domingo, 19 de fevereiro de 2012

A ORDEM NA DESORDEM (*)


A regulamentação do desfile das escolas de samba no Brasil e a exigência de “motivos nacionais”

 

Monique Augras – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) (dica de @ladyrasta, Twitter, 19/2/2012)

Enviado pelo pessoal da Vila Vudu

“A ordem na desordem? É um tema nacional” - João do Rio, 1908

Ao longo da história do carnaval, a persistência da temática nacional nos enredos apresentados pelas escolas de samba tem sido interpretada ora como característica por assim dizer natural dessa modalidade de expressão da cultura popular, ora como conseqüência da atitude repressora das autoridades frente a essa mesma cultura, geralmente imputada à ditadura do Estado Novo.
Osório et alii (1970, p. 7) ilustram claramente a primeira vertente quando, ao apresentarem os resultados de uma pesquisa sobre a retórica do samba-enredo, comentam: "sua característica mais marcante é o uso exclusivo dos temas nacionais. As escolas de samba, através de suas criações, louvam a pátria em seus mais diversos aspectos".
Exemplo oposto é fornecido por A. M. Rodrigues, autora de polêmica dissertação de mestrado em ciências sociais, publicada sob o título de Samba negro - e espoliação branca (1984), que chega a afirmar que "em 1939 o DIP impõe que só temas sobre a História do Brasil poderão ser abordados pelos sambas-enredo, sem tratamento crítico, evidentemente. Isso provocará sensíveis alterações nos sambas, bem como nas festas e nos desfiles" (p. 38). Ora, o DIP foi criado em 27.12.39 e a lei que o institui não contém a menor referência a samba ou temas correlatos. O livro de E. Carone sobre o Estado Novo (1977), citado por Rodrigues em apoio à sua afirmação (nota 31), apenas assinala a data de criação do DIP e o seu campo de ação. Por mais relevante que seja o trabalho de Rodrigues, nesse ponto é preciso reconhecer que a autora expressa a opinião tradicional, sem apresentar dados factuais que a justifiquem.
Do mesmo modo, a interessante publicação Nosso Século traz, em seu n° 25, de 1980, os seguintes comentários em relação à censura do Estado Novo: "Submetidos à censura prévia eram também os préstitos carnavalescos, os ranchos, blocos e escolas de samba que, por imposição do governo, deveriam ter um sentido nacionalista e patriótico" (p. 197, grifo meu).
Ao planejar o projeto de pesquisa sobre o discurso do samba-enredo, com a finalidade de analisar os mecanismos pelos quais a informação histórica, elaborada pelas dites culturais e transmitida pelas instituições, é submetida a processo de reinterpretação no nível da cultura popular, esbarrei na necessidade de esclarecer esse ponto. O material de que então dispunha só deixava aparecer a exigência de tema nacional no Regulamento da Competição das Escolas de Samba de 1947, vale dizer, durante o governo Dutra.
Impunha-se iniciara pesquisa com o levantamento sistemático do regulamento do concurso das escolas de samba, desde o seu início, nos anos 30.
As fontes primárias desse levantamento, realizado de maio a agosto de 1991,(1) consistem principalmente em artigos de jornais referentes ao desfile de escolas de samba, ranchos e blocos(2) de 1935, data do primeiro concurso oficial instituído pela Prefeitura do Distrito Federal, até 1945. Fontes secundárias foram fornecidas pelos diversos autores que tratam da história das escolas de samba (vide bibliografia). Procurou-se localizar, com a maior precisão possível, o regulamento do concurso, a identificação dos quesitos a serem julgados e, é claro, a referência explícita à presença de temas nacionais.
A regulamentação do concurso das escolas de samba
No início deste século, numa das reportagens que mais tarde seriam agrupadas na coletânea A alma encantadora das ruas (1987), João do Rio comentava a paradoxal associação da explosão dionisíaca e da estrita hierarquização que organizava o funcionamento dos cordões. Quem via o desfile dos cordões, no entanto, pouco percebia dessa ordem. À medida que cordões, blocos e ranchos vão proliferando, ao longo das primeiras décadas, a opinião assusta-se e clama por maior controle. As escolas de samba que, conforme a tradição, vêm a constituir-se no fim dos anos 20,(3) ganham rápida visibilidade e, por conseguinte, exige-se que o seu desfile na praça Onze seja logo regulamentado.
O modo mais eficaz de enquadramento dos grupos e agremiações, cuja razão de ser é a diversão e a livre expressão da alegria, é sem dúvida a premiação. Premiar o desempenho de determinado grupo permite reforçar padrões de representação e dissuadir outros grupos de trilhar caminhos desviantes. Sob a aparcncia de valorizar a cultura popular, o concurso institui uma hierarquia de valores, estéticos alguns, políticos quase todos, que, ao legitimar certas atuações e desqualificar outras, acaba assegurando a manutenção de um modelo estável e de fácil fiscalização.
Concursos são organizados já em 1932. O jornal Mundo Sportino patrocina o desfile das escolas de samba na praça Onze, no dia 7 de fevereiro. Dezenove escolas compareceram, mas apenas cinco foram classificadas: Mangueira em primeiro lugar, seguida de Vai Como Pode, empatada com Linha do Estácio; Para o Ano Sai Melhor em terceiro e Unidos da Tijuca em quarto (Silva e Santos, 1980, p. 62). No ano seguinte, o desfile passa a fazer parte do programa oficial elaborado pela Prefeitura do Distrito Federal e pelo Touring Club. O prefeito Pedro Ernesto já destina pequena verba para o concurso. A Mangueira sagra-se bicampeã.
Desta feita foi o jornal O Globo que patrocinou o desfile e estabeleceu a lista dos quesitos para orientação da comissão julgadora: poesia do samba, enredo, originalidade, e conjunto (Id., Ibid.). É a primeira vez que a letra do samba é oficialmente levada em conta. De acordo com Silva e Santos (1980, p. 55) é também nesse desfile que aparece o primeiro samba-enredo da história, apresentado pela Unidos da Tijuca (terceiro lugar). Um repórter de O Globo, ao comentar o evento, saudou a apresentação "de um samba principal que estava de acordo com o enredo". Até então, era costume as escolas desfilarem com dois sambas, uma na ida e outro na volta, sem a preocupação de relacionar tais sambas com o enredo, ou seja, o tema do desfile.
Em 1934, foi a vez da Mangueira apresentar um samba intitulado "Homenagem", que o próprio autor, Carlos Cachaça,(4) em depoimento recolhido por Marília T. Barbosa da Silva e Lygia Santos, iria mais tarde classificar como samba-enredo, já que o mesmo "desenvolvia na letra o enredo visualmente, apresentado, `O sonho de um poeta' " (Silva e Santos, 1980, p.112).
Aos poucos o uso ia se generalizando. A denominação de "samba-enredo", no entanto, só apareceria na década de 50, de acordo com José Ramos Tinhorão, que julga poder atribuir a crescente importância desse quesito à "progressiva estruturação das escolas no sentido de encenar dramaticamente os seus enredos, sob a forma de uma ópera-balé ambulante" (1975, p. 171).
Por vários motivos, o ano de 1934 representa importante marco na história do samba. O prefeito Pedro Ernesto é homenageado com um desfile especial, no campo de Santana, no dia 20 de janeiro, festa de São Sebastião, padroeiro da cidade. A cooptação é claramente assumida. Em 6 de setembro do mesmo ano é fundada a União das Escolas de Samba, com o propósito de alcançar o mesmo status das grandes sociedades, dos ranchos e dos blocos.s Seu presidente, Flávio Paulo Costa, em 30.01.35, endereça carta ao prefeito, onde explicita as finalidades da União, que pretende nortear "os núcleos onde se cultiva a verdadeira música nacional, imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial da brasilidade. (...) Explicadas que estão as finalidades desta agremiação, sob vosso patrocínio, composta de 28 núcleos, num total aproximado de 12 mil componentes, tendo uma música própria, seus instrumentos próprios e seus cortejos baseados em motivos nacionais, fazendo ressurgir o carnaval de rua, base de toda a propaganda que se tem feito em torno da nossa festa máxima" (História das Escolas de Samba, vol. 3,1976, p. 40, grifo meu).
