Da
libertação ao assassinato, em três rápidos
“rounds”
19/2/2012, Andrew J. Bacevich, Tom
Dispatch
From Liberation to Assassination in Three Quick
Rounds
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Andrew J. Bacevic |
Com
os EUA já bem entrados na segunda década do que o Pentágono chama agora, para
modernizá-la, de “era de conflito persistente”, a “Guerra Antes Conhecida Como
Guerra Global ao Terror” (sigla não oficial: GACGGT) parece cada vez mais
fragmentada e difusa. Sem vitória e pouco interessados em reconhecer a derrota,
os militares dos EUA retiraram-se do Iraque. Agora, tentam retirar-se do
Afeganistão, onde os fatos teimam em não permitir que se veja lá qualquer
resultado positivo.
Em
outros pontos – no Paquistão, na Líbia, no Iêmen e Somália, por exemplo – as
forças dos EUA trabalham empenhadamente para abrir novos fronts. Relatórios
divulgados que informam que os EUA estão fixando “uma constelação de bases
secretas de aviões-robôs, os
drones, no, ou próximas do, Chifre da África, e na Península
Arábica, sugerem que o âmbito das operações só fará crescer. Em matéria de
primeira página, o New York Times [1] descreveu
planos para “dar mais espessura” [orig. “thickening”] à presença global
das forças de operações especiais dos EUA. Planos acelerados na Marinha, para
converter um envelhecido veículo anfíbio em “base avançada flutuante” – uma
plataforma móvel de lançamento, tanto de ataques de comandos [2]
como
de operações de semeadura de minas
[3]
no
Golfo Persa – só reforçam esse ponto. Mas, à medida que alguns fronts são
fechados e outros são inaugurados, a narrativa da guerra vai-se tornando cada
dia mais difícil de entender. Quanto
falta para que cheguemos ao equivalente a Berlim, do “formato” GACGGT? O que,
exatamente, é o equivalente a Berlim, do “formato” GACGGT? Afinal, há aí algum
roteiro discernível?
Observada
em close-up, a “guerra” parece
ter perdido forma e contornos. Mas, se nos afastamos um pouco, começam a
aparecer padrões importantes. O que aqui se lerá, adiante, é uma tentativa de
descobrir como está o placar da GACGGT, dividindo-se o conflito em três rounds de jogo. Embora talvez haja muitos
outros rounds pela frente, eis o que os EUA já padecemos,
até agora.
A era
Rumsfeld
1º Round: Libertação. Mais
que qualquer outro personagem – mais que o próprio presidente – o secretário de
Defesa, Donald Rumsfeld dominou a cena nos primeiros estágios da guerra.
Parecendo às vezes personagem maior que a vida – o “Secretário de Guerra” aos
olhos de um fã clube neoconservador de adoradores (embora pouco confiáveis) –
Rumsfeld dedicou-se à ideia segundo a qual, em batalha, a rapidez é a chave do
sucesso. Jogou todo o seu peso a favor de uma versão norte-americana de blitzkrieg, “guerra relâmpago”. As
forças dos EUA, repetiu com regularidade, eram mais inteligentes e mais ágeis
que qualquer adversário. Empregá-las em táticas que tirassem vantagem dessas
qualidades era vitória garantida. A imprensa cunhou, para designar esse
conceito, a expressão “choque e pavor” [orig. “shock and
awe”].
Ninguém
cria mais apaixonadamente em “choque e pavor” que o próprio Rumsfeld. O projeto
da “Operação Liberdade Duradoura” [orig.
Operation Enduring Freedom], lançada em outubro de 2001, e a
“Operação Liberdade para o Iraque” [orig.
Operation Iraqi Freedom] iniciada em março de 2003, refletia
aquela fé. Em todos os casos, a campanha teve início promissor, com as tropas
dos EUA conseguindo acertar alguns golpes rápidos e impressionantes. Mas em
nenhum caso, contudo, foram capazes de derrubar o oponente; nem sequer, de fato,
de ver com clareza quem era o oponente. Desgraçadamente para Rumsfeld, os
“terroristas” recusaram-se a jogar pelas regras de Rumsfeld, e as forças dos EUA
mostraram ser menos inteligentes e ágeis do que faziam crer os seus equipamentos
de alta tecnologia – e sua máquina de relações públicas pela imprensa. De fato,
quando atacados por pequenos grupos de guerrilheiros ou enxames de jihadis, as forças dos EUA
mostraram-se surpreendentemente lentas para entender quem, ou o quê, os
atacara.
