29/7/1987,
Thomas Sankara (então presidente
revolucionário de Burkina
Faso [1]) - Discurso
na Conferência da Organização da Unidade Africana, Addis Abeba, Etiópia e a seguir traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Ver
também
18/2/2012,
redecastorphoto, “Paralelismos:
Sankara, o herói que desafiou os credores”
Não
podemos pagar a dívida. E com isso não quero dizer que somos contra a moral, a
dignidade e o dever de cumprir nossa palavra. Quero dizer que a moral, a
dignidade e o dever de cumprir nossa palavra não são a mesma coisa entre os
ricos e os pobres. A Bíblia, o Corão, não podem servir do mesmo modo aos que
exploram os pobres e aos explorados. É preciso que haja duas edições da Bíblia e
duas edições do Corão.
Não
podemos aceitar que nos deem lições de dignidade. Que elogiem os que pagam as
dívidas, e desqualifiquem os que não pagam, que nos digam que os que não pagam
não merecem confiança. Ao contrário disso, devemos dizer que, hoje, os maiores
assaltantes são os mais ricos, e que isso é visto como normal. Porque um pobre,
quando rouba, comete pequeno crime, um pecadilho. Trata-se de sobreviver, de
necessidade. Mas os ricos, quando roubam, têm autoridade fiscal, ou roubam na
Alfândega. São os que exploram o povo.
Senhor
presidente, minha ideia aqui não é provocar, nem fazer espetáculo. Apenas digo
aqui o que todos nós pensamos e desejamos. Quem aqui não deseja que essa dívida
seja simplesmente cancelada? Quem não desejar que essa dívida seja cancelada,
que tome seu avião é vá pagá-la imediatamente, ao Banco Mundial!
Tampouco
desejo que pensem que a proposta de Burkina Faso é ideia saída da cabeça de
jovens inexperientes e imaturos, ou que a ideia de não pagar a dívida seja ideia
só dos revolucionários. Digo que a proposta de não pagarmos a dívida é proposta
objetiva, e é nossa obrigação. E posso citar muitos exemplos de outros que
também disseram que não paguemos a dívida, revolucionários e não
revolucionários, jovens e velhos.
Cito,
por exemplo, Fidel Castro, que já disse que não paguemos. É revolucionário, como
eu; e mais velho que eu. Mas posso citar também François Mitterand, que também
disse que os países africanos, os países pobres, não podem pagar a dívida. Posso
citar a senhora primeira-ministra. Não sei quantos anos tem e não perguntarei,
mas é mais um exemplo. Posso citar também o presidente Felix Houphoüet-Boigny,
que não é tão jovem e declarou, oficialmente, publicamente, pelo menos em
relação ao seu próprio país, que a Costa do Marfim não pode pagar a dívida. Ora,
a Costa do Marfim classifica-se entre os países mais ricos da África, ou pelo
menos da África ‘francófona’. Por isso também, a Costa do Marfim paga
contribuição maior aqui [risos].
Mas,
senhor presidente, não falo para provocar. É preciso que os senhores nos
ofereçam melhores soluções. Gostaria que nossa conferência adotasse como
resolução muito necessária, uma declaração de que não podemos pagar a dívida. E
que seja resolução conjunta, não declarações individuais.
É
importante que assim seja, para que não nos exponhamos a ser assassinados. Se
Burkina Faso permanecer sozinha, como único país que se recusa a pagar a dívida,
eu não estarei aqui, na nossa próxima Conferência. Mas se, ao contrário,
obtivermos aqui o apoio de todos, de que eu tanto preciso, conseguiremos não ser
obrigados a pagar.
Se
conseguirmos não pagar essa dívida, poderemos aplicar nossos pequenos recursos
ao nosso próprio desenvolvimento.
Para
terminar, quero dizer que cada vez que um país africano compra uma arma, é arma
que será usada contra outro africano. Não será usada contra europeu nem contra
país asiático. Será usada contra africanos. Portanto, temos de tirar vantagem da
questão da dívida, para lançar, para encaminhar alguma solução para o problema
das armas. Sou militar e ando armado. Mas, senhor presidente, sei que o
desarmamento é questão inadiável. Eu ando armado, com a única arma que tenho. E
muitos têm um arsenal escondido em casa. Assim, queridos irmãos, com o apoio de
todos, conseguiremos ter paz em casa.
Também
conseguiremos usar as imensas potencialidades da África para desenvolver a
África. Nosso solo é rico. Nosso subsolo é rico. Temos braços e temos um vasto
mercado, do norte ao sul e de leste a oeste. Temos capacidades intelectuais para
criar ou, no mínimo, para usar todas as tecnologias e ciências, onde quer que as
encontremos.
Senhor
presidente, façamos dessa Conferência de Addis Abeba uma frente unida contra o
pagamento da dívida. Façamos dessa Conferência de Addis Abeba uma frente unida
para limitar o comércio de armas entre os países pobres e fracos. Os porretes e
facões que se compram por toda parte são inúteis.
Façamos
também dessa Conferência uma frente a favor do mercado africano, a favor do
mercado para os africanos. Produzir na África, transformar na África e consumir
na África. Vamos produzir o que nos falta, e consumir nossa produção, em vez de
importar tudo.
Burkina
Faso aqui está para apresentar os tecidos de algodão que nós mesmos estamos
produzindo. Algodão plantado em Burkina Faso, tecido em Burkina Faso, modelado e
costurado em Burkina Faso, para vestir os burkinabeses. Minha delegação e eu
aqui estamos, vestidos por nossos tecelões camponeses. Não há aqui um único fio
importado da Europa ou dos EUA. Mas não estou aqui para apresentar desfile de
modas. Queria dizer apenas que temos de aprender a viver à africana, porque não
há outro meio para vivermos livres e com dignidade.
Agradeço
a atenção, senhor presidente. Pátria ou morte! Venceremos!
_______________________
[1]
Thomas Sankara [1949-1987] foi assassinado três meses depois desse discurso.
Lê-se sobre ele, em “Who killed the lion
king?”:
“Thomas Sankara liderou, entre 1983 e 1987, uma das revoluções mais radicais e
criativas que a África produziu em décadas. Sankara inaugurou uma trilha que
outros países africanos poderiam seguir, genuína alternativa à modernização
conservadora do continente. Como outros líderes africanos radicais, Sankara foi
assassinado. O homem que o matou continua no poder, há 24 anos, sempre apoiado
pelo ocidente”.
A história de Sankara é fantástica e mostra que todos aqueles que decidirem trilhar um rumo mais autônomo serão sumariamente decapitados, quando não deixados vivos e castrados.
ResponderExcluirMais um entre tantos, antes, e depois dele, e não só em África.
Um exemplo que me parece bem semelhante, em potência de representação popular e espírito revolucionário, é Jean-Bertrand Aristide, esse, deixado vivo até agora, mas politicamente castrado.
Obrigado por compartilhar.
Quem se interessar pelo percurso de Sankara, não deve deixar de ver o excelente documentário "Thomas Sankara, o Homem Íntegro", com legendas em português, aqui:
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/playlist?list=PLC40CA762239C180F