segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Pepe Escobar: “Síria, a nova Líbia”


14/2/2012, Pepe Escobar, ATol – The Roving Eye
Traduzidopelo pessoal da Vila Vudu

Ver também:
Aisling Byrne: “Mudança de regime” na Síria - 05 Jan 2012


Pepe Escobar
Uma Kalashnikov era vendida no Iraque até recentemente por US$100. Agora, custa no mínimo $1.000, mais provavelmente $1.500 (longe vão os dias em que os sunitas que se uniam à resistência, em 2003, podiam comprar uma Kalashnikov falsa, fabricada na Romênia, por $20). 

Destino preferencial das Kalashnikov de $1.500 em 2012: a Síria. Rede: a al-Qaeda na Terra dos Dois Rios, também conhecida como AQI. Compradores: jihadis infiltrados que operam ombro a ombro com o Exército Sírio Livre [orig.Free Syrian Army (FSA)]. 

Também operam como correia de transmissão entre Síria e Iraque as explosões de carros e os suicidas-bomba, como as duas explosões recentes nos subúrbios de Damasco e o suicida-bomba, 6ª-feira passada, em Aleppo. 

Quem imaginaria que o que a Casa de Saud deseja ver na Síria – um regime islâmico – é exatamente o que a al-Qaeda também deseja para a Síria? 

Ayman “O Cirurgião” al-Zawahiri, número 1 da al-Qaeda, em vídeo de oito minutos, intitulado “Avante, Leões da Síria”, acaba de convocar à luta os muçulmanos no Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia, para derrubar o “regime pernicioso, canceroso”, de Bashar al-Assad. De fato, já estavam alistados, em geral, mesmo antes de O Cirurgião entrar em cena. E não só eles, mas principalmente os “combatentes da liberdade” líbios transplantados, conhecidos antigamente como “os rebeldes”. 

Quem imaginaria que o que o CCGOTAN (Conselho de Cooperação do Golfo+Organização do Tratado do Atlântico Norte) deseja ver na Síria é exatamente o que a al-Qaeda também deseja para a Síria? 

Portanto, quando, apesar de todos os horríveis ataques militares que matam sobretudo os civis apanhados no fogo cruzado, o governo de Assad diz que está combatendo “terroristas”, ele, em termos precisos, não está mentindo. Até aquela entidade onipresente, proverbial, “funcionário do governo dos EUA que não quis identificar-se” já culpa a al-Qaeda na Terra dos Dois Rios, AQI, pelas recentes explosões. E, além desses, também o vice-ministro do Interior do Iraque Adnan al-Assadi: “Temos informações de inteligência de que vários jihadists iraquianos partiram para a Síria.” 

Assim sendo, se não deu para fazer da Síria a nova Líbia, no sentido de uma resolução da ONU autorizar o bombardeio humanitário – vetada por dois BRICS, Rússia e China – a Síria pelo menos já é uma nova Líbia, no sentido dos escandalosos laços entre “os rebeldes” e os jihadis salafistas linha-dura.

E dado que o ocidente absolutamente adora situações de ganha-ganha, mesmo que pré-fabricadas, é perfeitamente possível que aí esteja, prontinho, o casus belli que o Pentágono esperava – libertar a Síria de uma “al-Qaeda” que, antes, não estava lá. Não esqueçam que – apesar de todo o auê sobre a “deriva” do governo Obama/Pentágono, afastando-se do Oriente Médio e tomando o rumo do Leste da Ásia, toda a “guerra global ao terror” [global war on terror (GWOT)], que Obama rebatizou de “operações contingenciais além-mar” [overseas contingency operations” (OCO)], continua bem viva, vivíssima.

