Publicado em 16/02/2012 por Urariano Motta
Recife
(PE) -
No
primeiro deles, era domingo de carnaval 1958 em Água Fria. Ali, em frente ao
Cinema Império, no largo do bairro, passavam mulheres, meninos, homens, piratas,
colombinas, vedetes, palhaços, toureiros, zorros, ursos, lança-perfumes,
bisnagas, perfumes, promessas de corpos nus que não podíamos pegar.
Havia um
suor bom onde se colavam os confetes, umas peles abrasadas, uns sovacos mal
raspados que eram em si mesmos fetiches do sexo feminino, esbarrando-se num fogo
que desejava a tudo queimar, ardendo até a alma pobre da
gente.
Era
uma explosão de braços e pernas no frevo, uma multidão revolta, uma humanidade
negra, mulata, branca, revoltada, que se anunciava, e não sabíamos: atenção,
menino, atenção, infância: “nós passaremos”.
Acaso sabíamos que nem sombra de sêmen e amor restaria no corpo imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos?
Ah, mas pressentíamos e, sem ciência aprendida, somente com o saber da urgência do nosso sangue, com a percepção transmitida de gente a gente, que corria a multidão, que vem de gerações desde que o homem se fez na terra, gritávamos:
Acaso sabíamos que nem sombra de sêmen e amor restaria no corpo imperioso, flamante daquela mulher endemoninhada? Que suas coxas não seriam eternas, sabíamos?
Ah, mas pressentíamos e, sem ciência aprendida, somente com o saber da urgência do nosso sangue, com a percepção transmitida de gente a gente, que corria a multidão, que vem de gerações desde que o homem se fez na terra, gritávamos:
“Felinto,
Pedro Salgado,
Guilherme,
Fenelon,
Cadê
teus blocos famosos?
Bloco
das Flores, Andaluzas,
Pirilampos,
Apois-Fum,
Dos
carnavais saudosos?
Na
alta madrugada
O
coro entoava
Do
bloco a marcha-regresso
Que
era o sucesso
Dos
tempos ideais
Do
velho Raul Morais:
‘Adeus,
adeus, ó minha gente,
que
já cantamos bastante..’
E
Recife adormecia
Ficava
a sonhar
Ao
som da triste melodia....”
Então
vinham os acordes, letais. Que em letras de fogo deveriam estar gravados.
Ouçam:
No
segundo dia, é segunda-feira de carnaval em 2005. Eu me recupero de uma
cirurgia, que se não foi ruim, fora rim sem dúvida.
Sentado espiono os blocos
que passam na rua.
O som dos metais, o chamamento à desordem é uma ordem lá
fora. As fantasias e os mascarados passam como os navios e os trens passam, como
o gozo proibido e negado passa. A música do frevo estoura em todo o ar e
paisagem como uma perseguição.
Assim sentado sinto-me como o personagem de
Hitchcock, o fotógrafo Jeff, de Janela Indiscreta.
A
vida é irônica.
No fim de 2004, eu havia dito à mulher e aos filhos, como todos os anos repito e reclamo: “O próximo carnaval eu não brinco. Chega! Quero distância desse barulho”; e a trincar os dentes acrescentara, como todos os anos: “eu não suporto mais tamanha agitação. Chega!”.
Deus me ouviu. À sua maneira me ouviu: aqui estou, longe da folia, conforme o desejo inicial, mas sob estrita recomendação médica, incapaz absoluto de pular, de saltar, tão frágil quanto o homem de vidro, aquele em que se transformou O licenciado Vidraça, de Cervantes. “Este ano eu não brinco”, dissera, e os deuses me ouviram.
Então ouço uma canção na rua, “neste carnaval, quá-quá-quá-quá, meu prazer é gargalhar”.
No fim de 2004, eu havia dito à mulher e aos filhos, como todos os anos repito e reclamo: “O próximo carnaval eu não brinco. Chega! Quero distância desse barulho”; e a trincar os dentes acrescentara, como todos os anos: “eu não suporto mais tamanha agitação. Chega!”.
Deus me ouviu. À sua maneira me ouviu: aqui estou, longe da folia, conforme o desejo inicial, mas sob estrita recomendação médica, incapaz absoluto de pular, de saltar, tão frágil quanto o homem de vidro, aquele em que se transformou O licenciado Vidraça, de Cervantes. “Este ano eu não brinco”, dissera, e os deuses me ouviram.
Então ouço uma canção na rua, “neste carnaval, quá-quá-quá-quá, meu prazer é gargalhar”.
Ouvia
isso e o paradoxo vinha: agora que não podia sair, brincar, pular, beber, beber
até cair, agora que estava na paz do recolhimento, agora que ganhava o
privilégio de ser evitado pelos alegres foliões, justamente agora sentia uma
falta extraordinária de carnaval.
No momento em que podia ficar em casa a ler e
a ouvir música suave, ah, como desejava “Olinda, quero cantar”, como me acendia
o desejo de estar na multidão, com os metais a gritar o mais alto frevo, ah,
como desejava receber cotoveladas e empurrões à altura do rim, da cicatriz no
ventre!
Ah, como e quanto desejava mergulhar de cabeça no álcool, na cachaça, no sol quente, no azul luminoso, mergulhar até virar éter, lança-perfume, porque forte era a consciência do quanto breve e estúpida era, é a nossa existência.
Ah, como e quanto desejava mergulhar de cabeça no álcool, na cachaça, no sol quente, no azul luminoso, mergulhar até virar éter, lança-perfume, porque forte era a consciência do quanto breve e estúpida era, é a nossa existência.
Agora,
hoje, no terceiro dia são vésperas do carnaval de 2012. A casa se enche de
máscaras, coroas de pano de rei, coroa de latão de rainha. E mais licor de
jenipapo, de caju e de laranja-cravo. Um filho chega do Rio, louco e ansioso por
Olinda, a filha vai para um bloco de jovens na Cidade Alta.
À
minha revelia, a senhora esposa é toda preparação para os urgentes, alegres e
felizes três próximos dias.
Por mim, não, eu não brincava, sem dúvida. Por mim, eu me recolhia para altos estudos, leituras, silêncio e meditações. Mas como vou decepcioná-los? É coisa muito feia atrapalhar a felicidade dos outros. E depois, não sou mais, como antes, um convalescente sem câmera a imitar o fotógrafo de Janela Indiscreta.
Por mim, não, eu não brincava, sem dúvida. Por mim, eu me recolhia para altos estudos, leituras, silêncio e meditações. Mas como vou decepcioná-los? É coisa muito feia atrapalhar a felicidade dos outros. E depois, não sou mais, como antes, um convalescente sem câmera a imitar o fotógrafo de Janela Indiscreta.
Chega.
Por
enquanto, a fantasia é outra.
*Urariano
Motta é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009)
sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973,
e Os corações futuristas (Recife, Bagaço,
1997).
Enviado por Direto da Redação
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