*Urariano
Motta
Big Brother |
Eu
tenho visto, e as pessoas que me cercam também, aqui e ali jovens que se
agarram, e se apertam, e se sufocam aos beijos em público. Agem assim nas filas
dos supermercados, nos transportes coletivos, nas feiras livres, nos teatros, em
todos os lugares abertos à visitação da gente. Até parece haver uma onda, um
vagalhão de ternura que arrasta e assalta os corpos de nossos jovens. É como se
o amor estivesse no ar. É como se uma ardente atração fizesse com que se
friccionassem amorosa, irresistível e interminavelmente. Como se amam! dizemos
de início. Que paixão irreprimível! dizemos mais adiante. Que despudor!
dizemo-nos enfim, em silêncio.
A
evidência manda dizer que somente observa jovens quem não mais é um deles. Mas
consideremos que o não ter mais 20 anos de idade nos deixa mais à vontade,
permite à gente refletir melhor sobre os que estão no fogo. Então nos
perguntamos: que mal há na exibição da necessidade de uma pessoa que exige,
urgente, outra? O escândalo que sentimos diante de tais exibições não é já
manifestação de conservadorismo? Não é já, como nos diria um jovem, a expressão
de uma inveja, porque já não mais sentimos o fogo doce e vital da paixão? Então
nós, que não temos mais 20 anos, mas nem por isso alcançamos o tempo da invenção
da lâmpada elétrica, respondemos. Mas aos poucos, como convém a nossas pausas de
respiração.
Achamos
que assim como na organização da vida social, há fronteiras entre o público e o
privado. Isso se estende ao reino das paixões, cremos. Existem as públicas,
necessária e indissoluvelmente públicas, como a expressão do pensamento em
palavras, em símbolos, em imagens, em música. Um poema, um romance, um relato,
ainda que expressem a maior intimidade, aquela mesma que em palavras não
saberíamos expressar no cotidiano, esse poema, essa criação, ainda que atinja o
âmago do nosso ser, é por necessidade e realização um expressar para o mundo.
Que infelicidade seria, para todos nós, a poesia de Mario Benedetti cercada para
sempre entre quatro paredes. Que tristeza vil nos alcançaria se não soubéssemos
do verbo de João Cabral. Paixões assi m trazem o destino de se tornar públicas.
E elas só se realizam na medida mesmo em que as conheçam toda a gente. A
criação, quando guardada, fechada por injustificáveis escrúpulos ou descaso,
ainda não atingiu a sua força. É botão sem florescer.
O
que é diferente, acreditamos, das paixões dos indivíduos que se realizam neles
mesmos. Que importa ao distinto público a maneira como amamos a amada na
intimidade da nossa cama? Que importa à vida de toda a gente a expulsão de
humores, vale dizer, o orgasmo do nosso sexo? Se não fazemos disso a expressão
de algo menos físico, se não fundamos nesse ato, perdoem o termo, uma ontologia,
que importância tem para o mundo? Um cínico nos diria, com evidente inversão do
sentido da pergunta, que muito importa o mostrar o que é bom: “O que é bom é
para ser mostrado”. E que o beijar, o abraçar, o devorar, são atos naturais, e,
portanto, ao serem mostrados, é bom. Ao que responderíamos: existem outros atos
naturais, intestinos, mas que nem por isso devem ou podem em público ser
mostrados. É certo que ao respondermos assim, descemos ao rés do chão. Embora a
isto nos leve o nível da objeção, diria melhor, da abjeção dos cínicos, tentemos
subir um pouco acima do piso. Queremos dizer:
O
amor tem um significado que é a própria expressão do humano. Ele se ferramenta,
digamos assim, ele transforma em ferramentas a seu serviço tudo o que de bom e
de mau ao longo de uma vida, inteligência e sensibilidade somos. O tocar das
mãos, dos dedos das mãos, o viajar juntinhos, em silêncio, conversando sem
palavras, não é já uma eloquência do sentimento? “Nós nos queremos”, insinuam-se
os casais com um ser além até da consciência. Se o amor é tão íntimo, para quê
demonstrá-lo?
