10/2/2012, Sharmine
Narwani, Al-Akhbar,
Beirute
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Sharmine Narwani |
O
problema da política dos EUA para o Oriente Médio é que ela atualmente só está
operando no nível político: longe vão os dias em que havia especialistas
pesos-pesados nos centros de decisão, capazes de considerar o contexto
histórico, as relações sociais e de levar em conta essas nuances nas decisões
políticas.
Hoje,
o que se vê são grupos de interesses monolíticos, projetos comerciais, e o
impacto sempre presente das eleições, em todas as decisões. Só se vê o quadro de
curto prazo: muita tática e nenhuma estratégia, nessas abordagens de ou branco
ou preto. Como campanha de publicidade de alta octanagem, todas as discussões se
fazem em frases-slogans, em cenários e segundo narrativas
inventadas.
Nas
últimas semanas, a Síria não saiu das manchetes, em repetição ensurdecedora: o
governo massacra a oposição em Homs; China e Rússia são os bandidos; um generoso
Conselho de Segurança da ONU, que só pensa em salvar os sírios; o massacre de
Hama, de 1982, ressuscitado; e uma embaixadora dos EUA que se declara
“disgusted”, ante o atrevimento de outros embaixadores, que vetam, de
pleno direito, desejos declarados dos EUA.
Mas
se se baixa o volume da histeria, e se se devolve o debate à voz de observadores
mais experientes e comedidos, logo se encontra uma narrativa mais consistente.
No fim de semana, tive o privilégio de receber um e-mail que me fez lembrar o tempo em que havia
especialistas mais bem qualificados no Departamento de Estado dos EUA, capazes
de produzir relatos objetivos dos fatos em campo, o que, no mínimo,
possibilitava que se tomassem decisões menos ensandecidas.
A
mensagem, vem assinada por um ex-diplomata norte-americano que serviu na Síria,
e que pede para não ter seu nome publicado. Publico aqui seu e-mail, para
benefício dos leitores:
“Tenho
graves restrições ao que se tem dito sobre intervenção militar na Síria. Todos,
sobretudo a imprensa, parecem só contar com informações de ativistas da
oposição. Como se sabe que ontem o regime sírio matou 260 pessoas em Homs? O
número parece saído do que dizem figuras da oposição. Duvido muito desses
números.
Servi
durante três anos na Embaixada dos EUA em Damasco e sei o quanto é difícil
separar fatos e boatos naquela sociedade política fechada. Cuidávamos de sempre
verificar todos os boatos que circulavam sobre assassinatos, prisões de
opositores políticos, etc., e nesse trabalho de verificação de boatos estava
incluída a CIA, que recebia informação tão pouco confiável como nós todos. Hoje,
temos lá um esqueleto de embaixada, que com certeza é mantida sob estrita
vigilância, com pessoal reduzido, sem condições de andar pelas ruas e ver o que
de fato está acontecendo. Estive em Damasco há dois anos, vi a carência de
fontes com que a Embaixada trabalha, e não tive boa impressão do modo como
compreendia-se, na Embaixada, a dinâmica do que acontecia na Síria. Posso dizer
o mesmo, das conversas que tenho tido com funcionários do Departamento de
Estado.
A
imprensa, e em certa medida também o governo [Obama], personalizaram o conflito
sírio, como se só se tratasse de Bashar Assad e sua família. Todos tem
subestimado, praticamente sempre, a natureza sectária do conflito naquele país.
De modo algum se trata só de Bashar Assad e família, que se agarram ao poder a
qualquer custo: trata-se de todo o sistema alawita de controle do país, que
inclui os militares, os serviços de segurança e o Partido Baath. Creio que os
alawitas creem firmemente que, se perderem o poder, os sunitas os massacrarão.