No
Afeganistão, Rumsfeld deixou que a vitória lhe escapasse entre os dedos. No
Iraque, o seu mau gerenciamento da campanha pôs os EUA face a face com completa
derrota. O chefe de Rumsfeld sonhara com libertar (e, claro, dominar) todo o
mundo islâmico, com uma série de golpes curtos e rápidos. Em vez disso, Bush
obteve duas versões de uma longa, difícil, terrível campanha. Ao final de
2006,
a “Choque e Pavor” estava acabada. Muito atrasado em
relação ao resto do país e de todas as forças armadas, o presidente afinal
perdeu a confiança nas teorias de seu secretário de Defesa. Resultado, Rumsfeld
perdeu o emprego. O 1º
Round chegou ao fim.
Embaraçoso, mas os EUA perderam por pontos.
A era
Petraeus
2º Round: Pacificação. Entra
em cena o general David Petraeus. Mais que qualquer outro personagem com ou sem
uniforme, Petraeus dominou a segunda fase da GACGGT. O 2º round começou com baixas expectativas.
Idos eram os tempos da conversa de libertação. Idas, também, as previsões de
vitórias relâmpago. Os EUA já aceitavam acordo por muito menos, embora
continuassem a declarar vitória.
Petraeus
apareceu com uma fórmula para restaurar um arremedo de ordem, oferecida a países
já reduzidos a ruínas (resultado do 1º round). A ordem permitiria que os EUA
conseguissem sair de lá, dando alguma impressão de que suas políticas tivessem
alcançado alguns dos seus objetivos. Essa passou a ser a definição de trabalho,
de “vitória”.
Petraeus
concebeu a palavra Contrainsurgência (abreviada, COIN), como nome formal da tal
fórmula. Em vez de tentar derrotar o inimigo, a COIN visava a facilitar o parto
de um estado-nação viável e estável. Foi esse o objetivo declarado da “avançada”
[orig. “surge”] no Iraque ordenada pelo presidente George W. Bush no
final de 2006.
Com Petraeus no comando, a violência naquele país
declinou verticalmente. Se esse efeito foi provocado, ou se foi pura
coincidência [4]
ainda
não se sabe com certeza e discussão prossegue. Mesmo assim, o aparente sucesso
de Petraeus convenceu alguns observadores de que a contrainsurgência numa escala
global – GCOIN, como a chamavam – formaria doravante a base da estratégia
nacional de segurança dos EUA. Eis ali, argumentavam, uma abordagem que
conseguiria arrancar definitivamente os EUA, da GACGGT, com alguma espécie de
vitória. Em vez de usar “choque e pavor” para libertar o mundo islâmico, as
forças dos EUA aplicariam a doutrina da contrainsurgência para
pacificá-lo.
A tarefa de comprovar a validade da teoria da COIN em
áreas além do Iraque coube ao general Stanley McChrystal, nomeado com muito mais
fanfarras, em 2009, para comandar as forças dos EUA e da OTAN no Afeganistão.
Matérias de jornal celebraram McChrystal [5]
como
outro Petraeus, candidato ideal para repetir os sucessos já creditados ao “Rei
David.”
O reinado de McChrystal começou num momento em que
Washington vivia tomada por um culto ao generalato. Em vez de a tecnologia ser o
fator determinante do sucesso, como Rumsfeld acreditava, a chave era pôr no
poder o general certo e deixar que ele comandasse. Figuras políticas dos dois
lados do plenário apressaram-se a declarar que McChrystal era o general certo
para o Afeganistão. Especialistas de todos os lados juntaram-se ao coro [6].
Uma vez instalado em Kabul, o general estudou a situação
e, para surpresa de ninguém, anunciou [7]
que “o
sucesso exige uma ampla campanha de contrainsurgência”. Para implementá-la seria
necessário outra “avançada” afegã, em tudo semelhante à que, como se supunha,
teria virado o jogo no Iraque. Em dezembro de 2009, embora dando mostras de
nenhum entusiasmo, o presidente Barack Obama acedeu [8]
ao
pedido (ou ultimato) de seu general-no-comando. Aumentou rapidamente o número de
soldados dos EUA enviados para combater no
Afeganistão.
Nesse ponto, as coisas começaram a dar para trás. O
avanço na direção de reduzir a insurgência ou melhorar as capacidades das forças
de segurança afegãs era – até nas avaliações mais generosas – praticamente
zero. McChrystal fez promessas [9]
– como
a de atender as necessidades básicas dos afegãos com “governo entregue numa
caixa, pronto para funcionar” – que logo se mostrou absolutamente incapaz de
cumprir. As relações com o governo do presidente Hamid Karzai permaneciam
tensas. As relações com o vizinho Paquistão, que jamais haviam sido boas, só
pioraram. Os dois governos manifestavam profundo desagrado [10]
em
face do que viam como comportamento insuportavelmente arrogante dos
norte-americanos, que matavam ou feriam civis com incômoda
frequência.
