Publicado
em 23/02/2012 por Urariano Motta
Recife
(PE)
-
Mais de uma vez eu já havia notado que os apresentadores de telejornalismo têm
uma língua diferente da falada no Brasil. Mas a coisa se tornou mais séria
quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os
apresentadores locais, de cada região, também falavam uma outra língua. O que me
despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de
Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo.
Assistam em “Falta
de sinalização em avenida traz perigo para
pedestres”.
Na
ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas, somente chamavam Beberibe de
Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa
avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se
escreva Beberibe.
Ligo
para a redação da Globo Nordeste. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma
errada de falar, como aprenderia depois:
-
Amigo, por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de bibiribe?
-
Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bebê.
-
Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?
-
Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma
fonoaudióloga.
Ah,
bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como
autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio.
Ou seja, assim me falou a pesquisa:
“Em
1974,
a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de
vídeo... Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a
trabalhar na Globo. Como conta Alice-Maria, uma das idealizadoras do Jornal
Nacional: “sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que
falassem com naturalidade”.
Foi
nesta época, que Beuttenmüller, começou a uniformizar a fala dos repórteres e
locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu
trabalho de
“definição
de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de
filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a
pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria do Rio de
Janeiro”. (Destaque meu.)
Mas
isso é a morte da língua. É um extermínio das falas regionais, na voz dos
repórteres e apresentadores. Os falares diversos, certos/errados aos quais
Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha
da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”,
ganha aqui um status de anulação da identidade, em que os apresentadores nativos
se envergonham da própria fala. Assim, repórteres locais, “nativos”, se referem
ao pequi do Ceará como “pê-qui”, enquanto os agricultores respondem com um
piqui.
De
um modo geral, as vogais abertas, uma característica do Nordeste, passaram a se
pronunciar fechadas: nosso é, de “E”, virou ê. E defunto (difunto, em nossa fala
“errada”) se transformou em dê-funto. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção.
Olinda, que o prefeito da cidade e todo olindense chamam de Ó-linda, nos
telejornais virou Ô-linda. Diabo, falar Ó-linda é histórico, desde Duarte
Coelho. Coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda,
quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem
é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É uma outra coisa, um ridículo sem
fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques
caricaturais em tipos de físicos europeus.
Esse
ar “civilizado” de apresentadores regionais mereceria um Molière. Enunciam,
sempre sob orientação do fonoaudiólogo, “mê-ninô”, “bô-necÔ”, enquanto o povo,
na história viva da língua, continua com miní-nu e buneco. O que antes era uma
transformação do sotaque, pois na telinha da sala os apresentadores falariam o
português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável
ignorância, eles passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da
região.
O
tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como
Pêr-nambuco. E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do
desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da
ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades
nordestinas que, acreditem amigos, eu vi: sabedores que são da tendência
regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro
na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro,
só podia mesmo ser Jô-azeiro.
*Urariano
Motta é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no
Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia
Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações
futuristas (Recife, Bagaço,
1997).
Enviado
por Direto
da Redação
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.