sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Pepe Escobar: “Qual é o jogo do Supremo Líder do Irã?”


25/2/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Interrompemos esse programa para propor a grande pergunta guerra-ou-paz: que jogo o Supremo Líder do Irã Aiatolá Ali Khamenei está realmente jogando? 

Pepe Escobar
Tema recorrente entre a animada diáspora iraniana global é que o Supremo Líder é o agente ideal de EUA/Israel – na medida em que encarna o Irã como “o inimigo” (em vários casos menos que o presidente Mahmud Ahmadinejad); paralelamente, a ditadura militar do mulariato em Teerã também precisa do “inimigo” – um Grande Satã e os Sionistas – para justificar seu monopólio do poder. 

Quem mais perde nesse caso é a verdadeira democracia iraniana – como base da capacidade do país para resistir ao Império. Especialmente agora, depois da muito suspeita eleição presidencial de 2009 e da repressão ao movimento Verde – quando até ex-apoiadores diziam que a República Islâmica deixara de ser “república” e com certeza já não era “islâmica”. 

Ao mesmo tempo, iranianos – e ocidentais – bem informados que criticam o Império dizem também que o governo beligerante da maioria do Likud no governo israelense é, de fato, o agente ideal a serviço do Irã. Isso porque o primeiro-ministro Benjamin "Bibi" Netanyahu e o ex-leão-de-chácara da Moldávia feito ministro de Relações Exteriores Avigdor Lieberman e fazedores-de-guerras em tempo integral conseguiram unir contra eles mesmos e em defesa do regime, todos os iranianos de todos os grupos e fés – sempre orgulhosamente nacionalistas. 

Afinal, a absoluta maioria dos iranianos sente que estão postos como alvo de uma potência estrangeira fortemente armada – EUA-Israel, acompanhada nas sombras pelas monarquias sunitas do Clube Contrarrevolucionário do Golfo, também conhecido como Conselho de Cooperação do Golfo. O regime foi esperto o bastante para instrumentalizar essa ameaça estrangeira e, ao mesmo tempo, acabar de esmagar o movimento Verde. 

Mantenha suas bombas longe de mim 

Estamos a menos de uma semana das eleições parlamentares no Irã, que acontecerão dia 3 de março. São as primeiras eleições depois do drama de 2009. Em The Ayatollahs' Democracy: an Iranian Challenge [A Democracia dos Aiatolás: um desafio iraniano] (New York: W. W. Norton, 2010, 282 p. [1]), Hooman Majd apresenta argumentos de peso, detalhando como a eleição de 2009 foi roubada. E aí está o principal problema de hoje: milhões de iranianos já não acreditam em sua democracia islâmica. 

Gholam Reza Moghaddam, clérigo e presidente da Comissão do Majlis (parlamento) que está conduzindo movimento extremamente delicado – em meio a uma crise econômica – para pôr fim aos subsídios que o governo dá a itens de alimentação básicos e energia, admitiu recentemente que o governo de Ahmadinejad está, por todos os meios possíveis, subornando a população “para encorajar os eleitores a votar nas eleições para o Majlis”. 

O major-general Yahya Rahim Safavi – alto conselheiro militar de Khamenei e, muito importante, ex-chefe do Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos [orig. Islamic Revolutionary Guards Corps (IRGC) – pediu que os iranianos “levem a sério as eleições e votem em massa, para fazer das eleições outro evento épico”. O Líder Supremo crê – ou espera – que nesse “evento épico” o comparecimento às urnas fique em torno de 60%. 

Podem estar a caminho de uma dura decepção. O que se diz é que, entre os universitários, o interesse pelas eleições está próximo de zero. Não surpreende: o líder do movimento Verde, Mir Hossein Mousavi, está, há um ano, em prisão domiciliar. Segundo Kaleme, website aliado de Mousavi e de sua esposa, Dra. Zahra Rahnavard, o casal foi autorizado a falar, apenas por poucos minutos, há alguns dias, por telefone, com as três filhas. 

A atenção de Khamenei parece estar mais concentrada na pressão externa, que na dinâmica interna. Mais uma vez, na 4ª-feira, falou publicamente, renovando o que já disse: que uma bomba atômica seria anti-islâmica. Suas palavras bem deveriam ser – mas não serão – atentamente examinadas no ocidente:

Cremos que usar armas nucleares é haram e proibido e que é dever de todos esforçarem-se para proteger a humanidade contra esse grande desastre. Cremos que, além de armas nucleares, outros tipos de armas de destruição em massa, como as armas químicas e biológicas, também são grave ameaça à humanidade. A nação iraniana, que já é vítima de armas químicas, sente, mais que outras nações o risco que se cria sempre que se produzem e armazenam armas desse tipo. O Irã está preparado a fazer uso de todas as suas capacidades, para enfrentar esse risco.