Essa é uma das razões pelas quais Hafez e seu irmão Rifaat foram tão impiedosos
em Hama há trinta anos. E, no ocidente, todos esquecem, muito convenientemente,
a campanha de assassinatos e suicidas-bombas comandada, três ou quatro anos
antes de Hama, pela Fraternidade Muçulmana em todo o país. Testemunhei
pessoalmente um desses ataques a bomba, do qual resultaram várias centenas de
mortos. Por mais curta que seja a memória histórica do Departamento de Estado,
da CIA e de outros órgãos do governo dos EUA, os sírios não esquecem
facilmente.
Encontram-se
poucas análises sérias sobre o conflito na Síria. Com exceção do que o
jornalista Nir Rosen e o International
Crisis Group têm publicado, a maioria dos
relatos são superficiais e tendenciosos a favor da oposição ao regime sírio.
Assim, não há base de informação a partir da qual propor políticas, sobretudo se
Washington considera a possibilidade de algum tipo de intervenção militar. Seria
como abrir uma caixa de Pandora dos conflitos sectários, que facilmente se
espalhariam para o Líbano, Israel, as áreas curdas do Iraque e por toda a
região.
Uma
das ironias da situação atual, se comparada à situação de trinta anos passados,
é o papel do Iraque. Naquele momento, tínhamos informação satisfatoriamente
confiável de que Saddam Hussein fornecia armas e explosivos à Fraternidade
Muçulmana e facilitava o contrabando desses itens através da fronteira
Síria-Iraque. Hoje, o governo Maliki em Bagdá parece apoiar o regime de Assad. E
há trinta anos, também tínhamos informação de que os líderes da Fraternidade
Muçulmana contavam com a proteção do rei Hussein e dos sauditas, que lhes
garantiam santuário na Jordânia e na Arábia Saudita.
Não
me parece que os EUA saibamos como jogar nessa arena, assim como tampouco
sabemos como jogar na arena do Afeganistão-Paquistão. A intervenção militar
norte-americana, embora disfarçada como intervenção da OTAN, ou sob qualquer
outro guarda-chuva, pode ter consequências graves e não previstas para os EUA, a
Europa e a região. Os funcionários em Washington deveriam receber lições sobre a
lei das consequências não previstas, marteladas na cabeça, todos os
dias.
São
pensamentos de um diplomata dos EUA, com experiência recente e direta na Síria.
Por que não se ouvem avaliações assim sóbrias, da boca dos que mandam, em
Washington? Parte da razão, é claro, é a super politização do processo de tomada
de decisões, que há muito tempo foi sequestrado da mão dos especialistas e
entregue no colo dos falcões linha-dura, de ideólogos, de candidatos e de
jornalistas “marketeiros” especialistas em campanhas
eleitorais.
Deve-se
lembrar que muitos dos motivos pelos quais o governo dos EUA está focado na
Síria derivam da fixação no Irã. Ao apoiar a ideia do Irã, de que é preciso pôr
fim à hegemonia dos EUA e de Israel no Oriente Médio, a Síria pôs-se no centro
das prioridades das políticas dos EUA.
David
Sanger, do New York Times,
escreveu, pouco depois de a Primavera Árabe ter devorado os primeiros dois
ditadores, Zine El Abidine Ben Ali da Tunísia, e Hosni Mubarak do
Egito:
“Cada
decisão – da Líbia ao Iêmen, do Bahrain à Síria – está sendo examinada sob o
prisma de como afetará o que era, até meados de janeiro, o projeto dominante na
estratégia regional do governo Obama: como conter o progresso nuclear no Irã e
acelerar ali as oportunidades de um levante bem
sucedido.”
Os esforços para minar o governo de Bashar Assad estão
há muito tempo entre os principais objetivos políticos do governo, desde bem
antes de as revoltas populares começarem no Oriente Médio em geral, em 2011.
WikiLeaks revelou uma verdadeira mina de informações sobre as intervenções dos
EUA na Síria, inclusive o financiamento direto, dos EUA, a grupos de
oposição [1].