Para piorar, apesar dos elogios e muitas esperanças, a
nomeação de McChrystal acabou por revelar-se gravemente errada: era o homem
errado para o serviço. O que mais chamou a atenção, em McChrystal, foi a
absoluta incapacidade de entender a necessidade de, no mínimo, fingir
respeito [11]
ao
princípio constitucional segundo o qual quem manda nos militares é Washington, o
poder civil. No verão de 2010, McChrystal já estava demitido. E Petraeus voltou
à cena.
Em
Washington (embora não em Kabul), a reputação superinflada de Petraeus fez crer
que, com a estratégia de McChrystal de pacificação, o Afeganistão seria causa
perdida. Com certeza absoluta o mais celebrado soldado de sua geração repetiria
no Afeganistão a mágica que operara no Iraque, afirmando a própria grandeza e
continuada viabilidade da COIN.
Mas, infelizmente, não aconteceria. As condições no
Afeganistão melhoraram durante o período de Petraeus – embora “melhoraram” nem
seja a palavra certa – mas só muito modestamente. A guerra sem fim passou a ser
o que qualquer um facilmente descreveria como “sem saída” [orig. guagmire]. Com considerável ânimo
para simplificar as coisas, um relatório do próprio governo, o 2011 National Intelligence
Estimate preferiu a palavra
“impasse” [orig.stalemate]. [12]
Rapidamente
já não se ouvia mais a conversa sobre “contrainsurgência ampla”. Com a linha de
definição de sucesso despencando cada vez mais para baixo, a solução de
abandonar a luta nas mãos das forças afegãs de segurança e voltar correndo para
casa passou a ser anunciada como objetivo de
guerra.
Essa
missão ficou inconclusa, quando o próprio Petraeus tomou o rumo de casa,
abandonando o exército para tornar-se diretor da CIA. Apesar de Petraeus
continuar alvo de alta consideração, sua aposentadoria do serviço ativo deixou o
culto ao generalato em situação mais, que menos, lastimável. Quando o general
John Allen foi nomeado para substituir Petraeus – tornando-se assim o 8º oficial
nomeado para comandar aquela inacabável Guerra do Afeganistão – já ninguém
acreditava que algum general, por mais certo que fosse, faria mágicas. Nesse tom
generalizante, terminou o 2º round da
GACGGT.
A era
Vickers
3º Round: Assassinato.
Diferente de Donald Rumsfeld e David Petraeus, Michael Vickers [13]
jamais
alcançou o status de celebridade.
Apesar disso, ninguém, nem uniformizado nem paisano, merece, mais que Vickers –
que carrega o título de Subsecretário de Defesa para a Inteligência – merece ser
reconhecido como a figura emblemática do 3º round da GACGGT. Sua persona discreta,
low-profile, adapta-se perfeitamente à última transfiguração pela
qual passou a guerra. Poucos o conhecem, fora de Washington, o que é ótimo,
porque ele comanda uma guerra à qual pouca gente fora de Washington continua a
dar atenção.
Depois
da aposentadoria do Secretário de Defesa Robert Gates, Vickers é o mais alto
funcionário remanescente do Pentágono de George W. Bush. Seu currículo nada tem
de eclético. Serviu nas Forças Especiais do Exército dos EUA e foi agente
operacional da CIA. Assim disfarçado, teve papel central no apoio aos mujahedeen afegãos na guerra contra os ocupantes
soviéticos nos anos 1980s. Depois, trabalhou num think tank em Washington, e obteve seu diploma PhD
em estudos estratégicos na Johns
Hopkins University (título da dissertação de conclusão de curso: “A
Estrutura das Revoluções Militares”).
Nem
durante a era Bush, Vickers jamais subscreveu as esperanças de que os EUA
pudessem libertar ou pacificar o mundo islâmico. Sobre a GACGGT sempre teve
diagnóstico que, mais singelo, impossível: “Só quero matar aqueles caras” –
dizia ele. “Aqueles caras” eram os afiliados da al-Qaeda. Matar todos que
queiram matar norte-americanos e não parar até matar o último: essa é a
estratégia de Vickers, a qual, na presidência de Obama, suplantou a COIN como
derradeira variante da estratégia dos EUA.
A abordagem de Vickers implica máxima agressividade para
eliminar matadores potenciais, onde quer que se escondam, e usando para isso
todos os meios necessários. Vickers “tende a raciocinar como gângster” – comenta
um de seus admiradores [14]. “Ele
entende as tendências e, em seguida, altera as regras do jogo, para torná-las
mais vantajosas para o lado de vocês.”