Para conhecer as ideias ‘nucleares’ do Supremo Líder, bastaria que os doidos-por-guerra consultassem seu website [2]. Claro que não consultarão. 

O que é garantido é que o líder dá sinais de que está pronto para combates de longo prazo. Foi o que disse o major-general (aposentado) Mohsen Rezai, secretário-geral do Grande Conselho [orig. Expediency Council [3]], com menos palavras: as sanções ocidentais perdurarão por no mínimo mais cinco anos;  são muito mais duras que as impostas durante a guerra Irã-Iraque de 1980-1988. 

Rezai disse também que, por 16 anos, quando Akbar Hashemi Rafsanjani e depois Mohammad Khatami foram presidentes, o Irã tentou alguma espécie de acerto com os EUA; mas, “porque a separação [entre EUA e Irã] era profunda demais, nenhum acordo foi possível (...). Permitimos que vistoriassem Natanz, reduzimos o número de centrífugas, suspendemos as operações em Isfahan [unidade de conversão de urânio] e nosso presidente [Khatami] iniciou o “diálogo entre civilizações”. Mas [o presidente George W] Bush declarou que Irã, Iraque e Coreia do Norte seriam o “eixo do mal” e iniciou a confrontação conosco”. [4] 

Um ex-porta-voz da equipe de negociadores iranianos para a questão nuclear, embaixador Hossein Mousavian [5], atualizou essa inspiração confrontacional – frente à equipe da Agência Internacional de Energia Atômica (ing.International Atomic Energy Agency (IAEA)] que visitou o Irã em outubro de 2011, liderada pelo vice-diretor-geral Herman Nackaerts – o mesmo Nackaerts que, essa semana, retornou ao Irã. 

Segundo Mousavian, “durante a visita, Fereydoon Abbasi-Davani, chefe da Organização de Energia Atômica do Irã, entregou um cheque em branco à IAEA, assegurando plena transparência, abertura às inspeções e cooperação com a IAEA. Também informou Nackaerts da disposição do Irã para pôr o programa nuclear do Irã sob “plena supervisão da IAEA”, inclusive com implementação do Protocolo Adicional [do Tratado de Não Proliferação Nuclear] por cinco anos, sob a única condição de que fossem levantadas as sanções contra o Irã”. [6] 

Adivinhem qual foi a reação de Washington? Esqueçam o diálogo; queremos sanções. E assim o palco estava armado para que Washington desse os passos seguintes: o golpe dos Velozes & Furiosos para tentar culpar Teerã pela tentativa de assassinato do embaixador saudita aos EUA; pressão para que se ignorasse o relatório da IAEA sobre o Irã, de novembro de 2011, distribuindo a suspeita de que haveria “um possível ângulo militar” no programa nuclear iraniano; embargo do petróleo; imposição à ONU de uma resolução contra o Irã sob acusação de terrorismo; e a lista prossegue. 

Mostre-me o caminho do Imã [Khomeini]

Todos os assuntos no Irã, internos e externos, são resolvidos por Khamenei – não por Ahmadinejad. Se o Supremo Líder parece manter a mão bem firme sobre o dossiê nuclear, nas questões domésticas tudo parece menos firme. Fora das grandes cidades, Khamenei ainda preserva o apoio popular – enquanto os empréstimos que o Estado faz às populações rurais continuarem com a mesma generosidade, enquanto, pelo menos, as sanções ocidentais não morderem mais fundo. 

Mas o alto clericato em Qom já começa a clamar por mecanismos legais que permitam supervisionar – e criticar – o Líder Supremo. Sua resposta – segredo para ninguém, em Teerã – foi mandar instalar escutas clandestinas em todos os locais de estudo e nas casas dos altos clérigos. 

Khamenei sempre rejeitou veementemente qualquer tipo de supervisão que lhe fizesse o Grande Conselho – o corpo que indica o Supremo Líder, monitora seu desempenho e pode destituí-lo. 

Segundo Seyyed Abbas Nabavi, chefe da Organização pela Civilização e pelo Desenvolvimento Islâmicos, Khamenei disse aos especialistas que “não aceito que o Grande Conselho diga ao Supremo Líder que continua qualificado, mas, em seguida questione por que um ou outro funcionário tenha sido encaminhado numa ou noutra direção, ou por que permiti que determinado funcionário [faça certas coisas]”. [7] 

Depois da explosão de indignação em 2009 – quando pela primeira vez o povo exigiu, nas ruas, a queda do Supremo Líder – a revolta prossegue, com iranianos letrados que zombam de Khamenei, apresentado como turrão, invejoso e vingativo, que acalenta ira monstro contra os milhões de iranianos que jamais engoliram o apoio que deu a Ahmadinejad em 2009 (Khamenei sempre chamou aqueles manifestantes de “sediciosos”). 

