terça-feira, 23 de junho de 2015

CHINA E RÚSSIA, RÚSSIA E CHINA: O que pensam uma da outra


The Saker entrevista Jeff J. Brown
26/5/2015, The Vineyard of the Saker e Reflections in Sinoland
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Introdução do Saker:
Quando me preparava para publicar esta entrevista com Jeff J. Brown, recebi o seguinte e-mail de Larchmonter445:

Reunião de Segurança em Moscou. O conselheiro do Estado Chinês Yang Jiechi (segundo à esquerda) e o secretário do Conselho de Segurança da Rússia Nikolai Patrushev (segundo à direita) participam da 11ª rodada de consultas sobre segurança estratégica China-Rússia, em Moscou, Rússia, dia 25/5/2015.

Comentário de Larchmonter445: Yang, o homem de óculos à esquerda, ao lado da intérprete, é alto conselheiro para Política Externa e frequentemente opera como um segundo ministro de Relações Exteriores. Eles escondem a importância de Yang, falando de seu portfólio, mais do que de suas ações e interações. É um gênio das formações políticas. Vejo essa reunião como o cerne da próxima [reunião da] Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e das ações contra o Hegemon que esses mesmos coordenarão no Iraque, Síria, Mar Negro, Mediterrâneo e Pacífico, além de no Paquistão e Afeganistão. As reuniões em Ufa serão tremendas. OCX e BRICS.
Esses sujeitos sabem que estão num octógono com um dragão de Komodo (o Hegemon). A única saída é vencer. Se eles perdem, é o fim daquelas duas civilizações.
[fim do comentário].
Nesse contexto, acho que a entrevista abaixo é ainda mais oportuna e muito interessante. Agradeço imensamente a Jeff por ter aceito meu convite.
The Saker
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A Entrevista:
The Saker: Por favor, apresente-se e explique sua conexão com a China e sua experiência da China.
Jeff J. Brown: Aprendi ao longo dos últimos 61 anos, que desfazer os efeitos da lavagem cerebral exige muito esforço, humildade e coragem pessoal. Inspirei-me na leitura das jornadas de outros, que muito trabalharam até encontrarem a verdade. Desde então, distribuo o que tenho encontrado.
Fui criado em Oklahoma, EUA, nos anos 50s-60s. Perigo vermelho. Comunistas comem crianças. Abrigos antiatômicos. Professores ensinando “Quando virem o clarão, corram e se escondam”. O Sputnik. Corrida espacial. Kennedy (depois se descobriu que foi golpe de Estado). Vietnã. Nixon. Sexo, drogas ‘n rock ‘n roll. Passava metade do tempo na cidade, metade numa fazenda familiar. Dirigia trator, colhia o que se plantava, limpava bosta dos currais, ajudava ovelhas a parirem cabritinhos às 3h da manhã, frio de enregelar, montava a cavalo, caçava e pescava – e tudo isso marcou minha alma para sempre. Acontece com todos que sujam as mãos e vivem da arte e da ciência da agricultura.
Formei-me na Estadual de Oklahoma (1976) e na Universidade Purdue (1978) em ciências veterinárias, achando que voltaria para casa e viveria da fazenda. Mas em Purdue havia muitos brasileiros que me adotaram e ensinaram-me português, ocasião em que descobri que tenho uma capacidade especial, inata, para aprender línguas (o que acontece sempre mais depressa, se o sujeito estuda muito). Parti para o Brasil, pensando em me converter em plantador de soja. Mas não achei quem me emprestasse dinheiro para o investimento inicial. Em retrospectiva, foi melhor assim. Se tivesse ficado por lá, com certeza estaria até hoje explorando brasileiros, derrubando florestas e destruindo o meio ambiente, ao mesmo tempo em que enriqueceria muito, à custa dos acima referidos. Quanto mais penso, mais me convenço que não é o que eu queria para meu tempo nesse Planeta Terra.
O Brasil aguçou meu apetite por conhecer o mundo. Apresentei-me como voluntário ao Peace Corps, na Tunísia, como agente de treinamento agrícola (1980-82) e aprendi bom árabe, falar, ler e escrever. Essa experiência levou-me para o mercado internacional de produtos agrícolas na África e no Oriente Médio (1982-90). Nesses dez anos, aprendi francês, conheci minha esposa parisiense em 1988 na Argélia, de onde, em 1990 partimos para a China.
Vivemos na China de 1990 a 1997, durante o que chamo “Dias do Caubói Deng no Velho Leste”. Aprendi ótimo mandarim e recebi a cidadania francesa. Continuei a trabalhar como vendedor (o que me permitiu viajar muito por grande parte da China rural) e depois construí e gerenciei a primeira padaria McDonald na Terra Central. Nossas duas filhas nasceram na China. Desnecessário dizer que esses sete anos são parte inesquecível da nossa vida.
Depois, minha esposa e eu tivemos e administramos um negócio de varejo na Normandia, France (1997-2001). E voltamos para Oklahoma, de onde eu saíra há tanto tempo, para viver mais perto dos meus pais. Cheguei aos EUA no primeiro voo (United, de Paris) que pôde entrar no espaço aéreo dos EUA, poucos dias depois do 11/9 (que hoje já se sabe que foi golpe de Estado sob falsa bandeira [ing.: false flag attack]). Que modo simbólico de voltar para casa, antes de acontecer tudo que depois aconteceria.
Os EUA de onde eu partira e os EUA para os quais voltei eram dois países diferentes. Foi um choque ver o quanto tudo parecia degradado e arruinado, a miséria pulsando logo abaixo do chão, todos tão superficiais e autocentrados, e muito, muito reacionários e isolados. Só comprar-comprar-comprar-eu-eu-eu. Por causa de nossas experiências ecléticas, minha mulher e eu parecíamos seres exóticos, criaturas de outro planeta. Nunca nos encaixamos bem, mas o tempo com os velhos da família foi maravilhoso. Construímos um grande negócio de compra e venda de imóveis e perdemos tudo que algum dia tivemos nesse mundo em 2008, graças à implosão da classe média na operação “Salvem os Grandes Bancos”. Os planos que tínhamos de dar aulas nos anos de aposentadoria foram rapidamente antecipados. Começamos a trabalhar em Oklahoma City naquele mesmo ano, dando aulas em escolas urbanas de grupos minoritários.
Em 2010, voltamos para Pequim, para dar aulas em escolas para estrangeiros, e levamos conosco nossa filha menor. Tanto quanto fora deprimente voltar aos EUA em 2001, foi deslumbrante e surpreendente rever a China, depois de 14 anos. Uau!