No
3º round da GACGGT, trata-se
exclusivamente de burlar, quebrar, ignorar e reinventar regras para torná-las
vantajosas ao que se suponha que mais interesse aos EUA. Assim como a estratégia
COIN suplantou a estratégia “choque e pavor”, um amplo, multidirecional programa
de assassinatos seletivos suplantou a estratégia COIN, como expressão dominante
do modo norte-americano de guerrear.
Os EUA estão fora do negócio de enviar imensos exércitos
de infantaria para invadir e ocupar países no continente eurasiano. Robert
Gates, quando ainda era secretário da Defesa, é autor da declaração
definitiva [15]
sobre
o assunto. O negócio dos EUA, agora, é usar aviões-robôs, drones, armado [16]
e
forças de operações especiais
[17]
para
assassinar qualquer um (e não escapa nem se for cidadão norte-americano) que o
presidente dos EUA decida que causa incômodo intolerável. Com o presidente
Obama, esses ataques proliferaram.
É o
novo modus operandi dos EUA. Parafraseando aviso emitido pela
secretária de Estado Hillary Clinton, matéria doWashington Post [18]
resume
as implicações disso: “Os EUA reservam-se o direito de atacar qualquer um que os
EUA entendam que representam ameaça direta à segurança nacional dos EUA, em
qualquer ponto do mundo”.
Não bastasse, agindo em nome dos EUA, o presidente
exerce esse seu pressuposto direito sem avisar, sem considerar impedimentos de
soberania nacional [19], sem
autorização do Congresso, e sem consultar ninguém, além de Michael Vickers
alguns outros poucos membros do aparelho nacional de segurança. Ao povo dos EUA
cabe o papel de aplaudir, se e quando for informado de que algum assassinato
seletivo foi bem sucedido. E aplaudimos.
[20]
Por
exemplo, quando um grupo de ousados membros da Equipe 6 de SEALs entraram no
Paquistão para mandar dessa para melhor Osama bin Laden com dois tiros
certeiros. A vingança tantas vezes adiada tornou dispensável considerar, por um
instante que fosse, as complicações políticas que o assassinato pudesse
gerar.
É
difícil prever como terminará o 3º
round. O melhor que se pode dizer é que não terminará nem rapidamente nem
bem. Como Israel descobriu, depois que se adotam assassinatos predefinidos como
política, a lista de alvos sempre dá algum jeito de aumentar.
Nesses
termos, o que se pode dizer, mesmo que tentativamente, sobre a GACGGT ainda em
andamento?
Em termos operacionais, uma guerra que nasceu
convencional, acabou por cair, progressivamente, sob controle dos que habitam o
que Dick Cheney chamou uma vez de “o lado obscuro” [21], com
implicações que poucos parecem interessados em explorar. Em termos estratégicos,
uma guerra que, no início, tinha algumas expectativas utópicas, prossegue hoje
sem nenhuma expectativa declarada e conhecida; o simples encadeamento dos
eventos já deslocou qualquer consideração séria sobre objetivos. Em termos
políticos, uma guerra que, antes, ocupava o centro do cenário da política
nacional deslizou para o fundo obscuro do palco, o povo norte-americano com
outras preocupações e distrações; e as questões legais e morais que a guerra
levantou flutuam por aí, ninguém sabe onde, soltas no ar.
Isso
é avanço?
Notas
dos tradutores
[1] 14/2/2012, New York
Times, em:
[2] 27/1/2012, New York
Times, em:
[3] 4/2/2012, Bloomberg,
em:
[4] 27/1/2012, Rolling
Stone, em:
[5]
21/5/2009, Tom Dispatch, em:
[6] 13/5/2009, Real Clear World em:
[8]
1/12/2009,
Discurso sobre Af-Pak, em:
[9] 12/2/2012, New York
Times, em:
[10] 31/5/2011,McClatchy.com em:
[11] 22/6/2010, Rolling
Stone, em:
[12] 11/1/2012, New York
Times, em:
[13]
Wikipedia
– Michael G. Vickers (em inglês) em:
[14] 30/11/2007, Small Wars
Journal em:
[15] 25/2/2011, New York
Times, em:
[16]
16/10/2011, Tom Dispatch,
em:
[17]
3/8/2011, Tom Dispatch, em:
[18] 16/1/2012, Washington
Post, em:
[19]
5/2/2012, Tom Dispatch, em:
[20] 16/5/2011, My West Texas
em:
[21] 7/11/2005, Washington
Post, em:
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