Grandiosidade, brasilidade, propaganda: a carta fundadora da União das Escolas de Samba mostrava total sintonia com o discurso getulista. Três dias depois Pedro Ernesto publicava o decreto oficializando a presença das escolas de samba no carnaval carioca e, sobretudo, reconhecendo a União como sua legítima representante.(6)
Ainda estavam longe, contudo, de receber o mesmo tratamento das demais agremiações. A avenida estava reservada às grandes sociedades, aos ranchos e, particularmente, ao corso, exibição das elegâncias burguesas no domingo de carnaval. Mas, pelo menos, deixavam de desfilar por conta própria. Ganhavam reconhecimento e apoio oficial. Em troca, enquadravam-se nas regras do jogo. Uma das condições exigidas para o recebimento de dotações era a legalização das agremiações na polícia (Tinhorão, 1975).
A iniciativa de Pedro Ernesto, ao criar o registro policial, o incentivo da subvenção, a premiação do concurso, marca claramente a intervenção do Estado no mundo do samba. Tudo deixa supor que a transformação progressiva do desfile, da estrutura das escolas de samba e, particularmente, a importância cada vez maior do samba-enredo, caminham pari passu com a expectativa oficial. Não se trata de um processo linear de repressão e dominação, mas sim da construção mútua de nova modalidade de expressão popular.
O primeiro concurso promovido pela Prefeitura, nos dias 2, 3, 4 e'5 de março de 1935, contou com o patrocínio e a divulgação do jornal A Nação. O requerimento, publicado uma semana antes, indicava quatro quesitos: originalidade, harmonia, bateria e bandeira. O julgamento de conjunto foi excluído "para que todas as escolas (pudessem) concorrerem igualdade de condições" (A Nação, fevereiro de 1935, página reproduzida por Silva e Santos, 1980, p. 75). Tampouco foi levado em conta o quesito do concurso de 1933, referente à "poesia do samba": "os argumentos apresentados na reunião de ontem pelos representantes da Escola Vizinha Faladeira foram tão fortes que fizeram cair o item dos vereadores" (ibidem).
Os versadores eram na verdade repentistas, que improvisavam os versos na hora do desfile. "Os versos de improviso (...) como poderiam ser julgados dentro do tumulto de uma festa de massa? Não, não era possível. Assim o samba subiu. Mas os versadores caíram. Os argumentos da Escola de Samba Vizinha Faladeira foram aceitos porque se adequaram às necessidades do consumo, do público estranho, das gravadoras, dos horários rígidos das autoridades" (Silva e Santos, 1980, p. 831). Um dos preços a pagar para obter o apoio oficial e o reconhecimento social era a perda da espontaneidade. O samba-enredo, atrelado à temática do desfile, seria um dos produtos dessa tendência padronizadora.
No concurso de 1935 só poderiam se inscrever agremiações filiadas à União das Escolas de Samba. Foram 25 a desfilar. Desta feita, quem se classificou em primeiro lugar foi a Vai Como Pode (que logo depois passaria a se chamar Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela), apresentando o enredo "O samba dominando o mundo". De acordo com Silva e Santos, "o reconhecimento pelas autoridades públicas do seu verdadeiro valor causara tanta alegria aos batalhadores do samba que quase todos os motivos dos seus préstitos desse ano faziam referência à vitória do samba" (1980, p. 84). Como se viu, era uma vitória ambígua. O tema fantasioso da dominação do mundo pelo samba soberano disfarçava a real domesticação pelo enquadramento oficial.
Daí para diante, o desejo de brilhar acompanharse-á da preocupação com obedecer às regras do jogo. Em certo sentido, pode-se observar que o desenvolvimento das escolas de samba até chegar à atual feição de "maior espetáculo da Terra" é pautado por episódios sucessivos de docilidade, resistência, confronto, negociação, pondo em cena diversas modalidades de solução para o conflito entre o desejo e a necessidade, entre a expressão genuína e o atendimento às exigências de diversos patrocinadores - sejam eles ligados ao Estado, à indústria turística ou à contravenção.(7)
Ainda que trabalhos recentes - oriundos em sua maioria da década de 80, quando o empenho com resgatar os diversos aspectos da cidadania amiúde produziu um discurso maniqueísta opondo cultura popular, espontânea e pura, à atuação do Estado, repressora e alienante - tenham enfatizado o mundo do samba em termos de resistência, é forçoso reconhecer que as coisas jamais foram tão simples assim. Como bem observou Maria Isaura Pereira de Queiroz, "a `legalização' das Escolas de Samba e a concessão de subvenções para a realização dos desfiles deixam de ser uma vitória das massas para se tornar instrumentos utilizados pelas camadas superiores, no sentido de reforçar sua preeminência sobre a população suburbana. O desfile nas avenidas centrais do Rio deixa de parecer a afirmação de um direito conquistado e apresenta-se como recompensa concedida diante de um ‘bom comportamento’ manifesto" (1984, p. 906).
Desde as origens até nossos dias, o objeto precípuo das agremiações populares, e não apenas as carnavalescas,(8) tem sido a sobrevivência. O enquadramento nos ditames dos patrocinadores, em vez de adesismo indiscriminado, expressa sobretudo saudável pragmatismo.
Aos sambistas dos anos 30 não faltava jogo de cintura. Em 1933, Pedro Ernesto havia fundado 0 Partido Autonomista do Distrito Federal, "com a clara intenção de conquistar votos de favelados, sambistas, e pobres em geral" (Chinelli e Silva, 1991, p. 10). A resposta não se fizera esperar: ao manifestar a sua adesão ao nacionalismo getulista, a União das Escolas de Samba apresentava-se como interlocutora capaz de congregar massas populares (não por acaso, certamente, insistiu no número de 12 mil componentes). De um lado, consolidava o relacionamento entre morro e poder público, assumindo as feições do clientelismo populista, como bem assinala Queiroz: "A tolerância e mesmo a benevolência que a Prefeitura do Rio de Janeiro demonstrou então para com as Escolas de Samba sem dúvida decorreu dessas circunstâncias. Inúmeros testemunhos se referem às verdadeiras transações que se operaram entre fundadores de Escolas de Samba, chefes políticos de diversos níveis, candidatos a vários postos, altos funcionários em busca de prestígio. Destes solicitavam os fundadores das Escolas melhorias e privilégios para elas, contra certo número de votos no momento das eleições; e obtiveram o que desejavam" (1984, p. 901).
Por outro lado, interiorizava as normas que iriam nortear a modernização da sociedade brasileira. Para ingressar na União era preciso obedecer ao modelo das sociedades civis nacionais. "Desde o início, a racionalidade da organização foi, portanto, erigida como critério para sua admissão à Associação, o que vale dizer, ao desfile" (Id., Ibid., p. 900). A estrutura burocratizada e quase empresarial que hoje organiza o "maior espetáculo da Terra" é conseqüência lógica do processo iniciado em 1935.
A exigência de temas nacionais
A partir da oficialização de 1935, alguns jornais vão informar, a cada ano, qual o regulamento do concurso. Em 23.02.36, o Jornal do Brasil transcreve (p. 8):
"Regulamento das Escolas de Samba
1 ° - O julgamento terá início às 21 h, sendo julgadas as escolas de acordo cova o comparecimento.
2°-As escolas enviarão até o dia 22, véspera do concurso, os seus enredos e os dois sambas que serão cantados na cornpetição até as 22 horas, na sede da União das Escolas de Sarnba, à rua José Higino, n° 69, sefn o que a comissão julgadora não se responsabiliza pelo julgamento.
(falta...) são dois, sendo uni cantado no ato da entrada até o coreto da comissão julgadora e o segundo na retirada.
4°- Só é permitido o espaço de 15 minutos para a exibição.
5°-Não será permitido o uso de instrumentos de corda, nenz de sopro, por estarem estes instrumentos fora do nosso ritmo.
6°-As escolas concorrentes só terão direito a um prêmio. No caso de fazer jus a mais prêmios, a comissão julgadora decidirá pelo prêmio maior. "