Queria tanto partilhar o que vi lá acontecendo à nossa volta, que iniciei um blog, ao mesmo tempo em que me dedicava a extensas pesquisas. Então, parti para minha viagem solo pela China, no verão de 2012, para escrever um diário a ser publicado. Daí resultou meu primeiro livro, 44 Days, cujas viagens são realmente uma metáfora sobre descobrir a China na história e nos eventos atuais, e como tudo isso tem a ver com o Ocidente.
Também comecei a escrever postados no blog Reflections in Sinoland, que serão reunidos num e-book, a ser lançado no verão de 2015. Minhas experiências com ensino e aprendizado de línguas inspiraram-me a desenvolver um método para ensinar inglês, que acaba de ser publicado, Doctor Write Read’s Treasure Trove to Great English.
Depois que Xi Jinping foi eleito Presidente da China, eu vivia, como vivo até hoje, tão impressionado com o homem – que chamo com ironia de Baba Pequim – que estou escrevendo um romance de ficção histórica, Red Letters – The Diaries of Xi Jinping [Cartas Vermelhas – Os diários de Xi Jinping], planejado para ser lançado como e-book no verão de 2016. Obriga-me a uma quantidade gigantesca de pesquisas, mas estou vivendo o melhor tempo literário da minha vida.
Meu arco pessoal de aprendizado e ilustração sobre como o mundo realmente funciona vinha seguindo uma lenta curva hiperbólica, até que repentinamente tomou direção para cima em passado muito recente. Em 1972, se meu número de alistamento tivesse sido sorteado, eu provavelmente teria partido patrioticamente para o Vietnã. Naquele ano, votei em Richard Nixon, não em George McGovern. Trabalhar e viver com camponeses durante dois anos no Peace Corps abriu meus olhos para como os outros 80% do mundo vivem, bem como os oito anos de viagens pela África e Oriente Médio.

Trabalhando com agricultura, meu trabalho levou-me para fora das grandes cidades e para o interior de cada país por onde viajei, o que me fez ver a África e o Oriente Médio “reais”. Foi educativo humilhante.
Ao mesmo tempo em que via e sentia as desigualdades e as injustiças, eu ainda vivia com pés bem fincados nos mitos da superioridade moral dos EUA, de sua divina perfeição e eterna correção. Só quando retornei aos EUA em 2001 e vivi no Mundo Bush por nove anos é que comecei a perceber a podridão do império. Mas mesmo assim, ainda me agarrava à nobreza do processo “democrático” e ao consenso que a mídia inventa e nunca para de repetir e repetir. Eu ainda acreditava, naquele tempo, que o New York Times e The Economist eram a vanguarda do mais respeitabilíssimo jornalismo.
Foi quanto voltei à China em 2010 que comecei a ter ideia mais clara das coisas. Desde então, consumi milhares de horas de estudo sobre genocídio, impérios, colapso social, guerra, capitalismo, colonialismo, socialismo, comunismo, fascismo, golpes, estado profundo, etc..
Já desistira dos EUA, mas, com dupla nacionalidade francesa-norte-americana, ainda me agarrava à ilusão de que a Europa, com seu socialismo, Carta dos Direitos Humanos da ONU e as lições aprendidas de duas guerras mundiais seria a derradeira esperança para uma recuperação moral do mundo. E foi quando, como um Furacão Katrina ampliado, veio o genocídio que a junta ocidental perpetra na Ucrânia. Acompanhei durante meses com horror mórbido (e continuo a acompanhar) a cara horrenda não só do fascismo norte-americano, mas também do fascismo europeu. Meu mais amargo desgosto, toda a minha desilusão com o meu lar ancestral, a Europa, foram expostos, tristemente, numa coluna que escrevi em setembro de 2014.
Assim sendo, tudo está hoje bem claro, para mim. O colonialismo ocidental, as revoluções e os golpes dissimulados por trás de falsas bandeiras, e as revoluções coloridas, nada disso nunca parou desde 1492. Os métodos e instrumentos de desestabilização, exploração e extração de recursos foram, apenas, adaptados. O Império, com seus capitalismo, guerra e fascismo, é uma Hidra de três cabeças, e é insaciável.
Há luta titânica pela alma da humanidade, nossa sobrevivência como espécie nesse século 21: o Império Ocidental versus China, Rússia, BRICS, Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e o Movimento dos Não Alinhados (MNA).
Trata-se de Xi, Putin, Maduro, Castro, Correa, Kirchner, Zuma, Afwerki e todos os centenas de líderes mundiais que o ocidente assassinou ou depôs, versus Obama, Cameron, Hollande, Merkel, Abe e as centenas de sátrapas dos mal-assombrados quartéis do poder imperial.
O mundo precisa de mais um milhão de vozes como The Saker, Pepe Escobar, André Vltchek, Kevin Barrett, Rory Hall, Dave Kranzler, Greanville Post, e os muitos outros autores e jornalistas envolvidos nessa luta mundial pela sobrevivência da humanidade. É uma honra emprestar minha voz, que fala do ponto de vista do povo chinês, que chamo, com ironia, de Baba Pequim, e dos governantes chineses.
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The Saker: Sabe-se muito pouco no Ocidente sobre Xi Jinping (Larchmonter445 enviou-me um grosso volume intitulado “On Ruling the State” com 79 artigos políticos redigidos por Xi, mas, que eu saiba, não está traduzido ao inglês). Como você descreveria o homem, suas ideias, seus objetivos? Que tipo de homem é Xi?
Jeff J. Brown: Se você é membro da elite ocidental, é militar a serviço delas e/ou do estado profundo em que aquelas elites reinam, você deve começar a preocupar-se muito, agora que Xi Jinping está no poder (vale o mesmo para Putin, na Rússia). Para começar a compreender Xi, ajuda se se conhece o pai dele, Xi Zhongxun, porque Xi é árvore desse tronco.
Xi Zhongxun foi revolucionário empenhado desde a infância. Esteve preso aos 14 anos, por tentar envenenar uma professora que ele e os colegas consideravam lacaia dos colonialistas estrangeiros. Alistou-se no Partido Comunista da China ainda na prisão, em 1928, com apenas 15 anos. Adolescência auspiciosa.
Xi Zhongxun foi também militar Comandante no Exército Popular da China, conhecido por excepcionais capacidades de organização e administração. Foi quem organizou as operações na província Shaanxi, quando da chegada de Mao & Co. ao final da Longa Marcha em 1935. Sem ele, o Exército Popular da China talvez não tivesse conseguido derrotar os fascistas japoneses e do Partido Nacionalista (Kuo-Min-Tang, KMT) e expulsar os colonialistas ocidentais, rumo à libertação nacional que viria em 1949.