Política
suja e dificuldades geopolíticas à parte permanece, no coração dessa questão, um
problema que é fundamental para que se proponham melhores políticas, em todos os
casos: em que momento narrativas apenas oportunistas convertem-se em mentiras
ativas, que geram políticas cada vez piores?
Um
telegrama publicado por WikiLeaks, de 2006, ilustra os esforços de Washington
para identificar “oportunidades” para expor “vulnerabilidades” no regime sírio e
provocar divisão sectária/étnica, discórdia dentro do aparelho militar/de
segurança e dificuldades econômicas. Como os EUA fariam isso? O telegrama lista
uma série de vulnerabilidades sírias a serem exploradas e
recomenda:
“Essas propostas têm de ser dissecadas e convertidas em
ações, e temos de estar prontos para nos movimentar rapidamente e extrair
vantagens dessas oportunidades. Muitas de nossas sugestões destacam o uso de
Diplomacia Pública e de meios mais indiretos para enviar mensagens que
influenciem o círculo interno [do poder sírio]”. [2]
Propaganda
dirigida à opinião pública nos EUA
“Diplomacia
Pública” significa, de fato, “propaganda” – a qual, nos termos da lei
Smith-Mundt, de 1948, especifica os termos nos quais o governo dos EUA pode
disseminar informação para públicos estrangeiros. Em 1972, a lei proibiu que
cidadãos norte-americanos tivessem acesso a informação orientada para públicos
estrangeiros; em outras palavras, é ilegal, nos EUA, que o governo
norte-americano faça propaganda dirigida a cidadãos
norte-americanos.
Mas
Washington encontrou meios para burlar a lei. Afinal, os cidadãos
norte-americanos têm de “vir junto” nas muitas aventuras militares além-mar
empreendidas por sucessivos governos. Como, então, o governo dos EUA consegue,
sem infringir a lei, inundar a sociedade com propaganda, e obter que os
norte-americanos abracem tantas guerras (Iraque, Afeganistão, talvez o Irã),
aceitem a venda de armas a aliados questionáveis (Arábia Saudita e Israel) e
aceitem as muitas violações de direitos humanos (Guantánamo, ataques com
aviões-robôs, os drones, a
civis)?
A
falsa história das armas de destruição em massa que haveria no Iraque, prontas a
serem usadas contra os EUA e seus aliados, foi a parte crucial da narrativa que
resultou na intervenção militar no Iraque. Impossível esquecer o depoimento do
então secretário de Estado Colin Powell, em que disse que havia provas de que
Saddam possuía armas de destruição em massa; e o discurso “State of the Union”
do presidente Bush, quando mentiu, ao dizer que o Iraque obtinha urânio
enriquecido do Niger. A imprensa acabou por revelar as duas mentiras [embora não
a tempo de impedir a guerra do Iraque]: a lei proíbe divulgar propaganda
mentirosa ao povo norte-americano.
Quando
narrativas oportunistas convertem-se em mentiras ativas, que geram políticas
viciosas?
Há
meios pelos quais é possível escapar à lei Smith-Mundt. O meio mais rápido, para
distribuir informação imprecisa, viciosa e às vezes absolutamente falsa, são os
“vazamentos”. Basta pesquisar em qualquer jornal ou revista em Washington, New York ou Los Angeles, e facilmente se encontram,
nas sessões de política internacional, inúmeros “vazamentos”, em que
“autoridades” ou funcionários do governo, “vazam” frases diretamente aos
jornalistas.
A
internet também é excelente veículo para disseminar desinformação. O alcance
planetário, os milhões de blogs com diferentes graus de credibilidade – todos
sempre podem servir ao jogo da propaganda, ou “Diplomacia
Pública”.
Em
abril de 2010, o coronel Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete de Powell –
mais um coronel e ex-funcionário, dos vários que falaram com franqueza sobre
política e os atalhos que há no processo, depois de deixar o posto – disse-me,
pessoalmente:
“[O
secretário de Defesa Donald] Rumsfeld e outros, por exemplo, simplesmente
ignoraram a lei. Mandavam o que queriam que fosse publicado, por exemplo, para
um jornal de Sydney, que publicava; em seguida, pela internet, mandavam de volta
a “notícia publicada na Austrália”, para os EUA. Fizeram, sim, propaganda
dirigida aos cidadãos norte-americanos.”