Os prêmios contemplavam os quesitos de harmonia (800$000), samba (500$000), bateria (300$000), enredo (100$000), além de mais cinco prêmios de consolação.
Vê-se que, em 1936, ainda estava em uso a apresentação de dois sambas, um na ida e outro na volta. O último artigo estipula que "para facilitar às escolas a apresentação do enredo e os dois sambas, a comissão julgadora os receberá na hora do desfile da respectiva escola". Não havia mesmo espaço para o improviso, e o tempo de apresentação era inacreditavelmente exíguo. Outro dado relevante é a exclusão dos instrumentos de corda e de sopro, vigente até os nossos dias.
Mas na questão que nos preocupa, ou seja, a exigência de tema nacional, nada consta. Curiosamente, o mesmo jornal, ao organizar e reproduzir os respectivos regulamentos do concurso dos ranchos e do "cortejo dos blocos de repartições federais e municipais", esclarece:
- art. 20 (do concurso dos ranchos): "É de inteira liberdade a escolha dos enredos, sejam em motivos nacionais ou estrangeiros" (publicado no dia 05.02.36, p. 14, e repetido até o dia 22.02.36).
- art. 5 (do cortejo dos blocos): "O enredo para cada conjunto é obrigatório, podendo versar em motivos nacionais ou estrangeiros" (publicado no dia 16.02.36, p. 21 e repetido até o dia 23.02.36).
- art. 6 (idem): "Entende-se por conjunto o seguinte: harmonia, arte, enredo, indumentária, cenografia, originalidade, estandarte e humorismo" (idem).

Seria estranho que as escolas de samba, recémchegadas no cenário carnavalesco, sofressem maior grau de restrição. Na verdade, como vimos, a questão do tema nacional é abordada pelo regulamento, só constando de documento redigido pelos próprios sambistas, na carta dirigida ao prefeito pelo presidente da União, em janeiro de 1935.
Nos carnavais dos anos seguintes, em 1937,1938 e 1939, o JB reproduzirá o mesmo regulamento, referente aos ranchos e aos blocos das repartições federais e municipais.(9) Este último caso é bastante interessante. Em pleno início do Estado Novo, funcionários públicos ainda gozavam de inteira liberdade para compor seus enredos; era-lhes garantido até mesmo o livre exercício do humor.
O desfile das escolas de samba do carnaval de 1937 realizou-se no dia 7 de fevereiro, a partir das 21 horas. Não encontramos o regulamento, mas, aparentemente, nele constavam exigências a respeito do quesito "tempo": "Até as 2:30 da madrugada, quando a polícia deu por terminado o desfile, somente 16 escolas tinham passado perante os julgadores que se viram, nessas condições, obrigados a suspender o desfile" (O Jornal, 09.02.37). Ainda que houvesse uma comissão julgadora, era fácil verificar quem mandava de fato no desfile. Diz a tradição que a polícia ordenou que as luzes fossem apagadas.
Em 1938 não houve julgamento das escolas de samba: "Não foi efetuado porque só compareceu um dos três juízes da comissão designada pela diretoria de turismo" (O Correio da Manhã, 03.03.38). O único regulamento que conseguimos localizar dizia respeito ao concurso oficial de marchas e sambas, não se aplicando portanto às escolas. Mas vale a pena transcrever o artigo 3: "Serão afastadas do concurso as que contiverem alusões políticas, religiosas ou que sejam atentatórias à moral" (JB, 22.02.38). Mal fora implantado o Estado Novo, a censura entrava em ação.
Em 1939, O Jornal proclama: "Venceu a Escola de Samba Portela - milhares de pessoas na Praça 11" (23.02.39). Traz também a notícia que tanto contribuiria para alicerçar a tradição que atribui à ditadura getulista a exigência do tema nacional: "A Escola de Samba Vizinha Faladeira foi desclassificada. Utilizou-se do enredo da lenda".
A lenda em questão era Branca de Neve, tema sobre o qual Walt Disney lançara, alguns anos antes, o primeiro desenho animado de longa-metragem.
Em seu excelente livro sobre o Salgueiro, Haroldo Costa situa claramente a origem da exigência de brasilidade. É mais uma vez interna aos círculos do samba:
"Em 1938, Eloy Antero Dias (...) era o presidente da União das Escolas de Samba, que naquela oportunidade tentava ordenar os desfiles através de um regulamento cujo artigo primeiro era assim redigido:
Artigo 1 °-De acordo com a música nacional, as escolas não poderão apresentar os seus enredos no carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou carretas, assira corno não serão permitidas histórias internacionais em sonhos ou imaginação" (1984, pp. 41-2, grifo meu).