Xi-Pai e a mãe de Xi, Qi Xin, foram inquebrantavelmente comprometidos com o Partido e com a Revolução Comunista chinesa. O casal fez sacrifícios pessoais hercúleos e muito amargos, pela China e pelo Partido. Nunca desistiram, ao longo de toda a vida, de defender o socialismo para as massas chinesas, apesar de terem sido expurgados, de o pai ter sido preso e de a mãe ter sido mandada para uma fazenda de trabalhos forçados (1962-1976).
O pai de Xi sempre foi conciliador e negociador bem sucedido na China Ocidental, antes e depois da libertação em 1949, com tibetanos locais e uigures muçulmanos. Foi o pai de Xi que Deng Xiaoping enviou à Província Guangdong, do outro lado da fronteira de Hong Kong, em 1978, para dissipar o descontentamento que crescia entre os locais, e que estavam atravessando a fronteira, para a colônia britânica, em busca de trabalho e de outro estilo de vida. Foi do pai de Xi – não de Deng – a brilhante ideia de criar pequenas Hong Kongs dentro de Guangdong, onde as massas pudessem trabalhar e realizar seus sonhos. [1] E assim, Shenzhen e as outras Zonas Econômicas Especiais [ing. Special Economic Zones (SEZs)] foram confirmadas pelo Congresso Nacional do Povo, pelo Comitê Central, pelo Politburo e por Deng. Deng & Co. não tinham dinheiro, mas tinham poder político para tornar legais as Zonas Econômicas Especiais de Xi-Pai. O resto é história.
O pai de Xi também foi homem excepcionalmente erudito e culto. A casa onde Xi foi criado era repleta de livros. Xi Jinping foi mandado para o interior do país em 1969, para trabalhar como camponês por sete anos, durante a Revolução Cultural. Xi trabalhou sem sapatos, curvado sobre as sementeiras, aprendeu a viver entre pulgas e percevejos. E aprendeu muito. Chegou lá com caixas cheias dos livros de seu pai. E leu muito, às vezes à noite, em voz alta sob um lampião de querosene, para camaradas camponeses ainda iletrados.
Hoje, Xi Jinping é provavelmente um dos governantes mais cultos e ilustrados do mundo. Nunca parou de ler e reler clássicos russos, gregos, franceses, alemães, ingleses, espanhóis e norte-americanos (ficção e não ficção), todo o enorme cânon dos trabalhos chineses, e é muito versado nos escritos marxistas-leninistas-maoístas. Entre 1998 e 2002, quando foi governador de Fujian, Xi completou mais uma pós-graduação em Teoria Marxista e Direito. Diz que ler e estudar são suas duas grandes paixões. (...)
Nenhum outro moderno líder chinês, com a única exceção de Mao, jamais soube usar tão bem a comunicação pública, como Xi. Como já disse em entrevistas de rádio e por escrito inúmeras vezes, o ocidente não tem resposta para Xi Jinping (nem para Putin, de fato).
O mundo já está oficialmente na Era Xi – e com toda a justiça pode-se acrescentar: também na Era Putin. Conto toda essa história, do nascimento de Xi até hoje, em Red Letters – The Diaries of Xi Jinping (incluindo encontros e telefonemas entre Putin e Xi).
The Saker: Nós dois, Larchmonter445 e eu, vemos o novo relacionamento que está sendo construído entre China e Rússia como uma simbiose. Larchmonter445 fala de uma “dupla Hélice” e eu chamo de “simbiose”.
Em minha opinião, essa relação simbiótica entre dois impérios/ civilizações/ superpotências é evento único na história e, provavelmente, dos mais importantes eventos na história do mundo. Você acha que estamos exagerando a importância do que Putin e Xi puseram em movimento, ou não? Se estamos, como você caracteriza e avalia o tipo de relacionamento que está sendo construído entre Rússia e China?
Jeff J. Brown: Embora claramente venham de backgrounds e civilizações diferentes, Putin e Xi têm muito em comum, filosoficamente, porque muitos dos valores de que falei acima transcendem culturas. A chave é se homens que lideram seus povos escolhem seguir aqueles valores ou não, e o chamado Ocidente claramente não os segue, pelos últimos 500 anos. Acho que é claro que Xi e Putin estão tentado modificar a dinâmica sórdida do colonialismo ocidental e estão trabalhando ombro a ombro para fazer o século 21 ser diferente do passado.
Putin e Xi obviamente gostam um do outro e se respeitam como seres humanos e como governantes, mas os dois países e os respectivos povos também têm muita coisa em comum. Sim, houve genocídios na Rússia e na China, na expansão pela Sibéria e nas bacias dos rios Amarelo e Yangtze respectivamente, para criarem suas fronteiras “naturais”. Mas exceto quando a China colonizou o Vietnã de cerca do ano 100 aC, ao ano 900 dC, nenhum país impôs-se pelo planeta como fizeram a Europa, EUA e Israel, devorando, como gafanhotos, tudo que encontrassem em seus caminhos de colonização e de ocupação.
China e Rússia também têm fundamentos espirituais diferentes do ocidente católico/ protestante/ judeu, a China com sua religião “3 em 1” e a Rússia com a Igreja Ortodoxa. Sim, a Rússia tem mãos sujas por ter colonizado a China, com os ocidentais, durante os séculos 19 e 20, mas os dois países podem solidarizar-se entre eles por terem sido invadidos por mongóis, japoneses e europeus. Os dois têm impactos imensos na filosofia, na literatura, nas artes, na música mundiais. Os dois países falam línguas não latinas, difíceis de aprender para estrangeiros, o que torna mais difíceis as conexões com o resto do mundo. Ironicamente, seguidamente são forçados a usar um idioma europeu imperial para comunicar-se também entre russos e chineses.
Ao apreciar todas essas características partilhadas, é interessante especular sobre o que teria acontecido se Mao e Khrushchev não tivessem tido aquela infame e afinal desastrosa cisão nos anos 1960. Pense nas possibilidades que haveria para o mundo, se os dois se tivessem aliado contra o ocidente, sobretudo hoje, quando já se sabe que Khrushchev foi um Gorbachev precoce, que trabalhou incansavelmente com John Kennedy por trás do palco, pela paz mundial, até o golpe de estado que culminou no assassinato na Praça Dealey, três anos depois.
Por tudo isso, a aliança Putin-Xi, Rússia-China, não é anomalia alguma. Simplesmente ficou congelada por 55 anos.