Wilkerson
insiste:
“Temos
um conflito de leis, que tem de ser corrigido – a lei diz que não se podem
misturar as coisas: há “relações públicas”, dirigidas ao público
norte-americano; e há “diplomacia pública”, dirigida a públicos não
norte-americanos. Falta uma lei que proíba a propaganda, e ponto final. É
importante informar a verdade. Entendo que não se possam publicar segredos de
Estado. Mas por que não publicar a verdade?”
O
problema das relações internacionais, particularmente no Oriente Médio é, em
síntese, quem constrói as decisões – sempre ideólogos, com agendas fixas: contra
o Irã e a favor de Israel; contra o “ditador” sírio, mas a favor dos ditadores
sauditas, bahrainis, iemenitas, qataris; contra o Irã ter capacidade nuclear,
mas a favor de Israel manter suas 200 bombas atômicas; abusar do direito de veto
no Conselho de Segurança (os EUA vetaram mais de 80 propostas de resolução no
CS!), e apresentar como se fosse crime, o exercício do mesmo direito de veto
quando é exercido por outros membros do mesmo Conselho. E a lista é
longa.
“Está
rachado – é absolutamente disfuncional” – disse Wilkerson, sobre o processo de
tomada de decisões no governo dos EUA: “Metem os ideólogos no processo, para
encurralar, chantagear, orquestrar, manipular, enganar, confundir os
funcionários civis dentro do governo, até que todos façam o que os ideólogos
dizem que tem de ser feito”.
De
volta à Síria.
Uma
jornalista de uma grande rede ocidental de notícias escreveu-me, por e-mail, voltando de viagem à Síria:
“Voltei
de Homs, mês passado, sem estar convencida de que havia algum levante popular
contra o regime de Assad. E muito longe de estar convencida de que haveria por
lá algum “mocinho” contra “bandidos”.
De fato, sabe-se praticamente nada sobre o que se passa
no país. E não necessariamente porque a imprensa seja controlada: o relatório da
missão da Liga Árabe lista 147 órgãos da imprensa ocidental e árabe[3]
que
estão presentes na Síria.
A
razão pela qual continuamos sem nada saber sobre o que está realmente
acontecendo em Homs é que está em curso uma feroz batalha pela narrativa
dominante. E a narrativa hoje dominante é a que Washington criou. A mesma
Washington que, como se lê na notícia direta, colhida de fonte primária, que
WikiLeaks publicou, desde 2006 trabalha para colher todas as “oportunidades” de
explorar as “vulnerabilidades” e minar o governo de Bashar Assad.
Não
oferecer informação correta é uma coisa. Mas outra coisa, bem diferente, é
trabalhar para atingir objetivo político sobre o qual os cidadãos dos EUA não
foram consultados nem discutiram, porque foram mantidos à margem, sem conhecer
os fatos.
Notas
dos tradutores
[1]
Ver,
por exemplo, telegrama 06DAMASCUS760, 9/2/2012, “EUA trabalha com a oposição na Síria, desde
2006” (em
português)
[3]
A
relação completa dos 147 órgãos da imprensa ocidental e árabe que estão
trabalhando na Síria (entre as quais a BBC, a Associated Press, a rede CBS, a TV
estatal italiana, o jornal
Guardian, a rede CNN, a rede EFE espanhola, o Financial
Times, a rede NBC e mais de uma centena de outros) pode ser lida diretamente
do Relatório da Missão da Liga Árabe que
visitou a Síria, (em inglês).
Sobre o Relatório da missão da
Liga Árabe na Síria, ver 3/2/2012, Pepe Escobar – “Vazou! A agenda da Liga Árabe para a
Síria” (em português)
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