Mas
alto! Alto lá! Não podemos, em tempos tão raivosamente ferozes, ser tão ternos.
É tempo de fogo, de chumbo e de sangue, de catchup, de fast food, de correr e
viver veloz, tudo pode sumir num instante, e não podemos esperar de casais
jovens o conhecimento de anos. Em obediência, estacamos. Então fazemos a volta,
até o ponto mais preciso da paixão. Cheguemos àquele sentimento avassalador que
não respeita modos, regras e conveniências. E à sua mostra.
Haveria
em tais demonstrações de afeto uma genuína paixão? Sim, concedamos, se não por
método, pelo menos em respeito ao princípio de que sem prova não cabe imputar
crime a ninguém. Sim, concedamos: a julgar pelas exteriorizações, os jovens
estão cada vez mais apaixonados. Que bom! Mas ... permitam-nos a reflexão, esse
mal da idade. Essa genuína paixão não estaria vestida do exibicionismo do Big
Brother? Vestida, queremos dizer, em roupa que se apresenta ao público, e de tal
maneira que, ao ser retirada, desvela um rei nu sem nenhuma majestade. Sim, essa
vestimenta, hipotética, é de ouro, e reluz, pelo que se proclama à vista de
todos nós. É um Big Brother da paixão, essa roupa. Uma exibição onde os
portadores mais simplórios viram celebridades. Sob que atos? Ora, pela exibição
do que fazem na cama, no edredom, para toda a gente. É o próprio espetáculo do
afeto. Eles não se dizem, nem têm necessidade de dizer, eu te amo. Os lençóis
lhes falam, por eles. Se não há uma cama nos supermercados, o que se há de
fazer? Se as palavras lhes faltam, então as realizam com a mais brava, ia dizer
bravata, das eloquências: agem, com o furor das sugadas no cangote, do amassar
dos seios, diante dos olhos de todo nós, numa televisão ao vivo. Nós, que
viramos os grandes irmãos, os voyeurs basbaques. “Então isto é a paixão, e eu
não o sabia”, dizemo-nos, como um novo Monsieur Jourdain, de
Molière.
Refeitos
da descoberta, acordamos. Então um demônio nos sopra aos ouvidos que há uma
vulgarização do afeto. E vulgar, acrescenta o demo, não somente no sentido de
divulgar, de tornar público, ou no significado de que o sentimento da paixão é
comum a todos os homens. Mas no sentido mais corriqueiro, vulgar, de algo que
desceu de uma instância mais digna, que se acanalhou, sorri o demo. Se o amor,
se a nossa paixão é uma pepita guardada, rara, única, para quê exibi-la como um
novo-rico, como um bárbaro? Mas aí, a acreditar nessa pergunta-afirmação,
entraríamos no terreno que nega ao sentimento que se exibe o status de uma
genuína paixão. Façamos então uma última pausa, para
concluir.
Imaginemos
esses casais, se prosperarem até uma união mais duradoura, imaginemos esses
jovens quando as dificuldades da vida bater à sua porta. Queremos dizer,
imaginemo-los naquele provável tempo em que o dinheiro para a diversão lhes
faltar. Mais grave, imaginemo-los naquele tempo em que a doença lhes bater no
domicílio, sem aviso e sem agenda. Pior do que tudo; imaginemo-los naquele tempo
em que o fogo da paixão tiver queimado o vigor das melhores forças. Como
reagirão? Se o amor se foi, se a paixão queimou até as cinzas, o que é o mesmo
que dizer: se os corpinhos sarados perderam a forma, se os apertos, por morte do
exterior estímulo, não mais se dão, se um beijo, num supremo esforço, não mais
substitui a palavra e o sentimento amor....
“Corta”,
diz-nos o diabo. Sabemos por quê ele pula e nos interrompe. Esse final não está
no Big Brother.
Enviado
pelo autor
Ilustração extraída do Blog do Hélio Aguiar
Urariano
Motta*
é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor
de Soledad no
Recife (Boitempo, 2009)
sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973,
e Os corações
futuristas (Recife, Bagaço,
1997).
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