The Saker: A imprensa-empresa ocidental simplesmente não noticia uma linha sobre a nova Parceria Estratégica Russo-Chinesa (PERC) [orig. Russian Chinese Strategic Partnership (RCSP)] e quando alguma notícia aparece, eles sempre olham a árvore para não ver a floresta, quero dizer, falam de contratos entre os dois países, exercícios militares conjuntos, e até alguns comentários sobre uma “reaproximação” entre os dois países. Mas a vastíssima e dramática implicação de os dois países estrarem na essência se unindo como irmãos xifópagos em termos econômicos e militares jamais é discutida no ocidente. Quanta cobertura há na China sobre essa simbiose? A maioria dos chineses sabem que Xi e Putin basicamente tornaram interdependentes os dois países?
Jeff J. Brown: Você pode falar com qualquer chinês na rua, e eles sabem o que se passa. Rússia bom. EUA maus. Nesse momento, a Europa Ocidental está ganhando algum espaço na mídia. Como Putin & Co., acho que Baba Pequim também espera que a Europa, especialmente a Alemanha, rompa as cadeias daquela escravização demoníaca sob o tacão do Tio Sam, e saia do lado escuro da força. Isso ainda está aberto a discussão, sobretudo depois dos vergonhosos crimes contra a humanidade que se cometem na Ucrânia, agora na Macedônia e na Sérvia, e a operação Gládio, e OTAN e Grécia e serviços secretos EUA/ Grã Bretanha/ Alemanha (NSA/MI6/BND) – será que esqueci alguém?
Cada vez que Putin e Xi conversam pelo telefone, cada reunião dos Ministros de Relações Exteriores, Sergey Lavrov e Wang Yi, cada autoridade russa que vem à China em visita oficial, cada vez que Baba Pequim manda alguém à Rússia para um tête-à-tête, cada vez que um acordo é assinado – todos esses eventos são matéria de primeira página na China.
O grande desfile da Vitória, em Moscou, dia 9 de maio, pelos setenta anos da Grande Vitória, com Xi sentado à direita de Putin, assistindo o Exército Chinês a marchar pela Praça Vermelha, foi o ápice, em um ano e meio, do trabalho de Baba Pequim implantar na consciência dos chineses que todos são aliados com os russos, na vitória sobre o fascismo.
Essa nova consciência alcançará píncaros inimagináveis em Pequim, dia 3 de setembro de 2015, quando Putin estará ao lado de Xi na Praça da Paz Celestial, e a China comemorará os seus 70 anos, e um novo feriado nacional será criado: “Dia da Vitória na Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa e o Fascismo Mundial”.
Ao incluir o nome do Japão na definição do novo feriado nacional, Baba Pequim está praticamente dizendo aos líderes ocidentais que eles não são bem-vindos. Com isso demarcarão o papel único que China e Rússia (não algum “ocidente”) tiveram na história da 2ª Guerra Mundial. De fato não é celebração da Rússia, nem é celebração da China: é a celebração conjunta de uma vitória coletiva de Rússia e China e de seus povos. Não se pode subestimar a importância desses dois desfiles, a exibição massiva de força e solidariedade militares, na cara do Império Ocidental.
The Saker: Não há dúvida possível de que os EUA fizeram todo o possível para isolar e antagonizar a Rússia. Quanto à Europa, mostrou convincentemente à Rússia que aqueles países não passam de colônias norte-americanas, sem opiniões ou políticas próprias. Assim sendo, o redirecionamento russo para o leste, o sul e o norte é bem fácil de explicar. Mas o que motivou a China a unir-se à Rússia nessa relação simbiótica? Os EUA não teriam mais a oferecer à China que a Rússia?
Jeff J. Brown: Ambos, governantes russos e chineses conhecem o livro clássico do almirante Alfred Mahan: The Influence of Sea Power upon History, 1660-1783 (1890) [A influência do poder marítimo sobre a história]. A tese do almirante é simples: controle o alto mar em torno de Rússia, China e do resto da Eurásia/ Oriente Médio, e você controla os recursos humanos e naturais do maior continente do planeta. Então, na Rússia do pós-1990 e com o crescimento econômico meteórico da China, os dois lados viram a luz (na verdade, até Putin ser eleito Primeiro-Ministro/ Presidente em 1999-2000, era Nursultan Nazarbaev do Cazaquistão quem estava lendo Sea Power).
Primeiro separadas, depois juntas, Rússia e China informalmente logo escreveram seu manifesto eurasiano: o Império Ocidental pode controlar os altos mares à nossa volta, mas não pode controlar nossa massa de terra continental, a menos que o deixemos fazê-lo. Assim, organizações chinesas como a Organização de Cooperação de Xangai, Iniciativa Cinturões e Estradas [orig. Belts and Roads Initiative (B&R)], e as russas Organização do Tratado de Segurança Coletiva e União Econômica Eurasiana tornaram-se parte e item da visão e do léxico de toda a Ásia.
Estrangeiros acham engraçado e riem quando digo que os chineses simplesmente não gostam do ocidente. E com os EUA como a cabeça de cobra do Império, Tio Sam caiu para o último lugar da lista. Os chineses compreendem a história muito melhor que os ocidentais. Eles nunca esquecerão o Século de Humilhação, 1840-1949, imposto a eles quando Grã-Bretanha e EUA engajaram-se no que se chama “a mais duradoura e maior empresa criminosa global da história do mundo” – e escravizaram o povo chinês com ópio. Em seguida, com as potências colonialistas europeias, passaram a esvaziar as reservas de prata do país e a roubar todos os recursos da China, produtos agrícolas, minérios, florestas e recursos humanos.
Quando o tráfico de escravos foi abolido nos EUA em 1865, foram os norte-americanos que levaram para a China esse modelo de negócio fabulosamente lucrativo. Na China, navios com bandeira dos EUA sequestraram e escravizaram estimados um milhão de coolies chineses, que foram vendidos em todo o novo mundo. Esse tráfico vergonhoso só parou em 1874.
Durante a 2ª Guerra Mundial, os norte-americanos subornaram o corrupto Chiang Kai-Shek com bilhões em dinheiro e armas (muitas das quais ele roubou ou vendeu aos japoneses), para lutar contra Mao e o Exército Popular da China. Então os EUA cuidaram para que Chiang e sua máfia KMT chegassem em segurança a Taiwan, para fazer ali a China “real” do ocidente.
Desde a libertação em 1949 até o dia de hoje, os EUA tentaram ininterruptamente desestabilizar a derrubar o governo comunista da China, a partir de Taiwan, do Tibete, de Xinjiang, de Burma, do Vietnã, do Japão, da Coreia, e por aí vai. Do ponto de vista dos chineses, o que haveria no ocidente de que eles pudessem gostar, especialmente nos EUA?
