segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Proibido para menores


Alfredo esperando adversário numa Praça em Laranjeiras - RJ 

Publicado em 26 de fevereiro de 2012 por Alfredo Pereira dos Santos

A imaginação humana deu à Terra as formas simétricas mais simples embora, em alguns casos, bastante estapafúrdias. Uma delas foi  a do ovo. Os egípcios antigos viam a terra como um ovo guardado de noite pela lua, que para eles era como “uma grande ave branca a chocar seu ovo”. Os cristãos gnósticos místicos dos primeiros e segundos séculos também viram o céu e a terra como um ovo do mundo na matriz do universo. Envolvendo o ovo encontrava-se uma serpente gigantesca que o aquecia, guardava, chocava e por vezes se alimentava dele.

Homero achava que a terra era um disco circular rodeado pelo rio oceano. Para Ésquilo o mundo era um paralelogramo perfeito. Os peruanos antigos achavam que a terra era quadrada. Os astecas imaginavam o universo como cinco quadrados, um central e os outros quatros representando os pontos cardeais.

Com o avanço do tempo os homens foram entendendo melhor o livro da natureza, de modo que pelo século V antes de Cristo os sábios gregos compreenderam que a Terra era um globo. Os pitagóricos e Platão basearam sua convicção em fundamentos estéticos. Como uma esfera é a forma matemática mais perfeita, claro que a Terra tinha que ter essa forma. Aristóteles concordou por razões de pura matemática.

Na época de Aristóteles a geografia matemática fez progressos extraordinários. Ainda não era possível fazer um mapa detalhado do mundo, mas usando matemática e astronomia eles chegaram a alguns cálculos surpreendentemente exatos. Grandes nomes surgiram desde aqueles tempos: Hiparco, Erastóstenes, Ptolomeu, tendo este último feito notável trabalho.

E então veio o retrocesso cristão. Os dirigentes da cristandade ortodoxa ergueram uma grande barreira contra o progresso do conhecimento acerca da terra.

Na idade média o conhecimento estava agrupado no Trivium (gramática, dialética e retórica) e no Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) e nelas a geografia não tinha lugar. Durante mil anos da idade média essa situação perdurou e a palavra geografia só entrou na língua inglesa nos meados do século XVI. Sem a dignidade de uma verdadeira disciplina a matéria tornou-se um saco cheio de pseudo-conhecimentos e dogmas bíblicos, misturados com histórias de viajantes, especulações de filósofos e imaginações de místicos. Entre os anos 300 e mil e 300 da era cristã a fé e o dogma suprimiram todo o conhecimento acumulado lenta, penosa e escrupulosamente pelos sábios antigos. As imagens que os cristãos daqueles tempos tinham do mundo eram pias caricaturas e nada mais.

A forma comum dessas caricaturas, conhecidas por “mapas de rodas”, descrevia a terra como um prato circular dividido por uma corrente de água em forma de T. Mas de 600 desses mapas chegaram até o nosso tempo, de modo que não nos faltam provas do que os geógrafos cristãos medievais pensavam.

As palavras do profeta Ezequiel jogaram no lixo conceitos como latitude e longitude. Jerusalém estava, para ele no meio das nações. AVulgata”, a versão latina da Bíblia, falava em “umbiculo terrae” (umbigo do mundo). E os geógrafos cristãos medievais acreditavam teimosamente nisso. Mas o tempo se encarregou de mostrar que eles estavam errados. Nesse ponto os cristãos não foram originais. Essa coisa de colocar o “lugar sagrado” no centro ou em espaços privilegiados foi feita também por hindus, babilônios, egípcios, árabes e chineses.

Uma autoridade religiosa, Lactâncio, a quem o imperador Constantino escolheu para preceptor do filho dizia:

Poderá alguém ser tão tolo ao ponto de acreditar que existem homens cujos pés estão mais altos do que suas cabeças, ou lugares onde as coisas podem estar penduradas para baixo, árvores a crescer para trás ou a chuva cair para cima? Onde está a maravilha dos jardins suspensos da Babilônia se vamos admitir a existência de um mundo nos antípodas?

Santo Agostinho e outros de igual estatura afirmaram, veementemente, que os antípodas não podiam existir.

Um intérprete de Boécio escreveu que:

... as estórias de antípodas são, em todos os aspectos, contraditórios da fé cristã”.

Naquela época, quem acreditasse em antípoda corria sério risco de ir para a fogueira.

Quem acha que deve haver limite para a credulidade humana deveria ler as teorias estapafúrdias dos geógrafos cristãos, tentando ajustar a realidade do mundo aos que estava nas Escrituras. É impressionante a convicção com que eles falavam as maiores bobagens. Isidoro, arcebispo de Sevilha, dizia:

É perfeitamente evidente que as duas partes Europa e áfrica ocupam metade do mundo e que a Ásia, sozinha, ocupa outra metade”.