À medida que a União das Escolas de Samba se vinha enquadrando nos moldes das demais sociedades civis, endurecia as suas exigências. Como sói acontecer em regimes ditatoriais, a censura era por assim dizer introjetada.(10) A proibição do recurso a "sonhos ou imaginação" chega a doer. Qual será o espaço do samba-enredo se não for o imaginário? No seu afã de cooptação, o artigo 1° do regulamento editado pela própria União encerrava potencialidades suicidas. Restava contudo o sonho nacional. E este, sem sombra de dúvida, era uma das marcas da ideologia estadonovista.
Mas é claro que o seu nacionalismo exacerbado não se criou a partir do nada. Farta corrente nesse sentido perpassa o discurso dos intelectuais ao longo da década de 20 (Venoso, 1987). Não há motivo para supor que as classes populares escapassem desse processo.
Jota Efegê (1977, p. 52) cita o artigo de Coelho Neto que, em 1924, incentivava o rancho "Ameno Resedá" a desenvolver enredo com temas nacionalistas:
"(...) o seu exemplo imitado, com o que não só lucrarão os ranchos, tendo fartas novidades para explora; com o Povo que aprenderá alegremente, em espetáculos artísticos, a arear o Brasil através da poesia de suas lendas, dos episódios de sua história e dos feitos dos seus heróis".
Incentivar é uma coisa; proibir que se siga outro caminho é bem diferente. A exclusão da Vizinha Faladeira não deixa, no entanto, de constituir fato curioso. Não fora essa mesma escola que, em 1935, apresentara argumentos para alijar os "versadores" do concurso? Iniciara o processo de enquadramento do samba e, poucos anos depois, iria tornar-se a sua primeira vítima. Nem todo mundo deve ter lamentado a desqualificação da Vizinha Faladeira.
Em todo caso, parece fora de dúvida que a exigência de tema nacional não partiu do DIP. Nem foi preciso. O Estado Novo surgiu em meio a uma forte ideologia nativista. A União das Escolas de Samba, no seu desejo de ser aceita, de granjear para o samba a aprovação dos poderosos e o apoio do Estado, dificilmente poderia manter-se imune a esse clima.
Os autores da recente publicação da RIOTUR, Memória do carnaval (1991), chegam à mesma conclusão:
"A princípio, os temas versavam quase que exclusivamente sobre a História do Brasil. Foi a fase dos enredos ufanistas-nacionalistas, levando a uma crença geral de que havia obrigatoriedade do uso dos mesmos pelas Escolas. Na verdade, o costume se firmou porque o primeiro regulamento do desfile, sob a exclusiva responsabilidade do poder público, foi feito no limiar do Estado Novo, em 1939, estabelecendo não uma imposição, mas um clima para tal" (p. 309).
Esse texto, apesar de esclarecedor, mantém certa ambigüidade. Como se viu, o primeiro regulamento do desfile oficial é bem anterior e, ao acreditar no depoimento de Haroldo Costa - que se apóia também na autoridade de Sérgio Cabral(11) -, foi redigido pelas mais ilustres figuras "da galeria dos sambistas históricos". De qualquer maneira, a ponderação de Memória do carnaval constitui valiosa contribuição ao esforço de derrubar uma das mais sólidas lendas sobre a obrigatoriedade dos temas nacionais.
Nos anos seguintes, as notícias encontradas são esparsas no que diz respeito ao desfile dos ranchos, blocos e escolas de samba. Em janeiro de 1940, a Federação das Pequenas Sociedades Carnavalescas publica no JB uma nota oficial denunciando a má vontade da Prefeitura, que, ao que parece, impediu o desfile dos ranchos e blocos (JB, 17.01.40, p. 13). Mas houve concurso de escolas de samba, cuja comissão julgadora, designada pelo próprio prefeito Henrique Dodsworth, deu o primeiro lugar à Mangueira. Eram cinco os quesitos: samba, harmonia, conjunto e enredo (Diário Carioca, 10.02.40, p. 11).
O mesmo controle direto pela Prefeitura mantém - se em 1941 e 1942. O júri das escolas de samba é nomeado pelo secretário-geral de administração, "respondendo pela secretaria do prefeito" (JB, 23.02.41, p. 9). Em 1941 houve desfile de blocos e ranchos organizado pelo JB e, mais uma vez, é assegurada a liberdade de escolha dos "motivos":
art. 11 - "Os motivos dos cortejos podem ser nacionais ou estrangeiros" (regulamento publicado pelo JB nos dias 16, 22 e 23 de fevereiro de 1941).
Em 1942, a imprensa cobre com certo destaque o apoio concedido pela Prefeitura ao desfile dos ranchos, blocos e escolas de samba.(12) Houve mais uma vez uma comissão específica para julgar estas últimas, que deviam inscrever-se na Secretaria do prefeito, "juntando ao pedido os enredos desenvolvidos em seus conjuntos" (A Manhã, 12.02.42, p. 14). Os quesitos (samba, harmonia, bateria, bandeira e enredo) são fartamente divulgados (edições do dia 15.02.42 de A Manhã, O Jornal, e A Noite). A Manhã publica in extenso o Regulamento da Competição instituída pela Prefeitura do Distrito Federal que, mais uma vez, nada diz a respeito de temas nacionais.(13) O clima nativista, contudo, fica explícito em artigo de A Noite, intitulado "Inabalável, a Praça Onze":(14) "Esse espetáculo grandioso desta vez será julgado, pois as Escolas de Sambas (sie) se apresentarão com enredos e com músicas características, com letras e ritmos nascidos lá no morro" (14.02.42, p. 7).
A valorização da produção cultural do morro vinha-se inserir no resgate do folclore brasileiro. Nas páginas da revista Cultura Política, criada em 1941 e que desapareceria junto com o Estado Novo, são constantes os artigos referentes a folclore e cultura popular. De acordo com a ideologia do Estado Nacional "é a cultura que põe a política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes de inspiração popular" (Gomes, 1982, p. 116). Realçar aquilo que se julgava ser "intrínseco" ao homem brasileiro implicava o interesse pelo samba. É claro que não se podia deixá-lo proliferar em qualquer direção. Suas origens negras marcavam-no com o selo do primitivismo. Era necessário educá-lo, dar-lhe formato mais civilizado, mais condizente com os padrões da moderna nacionalidade:
"O samba, que traz ria sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e arrítmico (sie), ruas paciência: não repudiamos esse nosso irmão pelos defeitos que contém. Sejamos benévolos; lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos devagarinho torná-lo mais educado e social" (A. Salgado, "Radiodifusão Social", Cultura Política ra° 6, agosto 1941, pp. 79-93, citado por Velloso, 1987, p. 32).
Em 1942 é criada, na "Hora do Brasil", uma sessão de música folclórica (Velloso, 1987), para recolher, divulgar e obviamente reeducar esse importante produto da cultura brasileira. O repentino destaque dado pela imprensa ao desfile das escolas, justamente quando o seu reduto tradicional, a praça Onze, está sendo demolido, como que corresponde a essa nova preocupação do modelo oficial. Valoriza-se destruindo.
Na música popular difundida pelo rádio, surge o samba "apologético-nacionalista" (Matos, 1982) do qual o melhor exemplo é a produção de Ari Barroso. No morro, o clientelismo facilita a absorção de "um nacionalismo ingênuo e ufanista que vinha ao encontro dos interesses políticos do governo Vargas" (Matos, 1982, p. 47). O desfile oficial garante a premiação das escolas cujo samba conseguiu "civilizarse". Se o ritmo ainda permanece indômito, há pelo menos um elemento de fácil controle, que é a letra. Os radialistas insistem no seu papel civilizador, na luta necessária contra o primitivismo: "Há muita coisa interessante para ser abordada, como há também muita maneira inteligente de livrar o nosso povo das idéias africanistas que lhe são impingidas pelos maestrecos e poetaços chamados do morro" (Silvio Moreaux, "Notas radiofônicas", 1942, citado por Cabral, 1974, p. 116). Como se sabe, o povo é bom e ingênuo. São os poetaços que lhe impingern temáticas africanas. Por sorte, as elites getulistas estão atentas, para garantir-lhe o acesso à verdadeira autenticidade. O projeto cultural do Estado Novo inclui a exigência do branqueamento.(15)
Nessa perspectiva, parece que são os anos 1941-2 que melhor cristalizam a importância do enfoque histórico nacionalista no mundo do samba. A letra, de mais fácil percepção pelas elites normalizadoras, ganha destaque. O seu papel é de sublinhar as características nativistas, civilizadoras e progressistas do enredo. E no preciso ano de 1942 que a Portela sagra-se vencedora, com um samba que fala por si só. Sem dúvida atentos às recomendações dos radialistas e inspirados na melhor tradição nativista do século XIX, que por assim dizer recriou a figura do índio como expressão máxima da identidade brasileira, os autores não vacilaram em afirmar a origem indígena do samba:
"Samba foi uma festa dos índios
Nós o aperfeiçoamos mais
É unia realidade
Quando ele desce do morro
Para viver na cidade

Samba, tu és muito conhecido
No mundo inteiro
Samba, orgulho dos brasileiros
Foste ao estrangeiro
E alcançaste grande sucesso
Muito atos orgulha o teu progresso
(citado por Tupy, 1985, p. 102)

Dois anos antes, em agosto de 1940, desembarcara no Brasil um maestro americano que, capitaneado por Villa Lobos, vinha recolher músicas populares do Brasil, "cuja relação anexa especificava: sambas, batucadas, marchas de rancho, macumbas, emboladas etc." (Silva et alii, 1980, p. 69). Foram editados dois álbuns de discos com o título Columbia presents - Native Brazilian Music - Leopold Stokowski, mas no Brasil ninguém teve acesso a essas gravações. Mais uma vez o samba dominava o mundo sem que os sambistas tirassem real proveito com isso.