The Saker: Recentemente você gravou três programas de rádio (ouve-se em inglês; : Programa 1; Programa 2 e Programa 3 sobre China e Rússia) Você pode, por favor, resumir o que você crê que os chineses desejam de sua relação com a Rússia no médio e no longo prazo? Mesmo que os países não se fundam para constituir uma confederação, você acredita que a China se interessaria por associar-se à União Eurasiana ou por negociar algum tipo de tratado de fronteiras abertas com a Rússia?
Jeff J. Brown: Já me referi acima a OTSC, UEE, OCX e “Cinturões & Rotas”. As duas primeiras são inspiradas pela Rússia, as duas últimas, pelos chineses. A primeira de cada par é orientada para segurança e estratégia. A segunda, é de natureza comercial. Durante sua viagem em maio/2015 a Moscou, para encontrar-se com Putin, Xi parou para reunir-se com Nazarbaev no Cazaquistão e, na sequência, com o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko. A mídia chinesa disse que todos conversaram sobre sintetizar todas essas organizações numa única organização-mãe. Obviamente, os dois lados querem manter a capacidade de influir, mas tenho confiança de que acharão o ponto de equilíbrio. Eles têm de encontrar. A 6ª Frota dos EUA está estacionada junto às praias do leste de China e Rússia, os EUA estão militarizando o Japão, ameaçando as duas, para nem falar dos mísseis da OTAN todos apontados diretamente da Europa.
Quanto a contatos e relações de fronteira, ferrovias e pontes estão abertas para livre trânsito em toda a fronteira sino-russa. Ainda essa semana, China e Rússia propuseram uma linha de ferrovia de alta velocidade entre a província Jilin (na Mandchúria) e Vladivostok. O maior projeto de engenharia da história humana, o sistema de gasodutos e oleodutos entre Rússia e China, já está sendo construído. Tudo isso continuará a intensificar-se e diversificar-se. Embora eu não creia que venhamos a ter um Tratado de Maastricht, com o livre movimento de cidadãos de um país para o outro, antevejo o dia em que Rússia e China terão uma fronteira como Canadá e EUA: nada de visto, mostre o passaporte e passe pela aduana, de um lado para outro. Acho que a Mongólia será também eventualmente incluída no negócio.
The Saker: Rússia e China conduziram exercícios militares sem precedentes, e oficiais chineses ganharam acesso aos postos de comando estratégico da Rússia. Almirantes russos e chineses apresentaram relatórios conjuntos a Xi e Putin durante uma videoconferência organizada pelos militares russos. A Rússia enfrenta agora ameaça direta de EUA/OTAN na Europa, e a China está ameaçada pelos EUA, do Japão, Taiwan, Coreia e na disputa pelas ilhas Spratlys. Se a coisa realmente chegar a guerra de tiros entre EUA e Rússia ou entre EUA e China, você acha que Rússia e China se interessarão por envolver-se e apoiar ativamente a parceira, mesmo contra os EUA?
Jeff J. Brown: Excelente pergunta, Saker. Se os EUA atacarem primeiro seja China seja Rússia, será provavelmente a 3ª Guerra Mundial, e a humanidade deixará de funcionar como a conhecemos. Enquanto não for anunciado algum tratado de aliança, não temos como saber o que Rússia e China comprometeram-se secretamente a fazer. É também possível que China e Rússia tenham feito saber aos canais competentes da OTAN alguma coisa como “Se mexerem com um de nós, mexem com os dois”. Sempre penso que pode já ter acontecido bem assim, dada a relutância dos EUA em meter o pé no acelerador por conta da Ucrânia e no Mar do Sul da China. China e Rússia juntas nem precisarão disparar um tiro. É só usarem suas tecnologias e truques para neutralizarem os satélites, radares, comunicações, sistemas de computadores etc., da OTAN. Ou qualquer dos dois países pode começar a vender as montanhas de papéis que têm, do Tesouro dos EUA. Verdade é que qualquer dos dois países podem já ter dito a Obama que se ele exagerar, haverá, sim, queima pública daqueles papéis, vendidos a preço de banana. Como disse Napoleão Bonaparte, naquela frase memorável: quem manda no jogo é o credor.
E se a Rússia sentir que é necessário intervir militarmente no Donbass, ou se os norte-americanos conseguem convencer japoneses ou Taiwan a fazer alguma coisa realmente estúpida? Ou o já testado verdadeiro meio para manipular a história: um grande, gordo ataque de falsa bandeira, um de cada lado, para alcançar o resultado desejado? Acho que só descobriremos pela via mais difícil.
Mas pense do seguinte modo: as organizações Cinturões & Rotas/OCX e UEE/OTSC e todas as suas tremendas sinergias e gigantescos potenciais simplesmente derretem, se ou a China ou a Rússia cair ante o Império Ocidental. Se você fosse Putin ou Xi, você ficaria lá parado, e deixaria o século 21 e a humanidade descerem pelo ralo?
Mais uma vez, os dois envolvidos, será a 3ª Guerra Mundial e sabemos como os livros de história serão provavelmente escritos, se sobrar alguém para escrevê-los. O que é mais assustador nessas ponderações é que enquanto Putin e Xi mantém a cabeça no trabalho, cuidando de negócios pelo continente asiático e por todo o planeta, os EUA estão absolutamente enlouquecidos e fora de controle. Tio Sam está como um maluco daqueles cheios de N-metilanfetamina. Tenho calafrios.
The Saker: É bastante óbvio que ambas, China e Rússia, precisam de uma desdolarização da economia mundial, mas não querem disparar colapso assim tão brutal que pode abalar a própria economia delas. É especialmente verdade no caso da China, pesadamente investida na economia dos EUA. A Rússia está tentando afastar-se sem tumultos dos mercados centrados no dólar. O que a China está fazendo? Você acredita que haja planos na China para “des-Walmartizar” a economia chinesa, ou é ainda muito cedo para isso?
Jeff J. Brown: Encaremos os fatos, Saker. Quando a economia do dólar norte-americano desabar, será também como um gatilho para a 3ª Guerra mundial. Será cataclismo dessa magnitude. E quando acontecer, Israel sabe que poderá começar a contar os dias até que as portas de Jerusalém mudem de mãos pela 45ª vez, naquela cidade de 5 mil anos de história. Israel está, no mínimo, tão totalmente fora de controle quanto os EUA, se não mais. Suas 200-300 ogivas nucleares jamais declaradas com certeza fariam da Mãe Terra um amontoado de lixo, e o que quer que façam com certeza disparará a 3ª Guerra Mundial, com todos os efeitos deprimentes que a acompanharão.
