Publicado
por *Urariano Motta em 15 de fevereirode 2012
O
quadro Frevo, de Lula Cardoso Ayres, bem que
podia ser uma primeira aproximação do frevo dançado em Pernambuco. Ele é imagem
precisa e preciosa do frevo ao ser dançado, numa dança que os pernambucanos
chamam de “fazer o passo”, e haja passos, saltos, acrobacias, explosão de
energia humana. Dizemos explosão e, para quem não viu nem conhece, esclarecemos que
isso não é bem uma metáfora.
No
reino animal, o fenômeno que mais lembra o passo da gente, quando os metais de
sopro jogam no calor, para o azul do céu o frevo Vassourinhas, no reino animal o
que mais lembra o passo coletivo é um estouro de boiada.
A
poeira sobe.
Os
gritos de libertação se gritam com força.
É
uma felicidade, um desassosego e um sufoco. Quando Vassourinhas é anunciado
como se deviam anunciar os batalhões na guerra, e quando por fim num surto
Vassourinhas avança, sobe uma nuvem de violência no ar.
Há
bombos, percussão intensa, mas não sabemos se o baque pesado vem dos bombos ou
dos passos, dos muitos pés, pontapés, cotoveladas, golpes que homens e mulheres
se dão. É coisa forte, é tempero forte, é calor intenso, é gozo pesado, que é
uma forma de ser de Pernambuco, desde a bebida, a grossa aguardente, aos pratos
da gastronomia, que mais se devia chamar de gastroviolência.
Nada
de mais ou menos.
É
preto negríssimo, é branco de incandescer. Ou estás vivo, ou estás
morto.
Dissemos
explosão, e esclarecemos uma vez mais, escrevemos explosão sem usar imagem de
escritor ocioso.
Imaginem
uma multidão, seis, oito, dez mil pessoas; imaginem toda essa gente comprimida
em um espaço estreito. Imaginem
agora que de repente toda essa gente enlouquece e quer correr, mas não sai do
lugar, porque está cercada por todos os lados. Imaginem que essa gente, cada
homem, cada mulher, cada menino, todos querem ainda assim abrir espaço à sua
volta, e todos querem isso a um só tempo. Imaginem essa gente estimulada,
embriagada de álcool e alegria. Imaginem agora essa gente excitada por uma
música que não se ouve só com os ouvidos, porque ela se ouve com os braços, as
mãos, a boca, os pés. Imaginem, portanto, uma grande massa em fúria.
Raiva,
alegria e libertação sob ritmo. Isso é o passo, ao som de Vassourinhas em
Pernambuco.
A
música do frevo para os corações fracos não se recomenda. Pode ser ouvida
aqui:
Ouçam
e desfrutem as variações criadoras do sax de Felinho. Essa música é uma promessa
das coisas que se devem fazer com o corpo. Mais que promessa, é uma intimação,
uma ordem. Vamos, esmorecido. Se você não é mais de pular, como este que lhe
fala, procure um abrigo de abstração ao ouvir Vassourinhas.
Diga-se,
por exemplo: “Que melodia estranha e bela. Que acordes”. Isso você deve se dizer
com os olhos bem fechados para não ver a multidão na praça e nos largos que se
tornam pequenos.
O
frevo de rua, que vem encantado em instrumentos de sopro, de metais, e mais está
para sangue coagulado de porco, que melhorado com suas vísceras chamamos de
sarapatel, o frevo de rua ainda guarda elementos de música de guerra. Nelson
Ferreira, que era maestro supremo do gênero, dava uma lição bem prática: “Peguem
o Hino Nacional. Toquem rápido, mais rápido… isso já é frevo”. Com isso ele
queria dizer que o frevo veio das bandas militares, que em uma estranheza tão
rara quanto a passagem do primo do macaco para o homem, evoluíram dos dobrados
marciais para o frevo.
De
rua, e de rua foi para o frevo-canção, que se espraiou para o frevo de bloco,
com um andamento mais leve, suave, mais família e menos raivoso, digamos
assim.
“Por
que o frevo não se renova?” me perguntou esta semana o amigo Joaquim Ancilon no
Pátio de São Pedro, enquanto ouvíamos frevos de bloco. Joaquim é um professor,
um homem honesto, mas nem por isso é imune a perguntas de provocação. E em que
momento oportuno ele fez a pergunta!, porque lá no palco a senhora Lilia,
ex-presa política, cantava:
“Felinto,
Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apois-Fum,
Dos carnavais saudosos?
Na
alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia….”
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante..’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia….”
Não
sei se foi o calor do uísque ou da raiva diante da pergunta, não sei se foi a
lembrança da fase de ouro do frevo, com Nelson Ferreira, Capiba, Levino
Ferreira, Edgard Moraes, João Santiago, não sei se foi a recordação do que um
dia escrevemos sobre o gênio de Nelson Ferreira, quando dissemos que esses
compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente
com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha.
Queremos
dizer, dissemos, não somos nós que falamos, mas esses compositores se referem ao
que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta:
um parente amigo da infância com quem não brigamos, que tem crescido em nosso
afeto, nutrido no tempo incessante… não sei. Mas deve ter sido uma mistura de
tudo isso, porque à pergunta:
-
Por que o frevo não se renova?
Respondemos
com outra:
-
Por que Dante não se renova?
Por
que um clássico não se renova? Por que não temos mais A Divina Comédia? Por quê?