O carnaval de 1942 parece ter marcado o apogeu do reconhecimento oficial do samba. Alguns meses mais tarde, porém, o Brasil entrava em guerra. Os carnavais de 1943, 1944 e 1945 sofreriam sérias mudanças, marcadas pela constante intervenção do Estado. O patrocínio do desfile das escolas passou às mãos da Liga de Defesa Nacional e da União Nacional dos Estudantes. Em 1943, o tema já vem estipulado: é o "Carnaval da Vitória", que obedece ao slogan "colaboro, mesmo quando me divirto" (JB, 06.03.43, p. 9). Desta vez, a visibilidade das escolas é bem maior: desfilam no domingo. A segunda-feira está reservada aos ranchos e blocos e a terça encerra o carnaval com cortejo cívico, com carros alegóricos. Será premiado o samba "cuja letra melhor se adaptar à vitória" (Ibid.). No dia seguinte, o JB insiste: "É a primeira vez que o carnaval se realiza possuído de um caráter nitidamente patriótico (...) A Liga de Defesa Nacional e a União Nacional dos Estudantes, com o apoio dos poderes públicos, organizam o grande programa do carnaval da Vitória, transformando a tradicional festa num esplêndido veículo de preparação psicológica do povo para a luta contra o nipo-nazi-fascismo" (07.03.43, p. 8, grifo meu). O patriotismo está realçado. O carnaval ganhou propósitos propagandísticos. A censura atua com toda a clareza, como mostra a Portaria do chefe de polícia, publicada em 02.03.43:
"XI - São proibidas as canções cujas letras ofendam à moral e ao decoro e as que se refiram ao Governo e à sua orientação político adrnittistrativa;
XII - Não serão permitidas, item toleradas em passeatas ou quaisquer agrupamentos carnavalescos, críticas ou alegorias ofensivas à orientação seguida pelo Governo, em face da situação internacional" (JB, 02.03.43, p. 8).