Libertem-me, para eu matar à vontade 

Ano passado, o Asia Times Online advertiu inúmeras vezes que a Líbia “libertada” – e “libertada” pelos chamados “rebeldes da OTAN” – rapidamente se transformaria em inferno povoado de milícias armadas. Exatamente o que lá se vê hoje: há pelo menos 250 milícias diferentes, só em Misurata, segundo o Human Rights Watch; as milícias são polícia, juízes e carrascos-executores, tudo ao mesmo tempo. Por falar nisso, não há Ministério da Justiça na Líbia “libertada”. Se você for preso e chegar à cela, ali mesmo será executado; e se você é africano subsaariano ainda ganha, de brinde, longo período de tortura, num campo libertado de prisioneiros, antes de ser executado. 

Como se viu acontecer na Líbia – porque é questão estratégica para o eixo Casa de Saud/sunitas do Qatar – já não há qualquer possibilidade de autêntico diálogo entre a insurreição (armada) e o regime de Assad. Afinal, o objetivo chave é derrubar o regime de Assad. Então, a propaganda reina absoluta, numa mídia árabe controlada quase toda ou pelos sauditas ou pelos qataris. 

Por exemplo: o muito louvado Observatório Sírio de Direitos Humanos, com sede em Londres, e que vive de vomitar estatísticas sem qualquer comprovação, números e mais números, sem fim, dos “massacres” cometidos pelo governo sírio – falaram até em “genocídio” – é mantido com dinheiro de uma entidade sediada em Dubai e financiada por obscuros doadores ocidentais e do Conselho de Cooperação do Golfo. 

Para completar, os “especialistas” midiáticos da “oposição” orientam com precisão de mira a laser toda a cobertura da imprensa-empresa ocidental. A rede CNN atribuiu as bombas de Aleppo, na 6ª-feira, a “terroristas” – assim, entre aspas. Imaginem a histeria total, se fosse a Zona Verde dos EUA, no Iraque, atacada à bomba pela resistência sunita, em meados da década dos 2000s. A BBC acreditou realmente na versão de propaganda que a Fraternidade Muçulmana Síria distribuiu, segundo a qual o governo sírio se autobombardeara: verossímil como a “notícia” de que o Pentágono se autobombardeava na Zona Verde. Quanto à mídia árabe – em grande parte controlada por sauditas e qataris – ignorou completa e absolutamente a conexão al-Qaeda. 

A Liga do Conselho de Cooperação do Golfo – antiga Liga Árabe – depois de bombardear o próprio relatório da própria comissão sobre a Síria, porque não reproduzia a narrativa pré-fabricada sobre um governo “do mal” que bombardeava unilateralmente o próprio povo, anda agora propagandeando um supostamente humanitário Plano B: uma missão de paz árabes/ONU, para “supervisionar a execução do cessar-fogo”. Mas que ninguém se deixe enganar: a agenda ainda é a mudança de regime, como antes. 

O príncipe Saud al-Faisal, ministro de Relações Exteriores da Arábia Saudita, já começou a fazer os ruídos certos, descartando qualquer intervenção humanitária. Simultaneamente, é muito edificante ouvir a Casa (“oh, como somos progressistas”) de Saud a lamentar a “falta de comprometimento do governo sírio” e a pontificar que “a Síria passa hoje, não por uma guerra de guerrilha, nem racista nem sectária, mas por matança em massa, sem qualquer consideração humanitária”. 

Imaginem o quanto seriam “humanitárias” as “considerações” da Casa de Saud, no caso de emergir movimento pró-democracia entre a maioria xiita que habita a província leste (já aconteceu; o movimento emergiu e foi reprimido com violência extrema). Melhor ainda: lembrem como os sauditas tinham ar “humanitário”, quando invadiram o Bahrain. 

A agenda do CCGOTAN permanece inalterada: mudança de regime, por não importa qual meio. Até o Guerreiro-em-Chefe e presidente dos EUA Barack Obama já disse isso, ele mesmo, em pessoa. Os fantoches do CCG obedecerão servis e felizes. Portanto, só resta esperar uma inflação de Kalashnikovs através da fronteira, mais carros-bomba, mais suicidas-bomba, mais civis mortos no fogo cruzado e a lenta, imensamente trágica, fragmentação da Síria.

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