Por tudo isso, acho que Baba Pequim, assim como todo o resto da humanidade, Rússia inclusive, estão querendo que o castelo financeiro de fumaça, espelhos e cartas chamado “ocidente” permaneça em pé pelo maior tempo possível. Por quê? Porque como formigas armazenando para o inverno, os BRICS, a CELAC, o MNA e todas das demais coalizões anti-império trabalham febrilmente para organizar, planejar, implementar, encontrar e instituir o maior número possível de entidades, acordos e sistemas, para tentar suavizar o eventual Armageddon econômico.
Bons exemplos disso são o tratado russo anti-SWIFT, a organização UCRG (anti-três grandes agências de crédito), o novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), o Banco del Sur, a organização PetroCaribe e tantas e tantas outras. Só hoje, a China anunciou que está criando o maior fundo-ouro do mundo (US$ 16,1 bilhões), ao qual já aderiram 60 países, para desenvolver mineração e comércio de ouro simultaneamente – e onde seria? – nas Rotas da Seda, por dentro do continente asiático, que o fantasma do almirante Mahan só pode sonhar com controlar.
Quanto a des-Walmartizar a economia chinesa: ironicamente, para superar a economia baseada em exportações e investimentos, Baba Pequim está fazendo tudo que pode para aumentar o consumo interno. Ambientalmente, com 1,3 bilhão de cidadãos, é pensamento que dá calafrios, se os chineses tentam imitar o modelo de glutoneria dos EUA, superconsumo de porcos Hampshire hog. Mas as palavras chaves do Sonho Chinês de Xi são “sociedade socialista moderadamente próspera”. Acredito que Xi, homem formado para a frugalidade e a simplicidade, acha o consumismo norte-americano de “compre até desmaiar” uma espécie de fim de semana em Sodoma e Gomorra. Depois de 35 anos da Era Deng, com aquele materialismo grosseiro, de estilo norte-americano, Xi está definindo uma nova via filosófica para a nação chinesa, com o mantra muito budista de “menos é mais”.
Um jet-ski, uma Harley um SUV gigante na garagem para três carros de sua casa não garantem a ninguém paz e felicidade. Nem se fossem o último modelo da BMW ou de bolsas Hermès.
The Saker: E a Índia, em tudo isso? Parece que na Índia ainda há muita desconfiança sobre os verdadeiros motivos dos chineses, não só sobre o “Tibete Sul” e questões de fronteiras, mas também sobre o apoio dos chineses ao Paquistão e suspeita generalizada de que a China pode vir a usar força militar como fez em 1962 e 1967. Quais, em sua opinião, os objetivos da China para a Índia? A China ainda tem planos expansionistas na direção da Índia? As desconfianças da Índia têm fundamento? Além do mais, Rússia, China e Índia são países do grupo BRICS. Parece-me que para a Rússia obter acordo de paz amplo e de longo prazo com a Índia seria alto objetivo estratégico, dado que tensões entre China e Índia só beneficiam o Império Norte-americano. Assim também, parece-me que para a China seria muito mais importante alcançar acordo de paz amplo e de longo prazo com a Índia, do que resolver questiúnculas de fronteira e apoiar o Paquistão. Estou correto nesse ponto? Deixei escapar alguma coisa? Você acha que Rússia e os outros países BRICS têm meios para empurrar os dois países China e Índia para longe das atuais relações “frias e cautelosas” e rumo a uma aliança real? Que tipo de relacionamento com a Índia seria ideal para a China?
Jeff J. Brown: A Índia é, de fato, a pergunta de US$ 64 mil dólares, quer dizer, yuan/ rublos, não é mesmo? Temos de voltar à história do pós-guerra para conseguir perspectiva adequada. Comparar China e Índia desde então é um estudo de contraste quase total.
A Índia tornou-se independente em 1947, dois anos antes da China. Foi (como ainda é) a maior democracia “ocidental”. A independência da China deu início a um dos maiores experimentos na história humana, em termos de revolução política, social e econômica. A Índia foi a Joia da Coroa do Império Britânico, com infraestrutura decente, corpos governantes, instituições e “sociedade civil”, pelo menos entre a elite letrada do país, que ajudara a governar a Índia durante os 300 anos de governo colonial britânico.
Mao herdou um país devastado, restos do inferno do século 19, dependência endêmica de drogas e praticamente nenhuma infraestrutura, exceto a que os britânicos construíram para exportar ópio e embolsar todo o dinheiro. O Raj britânico providenciou para deixar atrás de si um legado de tensões e cisões religiosas, ao dividir o Paquistão e misturar as fronteiras entre Índia, China e Paquistão. Os EUA cuidaram para que os comunistas tivessem sua anti-China, ao ajudarem na fuga de Chiang Kai-Shek e do seu KMT fascista para criar Taiwan. China e Índia, ambos os países, têm território e população gigantes para movimentar a economia.
Antes de Rússia e China porem fim à separação em 1989, Deng Xiaoping anunciou, expressão que ficou famosa, que o século 21 seria da Ásia, e que assim sendo China e Índia teriam de estar juntas para fazê-lo acontecer. Mas não aconteceu bem assim, pelo menos até agora, não é mesmo?
A Índia teve o que os franceses chamam de revolução “champagne et caviar”, na qual a elite colonialista indiana assumiu do ponto que os britânicos deixaram. Lord Mountbatten que partia, apontou Jawaharlal Nehru como Primeiro-Ministro, escolha do rei George VI, Mr. Establishment indiano. A hierarquia colonial e todas as suas instituições permaneceram praticamente como estavam, com a diferença que eram administradas pela elite indiana. Esse sistema esclerosado, corrupto, foi mantido como estava.
Muito diferente disso foi a ditadura do proletariado chinês, onde Mao e os comunistas sanearam de cima a baixo toda a casa política, social e econômica. Acabaram-se as elites compradoras coloniais e os capitalistas cães corredores, no processo de conduzir a China do século 19 para o século 20 em apenas uma geração, com o país posicionado de cabeça erguida e orgulhoso de si, sem qualquer ajuda do ocidente. E assim foi feito, com sucesso massivo em todo o território (sobre isso, ouçam  a Rádio 44 dias [ing.]). A Era Mao transformou a China e melhorou dramaticamente a vida da vasta maioria do povo, enquanto a Índia e sua “democracia ocidental” naufragavam economicamente e politicamente, passando como cocô pelas tripas de um ganso, de um primeiro-ministro a outro.