A mesma portaria será repetida nos anos seguintes (JB, 02.02.45, p.10). A gravidade da hora é aproveitada para justificar o endurecimento do controle. Estão longe os primeiros anos do Estado Novo, quando ainda se garantia aos blocos das repartições federais e municipais o livre exercício do humor.
A temática patriótica, impingida pela Liga da Defesa Nacional e pela União Nacional dos Estudantes, é portanto contemporânea dos "Carnavais de Guerra" (Tupy, 1985). A exigência é apresentada como contribuição ao esforço bélico do país:
"O desfile de amanhã será dos mais interessantes. Dele participarão vinte e duas escolas de samba, compreendendo cerca de trinta mil pessoas.(16) De todos os subúrbios, de todos os morros, de todos os recantos da cidade virão escolas, com suas danças típicas, suas orquestras, sua apresentação característica. Ao lado dos estandartes, legendas de guerra, bandeiras de guerra. Tambores junto de cuícas. Marchas, sambas, músicas de carnaval de crítica ao Eixo, de incitação à luta, de combate ao inimigo comum. Em todos os morros, o arttbiente de entusiasmo é marcante. O povo sabe porque luta" (O Jornal, 06.03.43, pp. 1-2).
O carnaval que tradicionalmente expressa um momento de inversão dos valores e comportamentos (DaMatta, 1979) fora transformado em festa ordeira reforçadora dos valores vigentes.
Nos carnavais de 1944 e 1945 algumas atividades foram mantidas, mas "sem a féérie da avenida Rio Branco" (JB, 24.02.44, p. 9). Houve concurso das escolas de samba, nos mesmos moldes que em 1943, mas obteve pouca divulgação na imprensa.
Em 1946, nova explosão de patriotismo: é verdadeiramente o carnaval da vitória. Todas as agremiações carnavalescas exaltam a vitória dos aliados. Em outubro de 1945 acabou a ditadura de Vargas. Em 1° de fevereiro de 1946 assume o presidente eleito, Eurico Gaspar Dutra. O momento político é de euforia liberal. No domingo de carnaval, o Diário Trabalhista publicou o regulamento da União das Escolas de Samba, cujo artigo 6° especificava:
"É dever das escolas enviar à diretoria da União os relatórios dos enredos, poesias e sambas que serão cantados em concursos, afim de que este faça entrega à comissão julgadora três (3) dias antes do sábado, no máximo, para facilitar o julgamento" (citado em Silva e Oliveira F°,1981, p. 67).
Nada consta acerca de uma possível exigência de temas nacionais. O artigo 2° adverte que "quando as escolas apresentarem enredos históricos" não devem deixar de incluir, mesmo assim, "um conjunto de baianas, para não perdermos a nossa condição de Escolade-Samba" (Ibid.). Os enredos históricos, como se vê, estão sendo colocados como uma possibilidade, entre outras. A preocupação do artigo é, antes, de evitar a descaracterização da escola de samba, os instrumentos de sopro permanecem proibidos e, se há possibilidade de apresentar carros alegóricos, estes devem ser puxados à mão "para que não saia de nossas finalidades e seja sempre um carnaval diferente das grandes sociedades ou ranchos" (Ibid.). Era preciso marcar a diferença. Nada de carros mecânicos, reservados à elite. Samba não mais era coisa de malandro, mas sim de trabalhador braçal.
Foi a Portela a vencedora desse carnaval da vitória, mantendo uma liderança que vinha exercendo ininterruptamente desde 1941, e que só seria quebrada pelo surgimento da Império Serrano, vitoriosa por vários anos consecutivos a partir de 1948.
Mas o ano de 1946 viu também acontecer um grande racha no mundo do samba. A União das Escolas de Samba (UES), que, com o passar do tempo, transformara-se em União Geral das Escolas de Samba do Brasil (UGESB), apoiou a realização de grande desfile em 15 de novembro do mesmo ano, patrocinado pelo jornal Tribuna Popular, órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro, recém-legalizado. De acordo com Silva e Oliveira F° (1981, p. 69), a iniciativa partira de Vespasiano Lyrio da Luz, secretário político do Comitê do Centro do PCB c membro da Comissão Metropolitana da Imprensa Popular, que desejava "sensibilizar a massa proletária das escolas de samba, angariando-lhes o apoio para o partido". O desfile deu-se no campo de São Cristóvão e congregou 22 escolas. 
De acordo com o regulamento estabelecido pela UGESB, os quesitos foram: bandeira, harmonia, bateria, samba, conjunto e, pela primeira vez, evolução da porta-bandeira e exibição do mestre-sala. Quem ganhou foi a escola Prazer da Serrinha, avaliada por uma comissão que incluía vários estudiosos do folclore e arte popular. (17) Mas o samba que maiores aplausos arrancou foi "Prestes, cavaleiro da esperança", de autoria de José Brito. Vários compositores haviam resolvido homenagear o então senador Luiz Carlos Prestes. Na ocasião da entrega do prêmio, Vespasiano Luz fez um discurso exaltando a capacidade de organização das escolas de samba e incentivando a criação de pequenas escolas profissionais em cada sede. Era um plano louvável. Mas, em certo sentido, não deixava de retomar a velha tradição de enquadramento do samba. Estado nacional ou PCB, em ambos os casos se tratava de usar os sambistas para alcançar a massa popular. O processo de domesticação prosseguia, sob nova bandeira.
A reação dos setores anticomunistas não se fez esperar. Em 2 de janeiro de 1947 era fundada a Federação Brasileira das Escolas de Samba (FBES), por Oyama Brandão Teles, jornalista político do Correio da Manhã, que se tornou o secretário da nova entidade, sob a presidência de Ortivo Guedes. Mas quem de fato daria as cartas na Federação seria Irênio Delgado, jornalista de A Manhã, "figura de proa da poderosa Associação dos Cronistas Carnavalescos e amigo particular do ainda mais poderoso prefeito do Distrito Federal, general Angelo Mendes de Moraes, homem de confiança do presidente Dutra" (Silva e Oliveira F°, 1981, p. 71).
Por sua vez, o major Frederico Trota, que havia dado seu apoio para que fosse criada a Federação, resolveu patrocinar a fundação de outra entidade, a Confederação das Escolas de Samba, em 4 de janeiro do mesmo ano.
Nos anos seguintes essas associações iriam coexistir.(18) O que mais nos interessa aqui, porém, é a recuperação, por assim dizer, do desfile das escolas de samba pela Prefeitura do Distrito Federal. Em 1946 vingou uma brevíssima autonomia, que devolvera o controle à União das Escolas de Samba. Em 1947, conseqüência provável do incipiente namoro com o PCB (cujo registro logo seria cassado), o mundo do samba voltava ao enquadramento oficial. Dessa vez o regulamento foi elaborado pela comissão de festejos da Prefeitura. O artigo 1° não deixava margem para dúvidas:
"Art. 1 °- O desfile obedecerá exclusivamente à orientação da Prefeitura do Distrito Federal, representada pela comissão de festejos designada pelo sr. Prefeito do Distrito Federal, de acordo com a portaria n° 20, de 17 de janeiro do corrente ano. Para o julgamento da presente competição, a comissão de festejos designará a comissão de julgamento" (citado por Silva e Oliveira F°, 1981, p. 73).
O regulamento ainda esclarece que o certame "visa elevar o nível moral das escolas de samba". Para tanto, espera que todas se submetam às regras ditadas pela Prefeitura:
"Art. S°-A PDF, por intermédio da comissão de festejos, de acordo com o Art. 1 °, compete designar a comissão de julgamento, devendo os concorrentes aceitar, sem apelação, o veredictum por ela pronunciado" (Ibid.).
Nada poderia ser mais explícito: trata-se de julgamento, cujo veredicto será sem apelação possível.
"Art. 6°-Há inteira conveniência na divulgação dos enredos, ficando os concorrentes com inteira liberdade de distribuição aos jornais desta Capital. E obrigatório nos enredos o motivo nacional" (Ibid., grifo meu).
Apareceu então, em 14 de fevereiro de 1947, a exigência, límpida e inequívoca, de motivo nacional por parte dos poderes públicos.
No ano seguinte o regulamento, novamente editado pela Prefeitura, ia fechar ainda mais a questão. O artigo 6° ganha nova redação:
"Art. 6° - Há inteira conveniência na maior divulgação dos enredos, ficando os concorrentes com inteira liberdade para distribuição aos jornais desta capital e ainda apresentarão do mesmo, cujo motivo é obrigatório obedeça a finalidade nacionalista" (citado em Silva e Oliveira F°, 1981, p. 77, grifo meu).
No prazo de um ano, o motivo nacional transformara-se em obediência à finalidade nacionalista. É que em maio de 1947 o governo Dutra cancelara o registro do Partido Comunista Brasileiro. No fim do ano, iniciara-se a caça aos comunistas. Redação e oficinas da Tribuna Popular, que havia organizado o grandioso desfile das escolas de samba no Campo de São Cristóvão, foram empasteladas em outubro. O Cavaleiro da
Esperança, homenageado naquela ocasião pelos versos de José Brito, (ou de Paulo da Portela, dizem alguns), via sua prisão decretada em S de janeiro de 1948 e passava à clandestinidade. Dois dias depois, senadores e deputados comunistas perdiam o mandato. No campo das relações exteriores, o governo Dutra alinhara-se decisivamente com os Estados Unidos, onde se desencadeara a caça às bruxas. No plano interno, o Acordo Interpartidário garantia a quase inexistência da oposição (Malin e Flaksman, 1984). Na perspectiva da "união nacional", o nacionalismo exacerbado estava na ordem do dia.
O nacionalismo dos tempos de Dutra nada tinha a invejar do nacionalismo getulista. Censura e autoritarismo não faltavam.(19) Durante o Estado Novo, o pragmatismo dos sambistas levara-os ao policiamento interno e à recusa de temas alienígenas. Nem houve necessidade de censura externa. Reinava a cooptação.
Findo o governo getulista houve apenas um breve momento de liberdade, logo encerrado pela repressão. Ninguém poderia acusar o samba de exaltação a Prestes de não pertencer ao acervo dos temas nacionais. Era preciso reforçar o enquadramento das escolas de samba em termos inequívocos. Daí a transformação de motivo nacional em finalidade nacionalista. O comunismo que, por definição, é "internacional", ficara fora da lei, e os sambistas voltavam a assumir, dessa vez por força de lei, o papel de guardiões da nacionalidade.
Do ufanismo à história mítica as transformações do tema nacional
Se, como escreve J. R. Tinhorão, era antiga "a tradição da escolha de enredos capazes de estimular o amor popular pelos símbolos da pátria e as glórias nacionais" (1975, p. 173), a partir de 1948 havia se transformado em obrigação.
Mas, para os sambistas, o que iria garantir a imprescindível qualidade nacionalista? Que temas seriam aconselháveis, ou não? Quais seriam os mais seguros indicadores da identidade nacional?
Dois campos ofereciam motivos já legitimados pelo clássico manual do ufanismo brasileiro: a natureza e a história. Ao enumerar os "motivos da superioridade do Brasil", Afonso Celso arrolava: grandeza territorial, beleza, riqueza, clima, ausência de calamidades, excelência do tipo nacional, todas expressões de uma natureza por demais generosa. E ainda acrescentava aspectos relevantes da história do país: suavidade do regime colonial, mansuetude do sistema escravista, generosidade do Brasil para com outros povos. Entre os acontecimentos históricos julgava que, pelo menos, cinco tópicos estavam por merecer celebração épica: a atuação dos jesuítas, as investidas dos bandeirantes, a república dos Palmares, a guerra holandesa, a retirada da Laguna, além, é claro, da independência do Brasil. Arrolava também nomes de grandes vultos da história, com especial destaque para D. Pedro I e D. Pedro II.
Ora, ao percorrer essa enumeração, que leva o autor de "Por que me ufano do meu Paiz." a exclamar: "que vasta e convidativa seara de glórias!" (1921, p. 121), parece que estamos listando os temas dos enredos das escolas ao longo do tempo.
A natureza, ao oferecer "tudo o que a ardente imaginação possa fantasiar" (Ibid, p. 13), e a história, cuidadosamente limitada a uns poucos episódios e a períodos que não ultrapassam o Império, doravante vão constituir as fontes quase exclusivas onde se apoiarão os sambistas em busca de temas com finalidade nacionalista.
Até onde foi possível verificar, a exigência de motivo nacionalista não foi revogada até hoje. No entanto, ao sabor das transformações sofridas pela sociedade brasileira, nem sempre esse requisito foi obedecido com a mesma rigidez. Houve momentos em que até mesmo um discurso enfatizando episódios do período colonial despertou a desconfiança das autoridades. Foi o caso do samba-enredo de Silas de Oliveira, "Heróis da Liberdade", cantado pela Império Serrano em 1969. Era o primeiro carnaval depois do Ato Institucional n° 5 e os versos de Silas pareciam evocar temas subversivos.2° Felizmente, o compositor "tranqüilizou as autoridades, fazendo-as ver que o samba era histórico e apenas por coincidência poderia se relacionar com o que se estava passando no país naquela hora" (Valença e Valença, 1981, p. 93).
Mas o argumento histórico nem sempre era suficiente. As autoridades não queriam ver exaltar apenas as glórias passadas. Julgavam que a Revolução de 1964 se ombreava facilmente aos grandes feitos dos antepassados. 0 progresso atual deveria ser enfatizado. Em 1970, Amauri Iório, então presidente da Associação das Escolas de Samba da Guanabara, que fora a Brasília pedir auxílio pecuniário para as entidades que representava, recebeu críticas do Planalto quanto às "apresentações das entidades carnavalescas, com temas antigos, sem a mínima relação com os assuntos que interessam ao progresso atual do país" (JB,13.10.70, p. 16). Não bastava evitar temas melindrosos. Era exigido um adesismo explícito.
Nesse aspecto, a palma cabe sem dúvida à Beija Flor de Nilópolis que, em 1975, desfilou cantando um samba de Bira Quininho (Ubirajara Braz Augusto), "0 Grande Decênio" que, como o nome indica, tinha por objetivo festejar os dez anos da Revolução de 1964. É impossível resistir à tentação de transcreve-lo na íntegra:
"É de novo carnaval
Para o samba este é o maior prêmio
E o Beija-Flor vem exaltar
Com galhardia o grande decênio
Do nosso Brasil que segue avante

