EUA.

A história em Bruxelas

Merkollande
O festivo nascimento da Merkollande foi registrado pela revista semanal alemã Der Spiegel. [3] 

O novo presidente francês François Hollande arrastou multidão monstro à sua primeira conferência de imprensa depois de reunião de Cúpula da União Europeia – que começou bem depois da 1h da manhã e durou mais de uma hora, quando a chanceler alemã Angela Merkel falou, por cinco minutos, para sala já metade vazia.

O cenário está montado para um confronto de nível Gotterdammerung/ Crepúsculo dos Deuses wagneriano. Hollande fará o diabo para provar a Merkel que a ideia de lançar Eurobônus é a única saída para escapar do desastre da Eurozona.

Hollande insiste que seria útil para países que enfrentam hiper dificuldades, como a Espanha, por exemplo, em termos de economizar no pagamento de juros estratosféricos e poder usar o dinheiro em investimento produtivo. Espanha, Itália, Irlanda e Áustria apoiam Hollande.

O argumento de Merkel é o argumento da Troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional): Eurobônus violam a lei da União Europeia. Suécia, Finlândia e Países Baixos apoiam Merkel. Hollande admite que os tratados da União Europeia terão de ser reformados para acomodar os Eurobônus – o que implica enorme confusão, porque Grã-Bretanha e República Tcheca já rejeitaram uma proposta de emenda aos tratados, ano passado.

Toda a situação é imensamente complexa. Hollande admite que só num futuro distante se pode supor que alguns membros da União Europeia venham a aceitar os Eurobônus; alguns talvez aceitem, para objetivos muito específicos; e alguns, de saída, já rejeitam a ideia.

Joseph Stiglitz
Os banqueiros europeus, por sua vez, refugiam-se num difuso conceito de “sustentabilidade da dívida”: alguém tem de pagar, e são os assalariados. Pouco importa que Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel, esteja soltando fogo pelas ventas com “as pontificâncias” desses que, “no reino dos bancos centrais, ministros das finanças e banqueiros privados, arrastaram o sistema financeiro global até a beira da ruína e criaram toda a confusão”. [4]

Ninguém parece estar apontando em subsídios multianuais, dos países do núcleo da Europa para os países da periferia, a maioria dos quais são parte do Club Med. Ao mesmo tempo, todos sabem que jamais haverá placa de “Saída” na Eurozona. Mas, atualmente, o impensável já é pensável.

Seja como for, o que está sendo descrito como um orwelliano “pacote de crescimento” só será decidido na próxima reunião formal da União Europeia no final de junho – depois de dois eventos cruciais dia 17/6: as eleições parlamentares na França e a possível vitória da Coalizão Syriza, de esquerda, na Grécia, cujo principal ponto de plataforma eleitoral é renegociar o resgate que Berlin/Bruxelas impuseram ao país.

A verdade, vale registrar, é que os líderes políticos da União Europeia absolutamente não sabem o que fazer com a Grécia. Ao mesmo tempo em que querem acalmar o deus do mercado e dizem que a Grécia nunca deixará o euro, também ameaçam os gregos: “Se não votarem certo, serão expulsos do euro”. Não surpreende que o governo Obama esteja tomado de perplexidade. Comparado a isso, assassinar Osama foi mamão com açúcar.



Notas dos tradutores

[1] Sobre essa questão, ver matéria de atualização em 23/5/2012: REUTERS: “Japão pode garantir cobertura de seguro aos petroleiros que transportem petróleo iraniano”.

[2]Brent crude e West Texas Intermediate (WTI) são dois tipos de cotação: WTI é a cotação do petróleo comercializado na Bolsa de Nova York; aplica-se em geral ao produto extraído principalmente na região do Golfo do México; o Brent é comercializado na Bolsa Londres; aplica-se ao petróleo extraído no Mar do Norte e no Oriente Médio. O Brent é referência de valor mais usada no mercado europeu; e o WTI, no mercado americano. Mas as diferenças não são apenas geográficas. O WTI é cotação usada para petróleo mais leve e mais fácil de ser refinado (que, por isso, tem preço superior ao Brent)” [Nívea Terumi, O Estado de S.Paulo].

[3] 24/5/2012, Spiegel Online Internetional: Hollande Steals the Show from Merkel.

[4]13/5/2012, Joseph Stiglitz, Real Clear Politics: Rush to Austerity Will Doom Europe; Slate.