Foi pílula amarga para os indianos engolirem. E, isso, mesmo antes da Era Deng, com aquele crescimento de dois dígitos e outra revolução econômica e social, como o mundo jamais antes vira e dificilmente voltará a ver. Tudo isso para explicar que não é difícil entender por que os indianos não se sentem bem em comparações com os chineses, e por que desconfiam de tudo. É a natureza humana.
Recentemente, houve novas frustrações, com o trem “Expresso Xi-Putin-China-Rússia” voando por lá a velocidades espantosas. A Rússia não fora sempre grande amiga da Índia? Por que, agora, aquele trem... chinês?! Mais uma vez os indianos sentiram-se ultrapassados pelos chineses. Mas quase sempre a coisa reduz-se a disputas por liderança, e a Índia parece que afinal conseguiu um primeiro-ministro que vale o que custa, alguém capaz de não se intimidar ante as barreiras geopolíticas e defender, de fato, os interesses da Índia, Mr. Narendra Modi.
Com o regimento dos Granadeiros Indianos desfilando ao lado do Exército da Libertação Popular chinês em Moscou dia 9 de maio de 2015, com visitas recíprocas dos chefes de estado Xi e Modi, com a visita de estado que Putin fez a Delhi e duas visitas de Modi à Rússia agendadas ainda para esse ano, é possível que, afinal, a visão de Deng possa se concretizar.
O Império Ocidental ainda é perigoso gigante que quer cavalgar o mundo. Mas acho que Deng pode afinal sorrir, sabendo que seu sonho de China-Índia inclui afinal também a Rússia, irmã socialista da revolução chinesa há tanto tempo afastada.
Mas nada será absolutamente fácil. O Raj britânico deixou intencionalmente um legado terrível nas fronteiras que demarcou entre China e Índia, e também com o Paquistão. China e Índia tiveram guerra de fronteira em 1962; os chineses venceram. Pronto. Mais egos indianos arrepiados. Mas a Índia empatou, retomando Sikkim, em 1967. O fato de que muitas dessas disputas são alimentadas a diferenças religiosas torna tudo ainda mais intratável.
Os indianos acreditam que o mapa da Índia tem o formato da Bharat Mata, a Deusa Mãe da Índia, e qualquer terra dada a China ou Paquistão equivale a remover parte da cabeça da deusa. E nem estou falando de umas poucas ilhas no Rio Amur e tiras de terra entre Mongólia russa, Coreia do Norte e China, para as quais se assinaram tratados formais nos últimos 25 anos, para resolver disputas de fronteira. Modi e Xi têm sobre a mesa 138 mil km2, com budistas tibetanos, muçulmanos paquistaneses e hindus indianos espiando ameaçadoramente pelas costas deles. É um pesadelo.
Conhecem a mais alta rodovia do planeta, que corre entre China e Paquistão, por cima do Desfiladeiro Khunjerab, descendo dali até o Porto de Gwadar, que os chineses estão administrando? Baba Pequim ofereceu-o primeiro à Índia, que não se interessou, em boa parte por pressão da opinião pública para que não “cedesse” aos chineses na disputa de fronteiras.
Deixando de lado por enquanto o Paquistão, os indianos têm muito mais a perder nisso que os chineses.
Embora seja difícil para a China ceder em todas as terras que a Índia reivindica, acho que Baba Pequim pode falar ao povo chinês e explicar por que estariam entregando, não tudo, mas mais da metade. Acho que foi o que Modi tinha em mente no discurso que fez em Pequim esse mês, quando pediu que os chineses por favor considerassem a “situação especial” da Índia (na disputa de fronteiras). Pediu publicamente, como cavalheiro, sem se perturbar com os nacionalistas indianos sempre voláteis e aos gritos.
Durante a visita de Modi deram-se passos gigantescos. Não havia qualquer contato nem diplomático nem militar entre China e Índia, desde as guerras de 1962 e 1967, sobre essas questões, apenas gritos e ameaças dos dois lados, seguidos de ocasionais escaramuças. Agora, já há telefones vermelhos instalados em Pequim e Delhi. Haverá reuniões de generais, ao longo da fronteira, para discutir diferenças mais prementes. E, o mais importante, haverá discussões diplomáticas de alto nível a cada seis meses, especificamente pautadas para buscar soluções para as questões de fronteira. O Império britânico foi gênio demoníaco. Foram longos e destrutivos 50 anos.
A disputa de fronteira Índia-China é o elo mais gravemente fraco numa possível aliança entre Rússia, China e Índia. A Rússia, com suas tradicionais calorosas relações com a Índia, já sinalizou que está disposta a trabalhar como intermediária. Esperemos que esses três países mostrem que o consenso Washington-Londres-Paris-Tóquio sempre esteve errado.
Uma corrente tripla firmemente trançada de China, Rússia e Índia pode deter o Império Ocidental. Ponha aí também o Irã, e é muito provável que Tio Sam até se interesse por sentar para conversar.
The Saker: Há boatos e especulações sobre uma nova moeda conjunta para substituir o dólar. Alguns falam de uma moeda rublo-yuan, outros de uma moeda “BRICS”, possivelmente de volta ao ouro. Esses rumores são reforçados pelo fato de que ambas, Rússia e China, andaram e provavelmente continuam a comprar todo o ouro que podiam. Há apoio na China para essa “cesta de moedas BRICS com lastro-ouro”?
Jeff J. Brown: China e Rússia são os maiores mineradores de ouro do mundo. Estão comprando ouro a velocidades prodigiosas (mas não voltei a verificar as compras da Rússia, depois que foi jogado o gambito petróleo versus ouro). Não é segredo que a China quer ter ouro equivalente às (supostas) 8.500 toneladas métricas dos EUA. As reservas de ouro da China são segredo de estado, mas estima-se que Baba Pequim conta com cerca de 3.500 toneladas métricas, talvez um pouco mais. Em breve, ainda nesse verão, a China terá de declarar o montante de suas reservas em ouro, para que o renminbi seja incluído entre as moedas da cesta do FMI que têm Direitos Especiais de Saque (ing. special drawing rights (SDR). Acho que gostarão de poder declarar reservas superiores às do #2, Alemanha, que tem oficialmente 3.400 toneladas métricas (embora não haja Banco Federal Alemão, Bundesbank, que consiga arrancá-las dos cofres norte-americanos, que fazem o diabo para não liberá-las).
Fala-se também do “Brisco”, uma moeda dos BRICS. O Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS pode ajudar a tornar realidade essa visão. O “Brisco” poria Rússia e China juntas para comércio e financiamento, ao lado de Índia, Brasil e África do Sul. Parece que a Rússia acaba de convidar a Grécia a unir-se também aos países BRICS, e não o teria feito sem consulta aos demais membros do grupo.