Nas asas do progresso constante
Onde tanta riqueza se encerra (Bis)

Lembrando o PIS e o PASEP
e também o FUNFURAL
Que ampara o homem do campo
Com a segurança total (Bis)

O comércio e a indústria
Fortalecem o nosso capital
E no setor da economia
Alcançou projeção mundial
Lembraremos também
O Mobral, sua função
Que para tantos brasileiros
Abriu as portas da educação".

Nem as demais escolas nem o público apreciaram muito esse samba, até hoje citado como ilustração exemplar da mais escancarada cooptação. Mas a Beija Flor "recebeu uma série de telegramas de felicitações de Ministérios (a Marinha Mercante, o Mobral e o Gabinete da Presidência da República)" (Oliveira 1989, p. 81).
Presos entre a dificuldade de cantar a liberdade (ainda que fosse em Vila Rica) e a repulsa em exaltar o PIS/ PASEP (ainda que o Planalto apoiasse), compositores e carnavalescos optaram pela mais desabrida fantasia. É quando o Salgueiro dá forma aos sonhos faiscantes de Joãozinho Trinta que mistura França e Maranhão no plano das lendas e conta como o rei Salomão mandou os fenícios explorar o Amazonas.
Os desfiles de Joãozinho Trinta entusiasmam o público e a comissão julgadora. "0 rei da França na Ilha da Assombração" (1974) e "As minas do rei Salomão" (1975 ) dão ao Salgueiro o primeiro lugar. É grande a ciumeira entre as escolas concorrentes que, apoiando-se na antiga exigência do regulamento de 1947, logo coi-rém a denunciar o desviacionismo da bicampeã. 0 rei Salomão nada tem de brasileiro, bradam os queixosos. Ao que Joãozinho retruca com a citação de vários livros assinados por respeitáveis historiadores, que assinalavam "a possibilidade de expedições fenícias no Brasil, patrocinadas pelo rei Salomão (...) Nas entrevistas à imprensa e nas reuniões com os componentes, João enfatizava que a escolha do enredo não era uma atitude de efeito, mas sim a continuidade lógica da ideologia da escola, que sempre se voltara para temas importantes e marginais em nossa história" (Costa, 1984, pp. 228-9).
Não foi possível impugnar o enredo. Mas, por via das dúvidas, a Riotur resolveu anunciar de público que, doravante, o samba só desfilaria com "enredos nacionais": "A Riotur informou ontem que não aceitará enredos das escolas de samba nos desfiles do carnaval de 1976 que fujam aos temas nacionais ou que deixem dúvida quanto à característica nacional, como aconteceu com "As lendas (sie) do rei Salomão", do Salgueiro, vencedora do desfile deste ano (...) 0 anteprojeto de regulamento tem dez proibições, entre elas a que disciplina os enredos, que agora só poderão ser baseados em temas nacionais e não devem ter cunho comercial" (O Globo, 24.05.75). Como se vê, o "agora"é demais. Decorriam exatos 29 anos desde que, no empenho em disciplinar o samba e salvar a massa popular das ideologias exóticas, a Prefeitura do então Distrito Federal exigira um compromisso nacionalista e patriótico.
Mas o samba-enredo já estava trilhando o seu próprio rumo. O apego aos temas nacionalistas desgastarase. A mesma escola que se destacara pelo atendimento acrítico às sugestões oficiais contratou Joãozinho Trinta e sagrou-se campeã em 1976, com o enredo "Sonhar com rei dá leão", exaltação ao jogo do bicho, tema bem brasileiro sem dúvida, mas de difícil enquadramento entre os valores da história oficial, já que, por definição, situa-se à margem da lei.
A partir dessa data o Brasil irá ser retratado de outra forma no discurso do samba-enredo.
Conclusão
O ponto de partida de nossa pesquisa foi a necessidade de situar com precisão a data a partir da qual os poderes públicos passaram a exigir, das escolas de samba, a apresentação de enredos desenvolvendo "motivos nacionais" para o seu desfile anual durante o carnaval. E dizer que, de início, o nosso propósito era exclusivamente empírico, já que visava assegurar a delimitação de uma amostra de sambas-enredo para a realização de uma pesquisa mais ampla, dedicada ao estudo do tratamento dado pelos sambistas aos temas históricos e nacionais. Neste percurso, no entanto, esbarramos em questões de alcance mais amplo. O estudo da evolução do regulamento do desfile pôs em evidência diversas facetas dos mecanismos de intervenção do Estado na produção da cultura popular.
Ao longo dos anos, o que se viu foram medidas, aparentemente reforçadoras dos valores do samba, que, ao se multiplicar e aperfeiçoar, acabaram promovendo uma verdadeira "domesticação da massa urbana" do Rio de Janeiro, para retomar o título do elucidativo artigo de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1984). No nível dos sambistas, o progressivo enquadramento das escolas nos propósitos oficiais é visto de modo positivo, sob o ângulo do reconhecimento e da legitimação. A formação de associações sucessivas, as regras que as próprias editam, vão ao encontro dos desejos das autoridades, e até mesmo, como se verificou em relação à exigência de "motivos nacionais", se antecipam a estes.
Ao que parece, o que menos interessava às populações marginais do Rio de Janeiro era serem consideradas como tais. Nesse aspecto, nossas observações, longe de confirmar os discursos maniqueístas e românticos que vêem na cultura popular a expressão disfarçada de uma vontade rebelde, estão em plena concordância com as conclusões de Queiroz, quando, ao estudar o funcionamento das escolas de samba na década de 80, adverte: "A submissão das camadas inferiores não se opera pela reprodução apenas dos modelos políticos, econômicos e culturais; as afirmações morais encontradas nos estatutos das Escolas de Samba, as regras de comportamento exigidas dos componentes e praticadas nas atividades cotidianas, vêm se juntar aos serviços prestados por elas à população do `seu' subúrbio, e ao novo papel de casa de espetáculos, que assume a sede. Organização e eficiência são qualidades indispensáveis para o sucesso de uma Escola de Samba e de uma casa de espetáculos, e também probidade, trabalho consciencioso. Assim,  pelos seus regulamentos, pelo comportamento dos associados, pelas virtudes diuturnas, demonstram as Escolas de Samba sua moralidade, sua respeitabilidade, sua disciplina, e se dissociam sem equívoco de qualquer paralelismo com a desordena, a vagabundagem, o crifpae". (1984, p. 905, grifo meu).
Ora, toda essa exibição de respeitabilidade vem culminando nos anos 80, quando as escolas apresentam o "maior espetáculo da terra", apoiadas precisamente no dinheiro da contravenção. Esse jogo de cintura, essa paradoxal associação entre norma e desvio, ordem e desordem, parecem-nos expressar o mais saudável pragmatismo, já que, no fim das contas, a adequação aos padrões vigentes serve como sempre serviu, para a manutenção das escolas e para a expansão do seu reconhecimento pela sociedade mais ampla.
Notas
* O presente artigo reproduz, com pequenas modificações, o texto do relatório conclusivo da primeira parte do projeto "Medalhas e brasões: a história oficial no samba-enredo".