Por exemplo, até a filha de um aiatolá muito conhecido disse publicamente que Khamenei “tem ódio no coração” contra Rafsanjani e ex-candidatos potenciais à presidência Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karoubi “por causa do amor que o Imã [Khomeini] tinha por ele e do apoio que lhes dava e também porque, em comparação a esses três, sobretudo comparados a Hashemi [Rafsanjani] e Mousavi, vê-se claramente que Khamenei é indivíduo de segunda classe”. Khamenei agora está sendo apontado como culpado de tudo, da queda na produção nacional, do aumento da inflação e da corrupção disseminada. 

O que levanta a seguinte questão: e o Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos? Apoiam o Supremo Líder? 

Para a diáspora iraniana, esse apoio não passa de pura propaganda. O fato é que o Corpo dos Guardas Revolucionários Islâmicos já estaria convertido em conglomerado monstro, com miríades de interesses militares-industriais, econômicos e financeiros. Altos gerentes – e a constelação de empresas que controlam – estão conectados ao etos de antagonizar o ocidente, o mesmo ocidente de cujas sanções eles muito lucram, sem remorso. Assim, para eles, o status quo está perfeitíssimo – apesar do risco diário de que um passo em falso, um acidente ou uma operação encenada levem à guerra. 

Ao mesmo tempo, o IRGC pode contar com o apoio político/estratégico de Rússia e China, dois BRICS – e tem certeza de que o país conseguirá superar o embargo e continuará a vender petróleo, sobretudo a clientes asiáticos. 

Mas o mais substancioso, em termos de dinâmica interna, é o fato de que o creme do IRGC está hoje engajado num tipo de guerra econômica contra os bazaaris – os mercadores persas, tradicionalmente muito conservadores. 

É importante lembrar que esses bazaaris financiaram a chamada Revolução Islâmica “O Caminho do Imã”, em 1979. Eram – e continuam – opositores radicais do colonialismo (especialmente do colonialismo como praticado por britânicos e norte-americanos); mas isso não implica que sejam antiocidente (detalhe que muitos no ocidente ainda não entendem). 

Mas uma vez, como importantes analistas iranianos têm insistido, é preciso lembrar que o motto original da revolução islâmica foi “Nem leste nem oeste”; o que interessava era uma espécie curiosamente budista de ‘trilha média do caminho’– e exatamente essa “trilha média”, o “Caminho do Imã”, garantiria a existência de um Irã que seria islâmico e soberano, e não alinhado. 

Adivinhem quem participava daquela coalizão de vontades chamada “Caminho do Imã”? Exatamente os inimigos de Khamenei (e de Ahmadinejad): Mousavi, Khatami, Karoubi e Rafsanjani, para nem falar de uma facção moderada doIRGC, representada por Mohsen Rezai, ex-comandante do IRGC e ex-candidato à presidência. 

O que a Coalizão “Caminho do Imã” está dizendo, essencialmente, é que Khamenei traiu os princípios da revolução; acusam-no de tentar converter-se numa espécie de califa xiita – e governante absolutista. Essa mensagem está encontrando eco cada dia mais forte entre milhões de iranianos que creem em um estado que seja verdadeiramente “islâmico”, mas, ainda mais, creem num estado que seja verdadeiramente uma “república”. 

O que afinal nos leva ao supremo medo que acossa o Supremo Líder: que uma coalizão de republicanos islâmicos puristas – entre os quais os poderosos clérigos de Qom e os poderosos comandantes e ex-comandantes do IRGC – decidam levantar-se, derrubá-lo e, finalmente, implantar no Irã uma verdadeira república islâmica. 

Seja como for, só uma coisa é certa e não varia: ninguém, em nenhum caso, desistirá do programa nuclear iraniano para finalidades civis. 


Notas dos tradutores

[1] Para uma resenha do livro, ver Small Wars Journal, 20/4/2011, em: “Book Review: The Ayatollah's Democracy: An Iranian Challenge”  (em inglês).


[3] Em inglês, “Expediency Discernment Council of the System”; em persa, مجمع تشخیص مصلحت نظام‎; é uma assembleia administrativa de membros cuja principal competência é indicar o Supremo Líder; foi criado depois da revisão da Constituição da República Islâmica do Irã, dia 6/2/1988. Originalmente, foi criado para dirimir conflitos entre o Majlis e o Conselho de Guardiães. Segundo Hooman Majd, o líder “delegou parte de sua autoridade ao conselho – dando-lhe poderes para supervisionar todos os ramos do governo – depois da eleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2005 . Pode ser traduzido, tentativamente, como Conselho para Discernimento e Administração do Sistema, aqui apenas “Grande Conselho”, para simplificar.


[5] Sobre declarações de Hossein Mousavian, ver também 20/2/2012, “EUA e Irã avançam (devagar) rumo a conversações”, MK Bhadrakumar.

[6] MOUSAVIAN, Hossein. 9/2/2012, “How to engage Iran”, Foreign Affairs

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