As
obras seminais, que fundam o nosso ser, não se renovam, não se encontram no
mercado, não estão à venda. Estão para sempre, para a nossa reconstrução. A sua
modernidade é a sua infindável permanência. A sua renovação é o seu dom de ser
insubstituível. Ora. Mas ainda assim, ficamos matutando.
Ficou
um travo de coisa ruim, de coisa que não está resolvida, na garganta, no peito.
Está
certo, viemos pensando, está certo, Nelson Ferreira hoje é impossível, ninguém
mais, nunca mais será Nelson Ferreira, o grau de excelência que ele alcançou não
se faz mais. Certo. Mas por que o frevo tem que ser somente à maneira e feição
de Capiba, Nelson e Levino? Ora, se Dante não se renova, a poesia continua e
continuará em outras faces que não a de Dante. Sim, e por que não, como não?
É
impossível hoje algo como a Evocação número 1, é certo. É absolutamente
improvável, absurdo, que se faça de novo Último Dia, de Levino Ferreira. Mas o
frevo acabou?
–
Não. Todos os dias temos provas que não, em nossos dias, em nosso ser, nos novos
intérpretes que vêm, alguns até bem jovens. Então… O frevo se renovou? Mas o que
é mesmo renovar? – Certamente não é repetir. Certo. Será algo então jamais
visto, tão novo quanto seria um extraterrestre para o nosso convívio? E se assim
for, como dizer que essa coisa jamais vista ainda é do mesmo gênero, do frevo?
Ora. Então esse renovar deve com mais certeza aliar, resolver a tradição no
presente. Há caminhos ainda não percorridos, a partir mesmo da tradição.
Como
pode ser visto aqui, com a orquestra Spok:
Watch
again,
incrédulos.
Que
me dizem, ó insensatos?
O
ET não precisa ser a negação do humano. Spok vai no caminho das estrelas, na
jornada das estrelas.
Aquelas
antecipações de Felinho ao executar Vassourinhas antes de 1950 agora são
retomadas pela orquestra de Spok, ao improvisar com liberdade sobre a base da
história do gênero, livre com liberdade, que sem ela nada se cria nem se
transforma.
Dele,
disse o maestro e compositor Clóvis Pereira: “A SpokFrevo, afinadíssima e
conduzida por Spok, é uma orquestra formada por jovens de irrecusável talento
musical e nos mostra que o frevo está mais vivo do que nunca, evoluindo cada vez
mais até o alvorecer do novo século. Quem viver, verá!”.
Que
dizer, então, em outro ponto, de J. Michiles, autor de muitos sucessos na voz de
Alceu Valença? Me segura senão eu caio, Diabo Louro, Roda e Avisa. Que dizer do
Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério? Que dizer da ação
civilizadora de Antonio Nóbrega, que dança, toca, canta e distribui o gênio do
frevo em todo o mundo?
Como
veem, o mundo continua, a vida segue, apesar da saudade que dá na gente de
Nelson Ferreira em todos os carnavais. Que importa?
Nós,
os senhores encanecidos, com ar respeitável, mas com um espírito de moleque,
este sim, imortal, devemos saudar os nossos filhos que pulam nas ladeiras
cantando:
“Olinda,
quero cantar a ti esta canção,
Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar,
Faz vibrar meu coração de amor
a sonhar, minha Olinda sem igual,
Salve o teu Carnaval!”
Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar,
Faz vibrar meu coração de amor
a sonhar, minha Olinda sem igual,
Salve o teu Carnaval!”
Ouvir
e ver esta renovação com os olhos e ouvidos bem abertos, plenos de curiosidade,
é uma ordem para melhor receber o presente do frevo.
Temos
agora a certeza, com algo vivo, que uma cultura não se destrói.
Isso
é bom, uma felicidade e bela.
Estamos
todos bestas, cantarolando com aparência de idiotas que nunca perdemos, “você
diz que ela é bela, ela é bela, sim, senhor. Porém poderia ser mais bela, se ela
tivesse meu amor. Bela é toda a natureza, bela é tudo que é belo”.
Nem
sequer sonhávamos com algo assim. Bela é tudo que é belo.
Todos
podemos afinal dizer que o frevo venceu.
Nos
mais de 100 anos do aparecimento do seu nome em letra impressa, em todo 9 de
fevereiro o frevo vence. Tão novo e centenário.
Como diria Oscar Niemeyer, “ultimamente o
tempo tem passado muito depressa”.
Viva
a juventude dos seus mais de 100 anos.
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O
livro de Urariano Mota publicado pela Boitempo, Soledad
no Recife,
já está à venda em versão eletrônica (ebook).
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*Urariano
Motta
é
natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista,
publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de
oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador
do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente
também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no
Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia
Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações
futuristas (Recife, Bagaço, 1997).
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(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirA grandeza do frevo, tradicional ou esse tal de novo (ou renovado), está em sua expressão autônoma, a em que a cultura pernambucana do litoral se infiltra gradualmente no agreste. Mas, em sua essência, é urbano e prenuncia as folias de Momo, a caminho da Páscoa, 40 dias depois das Cinzas. Foi difícil explicá-lo a amigo muçulmano, conquanto a visão islâmica do Alcorão retire de cena os inimigos de Ieóchua-Jesus-Aïssa. Que tem tudo isso a ver com o tríduo que explodirá na sexta-feira à noite? Muita coisa. O Carnaval é festa gregoriana, logo...
Abraços do
ArnaC