Geneton Moraes Neto (E) e Geraldo Vandré (D) |
Publicado em 02/02/2012 por *Urariano Motta
Recife
(PE) -
O leitor Xico Júnior, na coluna passada, pediu um texto sobre Geraldo Vandré.
Procurarei atendê-lo agora.
Lembro
que ao ver a entrevista de Vandré na Globo News, passei dias ruminando. Vinha
uma canção íntima, que na década de 70 era senha:
“Eu
vou levando a minha vida enfim
Cantando
e canto sim
E
não cantava se não fosse assim
Levando
pra quem me ouvir
Certezas
e esperanças pra trocar
Por
dores e tristezas que bem sei
Um
dia ainda vão findar...
Deixa
que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra
que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”
Que
revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que
peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na
entrevista: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o
pensamento cheio de interrupções. O diabo era que nesse pensamento falho, ainda
assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia uma certa
memória, montada, como em toda memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes
cirúrgicos que expurgavam a violência do regime militar.
E
houve então a primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorre com Geneton Moraes
Neto (junto com Vandré na foto) o que é comum em 99% dos repórteres na imprensa
do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela
idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por
coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua
experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam
com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas
escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam
os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da
dinâmica.
Pela
pesquisa, pelo aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa
impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré
era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter
nessas canções, parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré
refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o
entrevistador houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma
canção do senhor de boné, direta como um soco:
“O
terreiro lá de casa
Não
se varre com vassoura,
Varre
com ponta de sabre
E
bala de metralhadora...”.
Mas
isso ficou oculto das pessoas que viram o compositor pela primeira vez. É
possível que houvesse uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no
Brasil tem antes da realidade. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia
que mostrar Vandré como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas
aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi
um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré,
bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a
logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o
regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de
paradoxos e ruínas.
Na
verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua
derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os
amigos de 68” , uma militante médica, a quem não pedi
autorização para divulgar o nome, informou:
“...
Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando
ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo
alegado: Vandré estaria “armado com uma faca” e ameaçava matar a sua irmã. Só o
vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica.
Aparentava “tranquilidade”, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com
atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não
consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo
aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos
anos 60/70...”
Hemingway em “O Velho e o Mar”
dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista,
o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela,
Vandré nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para
o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi
destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas
canções, ele não foi derrotado.
Urariano
Motta*
é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor
de Soledad
no Recife (Boitempo,
2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em
1973, e Os
corações futuristas (Recife,
Bagaço, 1997).
Enviado
por Direto
da Redação
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirO nosso escriba pernambucano sempre acerta na mosca. Com incomparável estilo e ética indiscutível. As palavras que jorram dos seus dedos encerram muita luta (contínua) o que lhe desenvolveu combativo espírito crítico, assentado em pensamento autônomo, radicalmente voltado às causas sociais e do próximo. Gosto muito dele. Devo à Caia a sua descoberta, para mim maravilhosa, pois eu estancara em Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, João Cabral, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, para ficarmos com seus poetas...
Urariano salva as letras locais da contaminação pós-moderna, eis aí o que penso.
Abraços do
ArnaC
Salve, Arnaldo. A leitura e o elogio de um intelectual da tua altura são estímulo na caminhada.
ResponderExcluirAbraços.