As insuficiências das concepções geográficas dos cristãos tornaram-se evidentes com as viagens marítimas. Com o tempo os navegadores que transportavam um carregamento de azeite de Nápoles para Alexandria começaram a perceber que a realidade do mundo nada tinha a ver com o que diziam as Escrituras. Com o tempo os marinheiros foram acumulando fragmentos de informações úteis que nada tinham a ver com as especulações dos teólogos.

As escrituras, no apócrifo Livro II de Esdras (6:42), declaram “seis partes secastes”, querendo isso dizer que a terra era composta de seis partes de terra e um sétimo de água. Naturalmente que as versões atuais da Bíblia já foram modificadas, neste e em outros aspectos. As cartas marítimas, no entanto, não eram testadas pela literatura mas sim pela experiência. Não havia teologia que chegasse para persuadir um marinheiro de que as rochas contra as quais o seu barco naufragava não eram reais. Os contornos da costa marítima, traçados a custa de dura experiência, não podiam ser modificados ou ignorados por causa do que foi escrito por Isidoro de Sevilha ou mesmo por Santo Agostinho.

Conclusão: O mapa cristão de pouco servia aos europeus que procuravam a passagem para o oriente, para as Índias. Desse modo os soberanos europeus e outros patrocinadores que financiavam longas viagens por mar tiveram a que mandar a teologia às favas no que se referia aos seus dogmas geográficos. Jerusalém não estava no “umbigo do mundo”. O jardim do Éden foi deslocado para o além e no lugar de ambos apareceu a geometria da latitude e da longitude.

Os dogmas cristãos não prejudicaram apenas o progresso da geometria e, por conseguinte da humanidade, mas se fizeram sentir em outros campos.

A reforma e a contra-reforma forma rebeliões de nações menos civilizadas contra o domínio intelectual da Itália. Os três grandes nomes da reforma e da contra-reforma são Calvino, Lutero e Loiola. Os três, intelectualmente, são medievais em sua filosofia, comparados com os italianos que imediatamente os precederam, ou com homens como Erasmo ou Thomas Morus.

Filosoficamente, o século que se seguiu ao começo da reforma é um século estéril. Lutero e Calvino voltaram a Santo Agostinho e introduziram modificações na sua teologia. Essas inovações ajudaram na luta contra o papa (aumentando o poder dos reis), mas impediram que as igrejas protestantes se tornassem tão poderosas nos países protestantes como a católica nos países católicos. Os teólogos protestantes eram tão fanáticos como os teólogos católicos, mas tinham menos poder e eram, por conseguinte, menos capazes de fazer o mal.

Mas nem tudo era fanatismo e estupidez naqueles tempos. Mesmo assim a ciência avançou como se pode ver pelo trabalho de homens como Copérnico, Kepler e Galileu. Copérnico, que era um sacerdote, pertence ao século XVI e a sua tese de que o Sol estava no centro do universo e que a Terra girava em torno dele foi um avanço em relação às concepções existentes. No entanto Lutero ficou chocado com as suas teorias, dizendo:

O povo presta ouvidos a um astrônomo adventício que procura mostrar que a terra é que gira, e não os céus e o firmamento, o Sol e a Lua. Quem quer que deseje parecer inteligente tem de inventar um novo sistema, ou qual, dentre todo os sistemas, é, certamente, o melhor. Este tolo deseja transtornar toda ciência da astronomia; mas a escritura sagrada nos diz que Josué ordenou que o Sol parasse, e não a Terra”.

Calvino, igualmente, combateu Copérnico, dizendo:

O mundo está bem estabelecido, de modo que não pode ser movido”, e exclamou:”Quem se atreverá a colocar a autoridade de Copérnico acima da do Espírito Santo?”.

Nem sempre a Igreja Católica errou em matéria de ciência. Ela andou certa quando o papa Gregório XIII (1502-1585) resolveu botar em ordem o calendário. No entanto, os países não católicos não seguiram a modificação, adotando o Calendário Gregoriano, que usamos até hoje. Na Inglaterra e em suas colônias (incluindo a América do Norte) a correção somente foi feita em 1752. Na Rússia a mudança só deu no século XX.

Há um momento em que a estupidez se torna contraproducente.

A Igreja Católica também andou certa quando o papa João Paulo II pediu perdão a Galileu, assumindo um erro histórico.

Não vai faltar muito e algum papa vai pedir perdão a Darwin. Afinal de contas, é melhor ser um macaco evoluído do que um Adão degenerado.

Para saber mais (muito mais, pois o que vocês leram até aqui foi uma pequena amostra):

  1. Os Descobridores. Daniel J. Boorstin. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1989.
  2. História da Filosofia Ocidental. Bertrand Russell. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1969.
  3. A vida Secreta dos Números. George G. Szpiro. Difel, Rio de Janeiro, 2006.
Texto enviado pelo autor

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