O comércio Yuan - rublos crescerá exponencialmente, quando gás e petróleo começarem a circular em 2018, com o CRIFT (o acordo russo anti-SWIFT) e a organização russa UCRG (anti-três grandes agências de crédito) fumegando a pleno vapor. Mas não acho que Rússia e China antevejam alguma moeda binacional tipo “Ruyuan”. Para isso, não há suficiente massa crítica. O “Brisco” parece muito mais fungível e internacional.
The Saker: Para encerrar: que tipo de futuro você vê para a China nas próximas décadas? Para onde o país caminha e que tipo de papel você acha que a China vê para ela mesma, no mundo futuro?
Jeff J. Brown: Por centenas de anos a China teve a maior economia do mundo. Afinal, em 1872, no fundo do poço do vício do ópio, do tráfico de escravos asiáticos (“coolie”) e do colonialismo de predação, o país caiu, do pico onde vivera por tanto tempo, ante o Império Norte-americano colonizador de ocupação. Quero dizer: a China é país habituado à grandeza. Ter-se tornado ano passado a maior economia do mundo em Paridade de Poder de Compra [orig. Purchasing Power Parity (PPP)] soa natural por aqui, e o Século da Humilhação foi simplesmente um pico negativo que não se repetirá.
A China tinha a maior frota naval do planeta 200-300 anos antes da Europa; tinha a pólvora e inventou as armas de fogo. Velejaram o quanto quiseram pelas costas da Ásia, África e Oriente Médio e até o arquipélago indonésio, muito antes de Cristóvão Colombo. Diferente do Ocidente, os chineses só queriam uma coisa: negócios comerciais de tipo ganha-ganha e trocas culturais. Diferente do Vietnã, a China nunca teve ambições imperiais, nem ânsia de hegemonia e de controle sobre os recursos do mundo, nem jamais escravizou povos nativos proprietários daqueles recursos. Para a China, sempre foi “Vamos fazer negócios”.
A diplomacia “ganha-ganha” de Xi não é conversa fiada. Baba Pequim faz o que diz. Xi e Li Keqiang (premiê chinês) estão viajando pelo planeta, assinando bilhões e bilhões de acordos de comércio bilateral e regional, negócios de energia, de aeroespaço, de infraestrutura, culturais, educacionais e científicos, tudo em altíssima velocidade. Mas historicamente, isso é o que os chineses sempre fizeram com o mundo exterior, ao longo dos últimos três mil anos: Cinturões Marítimos e Rotas da Seda.
Fato é , Saker, que goste o ocidente ou não, o leão oriental adormecido de Napoleão está de volta à sua melhor forma histórica. O ocidente tem duas escolhas: sentar à mesa de negociações com os BRICS ou fazer sumir no apagão nuclear esse nosso pequeno planeta azul. O Império é tão corrupto, tão “do mal” que, sinceramente, tendo a temer que se realize esse segundo cenário. Mas, ao mesmo tempo, sou eterno otimista. Cabe esperar que apareça algum super-herói, algum Vasili Arkhipov ou Stanislav Petrov norte-americanos (“os russos que salvaram o mundo, de uma guerra atômica”) que de algum modo consigam neutralizar as ações ensandecidas do estado profundo do Estado-Maior das Forças Armadas Conjuntas dos EUA/CIA/Wall Street que governa os EUA desde a 2ª Guerra Mundial, e resgatem a humanidade da beira do abismo.
Seja lá como for, bem-vindos à Era Xi e à Era Putin – e, com os dedos cruzados – à Era Modi também.
Saudações cá da China, de dentro da barriga da Besta do Novo Século.
Jeff J. Brown
Pequim, 25/5/2015
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Nota dos tradutores
[1] Aqui parece haver uma discrepância em relação ao que diz Pepe Escobar:
(...) Afinal de contas, Lee [Kuan Yew] muito impressionou o Pequeno Timoneiro, Deng Xiaoping, em pessoa, no final dos anos 1970s, e foi quem levou Deng a lançar uma China moderna concebida como uma espécie de “mil Cingapuras”: retumbante sucesso econômico, sob firme controle político.
(12/6/2015, redecastorphoto em: Pepe Escobar: China? Temos grande mestre. Saímos a viajar, traduzido.
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[*] Jeff J. Brown é um escritor e professor americano, cidadão francês (dupla nacionalidade). Nasceu em St. Louis, Missouri, e cresceu em Oklahoma. Obteve bacharelado em Ciência Animal da Universidade Estadual de Oklahoma e mestrado em nutrição de ruminantes na Universidade de Purdue, onde sua pesquisa foi publicada no Journal of Animal Sciences (fevereiro de 1981). Viajou para o Brasil em 1978 para tentar a sorte, como  voluntário do Peace Corps foi para aTunísi, 1980-1982; em seguida, trabalhou em toda a África e no Oriente Médio, 1982-85, na África 1985-1990, 1990-1997 China, França 1997- 2001, os Estados-Membros 2001-2010 e de volta na China 2010-até o presente.
Em 2012 fez viagem solo de 12.000 quilômetros em cinco províncias do interior da China, que foi a gênese de seu livro, 44 Days Backpacking in China- The Middle Kingdom in the 21st Century, with the United States, Europe and the Fate of the World in Its Looking Glass (publicado em 2013).
Desde então, ele foi entrevistado pela Associação de Professores de Ciência Oklahoma; teve um comentário convidado caracterizado por Paul Craig Roberts; tem sido destaque em uma série de entrevistas na Rádio Pequim AM774, com o jornalista Bruce Connolly. Apresentou artigos de domingo no China Daily; participou do Fórum de Beijing 2013 como orador convidado; foi orador de destaque para no Beijing 2014 TEDx na Academia ocidental de Beijing. Orador como autor convidado na Festa Literária 2014 Beijing Bookworm. Jeff também foi orador convidado no Festival Literário no 2014 Beijing Capital M. Ele também tem sido recentemente um orador convidado para a Escola Internacional de Pequim três vezes e em TEDA International School, em Tianjin, China, para uma série de palestras.
Jeff mantém uma coluna semanal popular, Reflexões em Sinoland - Relatórios do Ventre da Besta do Novo Século, enquanto trabalha como professor em uma escola internacional em Pequim.
Através de seus muitos anos de trabalho no exterior e viagens para mais de 85 países, Jeff aprendeu fluentemente Português, árabe, francês e mandarim. Ele é casado com Florence B. Langlois e eles vivem atualmente em Pequim com sua filha mais nova.

Um comentário:

  1. Espetacular esta entrevista! Ela me trouxe esperanças de que um mundo melhor é possível.

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