1. Este trabalho foi levado adiante graças à dedicação de Juliana Beatriz Almeida de Souza, acadêmica de história em estágio no CPDOC.

2. De acordo com a recente publicação da RIOTUR, Memória do carnaval (1991), ao longo da história distinguem-se vários tipos de grupos carnavalescos: a) os cordões, agrupamentos populares de mascarados; b) os blocos, "conjuntos mais simples, não dramatizados, sem fantasias elaboradas, sem alegorias", que, com o desaparecimento dos cordões, foram-se multiplicando; c) os ranchos, que desfilam sob forma de cortejos. O desfile dos ranchos incluía: abre-alas, comissão de frente, figurantes, alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e porta-estandarte, primeiro mestre de canto, coro feminino, segundo baliza e porta-estandarte, segundo mestre de canto, corpo coral masculino e orquestra (pp. 169-70). Vê-se que a organização dos desfiles de ranchos foi transposta para as escolas de samba quase que integralmente. Os autores são unânimes ao ver nos ranchos uma recriação carioca dos ternos de reis nordestinos, trazidos pelas levas de baianos que, no fim do século XIX, haviam se fixado na zona portuária do Rio de Janeiro.

3. No início, a demarcação entre ranchos e escolas de samba parece sujeita a flutuações, assim como as respectivas denominações. Jota Efegê (1965) retrata a história do Ameno Resedá, fundado em 1907 e desaparecido em 1941, e que se auto designava como "rancho-escola". Por sua vez o famoso Deixa Falar, criado em 12.08.28, e geralmente apontado como tendo sido a primeira escola de samba (Sodré, 1979), logo mais, em 1932, passaria a rancho, "categoria considerada como superior" (Valença, 1983, p. 14). A Vai Como Pode, de Madureira, fundada em 11.04.23, foi de início um bloco. Quanto à Mangueira, criada a partir de vários blocos já existentes, foi fundada em 28.04.28 e por conseguinte reivindica também a primazia (Silva et alü, 1980).

4. As informações acerca da primazia da "invenção" do samba-enredo, bem como da classificação da Mangueira no desfile de 1934, estão algo controversas. Em outro depoimento, o mesmo Carlos Cachaça assegura ter composto "Homenagem" em 1933 (Silva et ali, 1980, p. 45). O desfile no qual a Mangueira brilhou mais uma vez não foi o de carnaval, do qual não tomou parte, mas sim o do dia 20.01.34, em homenagem a Pedro Ernesto.

5. De acordo com Valença (1983, p. 14), o famoso desfile em homenagem ao prefeito foi promovido pelo jornal O Paiz e não interessava apenas às escolas de samba. Cobrou-se ingresso e a distribuição da renda auferida dá uma clara indicação do prestígio então desfrutado pelas diversas agremiações carnavalescas: 35 por cento para as grandes sociedades; 30 por cento para os ranchos; 25 por cento para os blocos; 7 por cento para as escolas de samba e 3 por cento para o Clube Carnavalesco Andaraí.

6. "Artigo único - Os auxílios às escolas de samba para a exibição no carnaval, quando concedidos a juízo da Administração, serão entregues à União das Escolas de Samba, que os distribuirá eqüitativamente pelas suas federadas, sujeitas, porém, à fiscalização por parte da Diretoria Geral de Turismo que, para isso, registrará a lei da União" (História das Escolas de Samba, n° 3, 1976, p. 40).

7. Ver a esse respeito F. Chinelli e L. A. M. da Silva, "O vazio da ordem: relações públicas e organizacionais entre escolas de samba e o jogo do bicho", Boletim do Laboratório de Pesquisa Social, IFCS/UFRJ, n° 2, junho 1991.

8. Em outro campo, o do estudo das religiões afro-brasileiras, é igualmente possível assistir a um processo que evolui da repressão à cooptação (Concone e Negrão, 1985). Queiroz observa que "dois outros enquadramentos espontâneos da massa popular urbana nascem também ao mesmo tempo que as Escolas de Samba: os grandes clubes de futebol e uma nova religião afro-brasileira, a umbanda" (op. cit., nota 34), e julga que sua "oficialização" atende à mesma exigência de impedir que as "classes laboriosas" venham a resvalar para a situação de "classes perigosas".

9. Para os ranchos: dias 2, 5, 6 e 7 de fevereiro de 1937; 26.02.38; e 03.02.39. Para os blocos: dias 2 e 6 de fevereiro de 1937; 26.02.38; e 14.02.39. Em 1940, encontra-se a publicação do regulamento desse último copejo, sem que nele conste o quesito referente aos motivos do enredo.

10. Cabral (1975, p. 38) relata algo parecido em relação aos meios do rádio. Além da censura oficial, "havia uma outra, da Comissão de Censura da Confederação Brasileira de Radiodifusão, isto é, criada pelos próprios proprietários de estações de rádio para proibir a transmissão de determinadas músicas que escapavam à censura oficial".

11. À transcrição do artigo 1 do regulamento de 1938 deve-se acrescentar uma nota legitimadora: "como citado na História das Escolas de Samba, fascículo 4, de Sérgio Cabral, Rio Gráfica e Editora S.A." (Costa, 1984, p. 41, nota 1)

12. "Para que o carnaval carioca se revista de maior brilhantismo, a Prefeitura resolveu instituir prêmios para as Pequenas Sociedades, Ranchos, Blocos e Escolas de Samba que melhores préstitos apresentarem. Nesse sentido o sr. Jorge Dodsworth, Secretário-geral de Administração, sugeriu e obteve do Prefeito Henrique Dodsworth a criação de dois prêmios (...) para os 1° e 2° colocados das Escolas de Samba" (O Correio da Manhã, 12.02.42 e A Manha", mesma data).

13. Art. l°- O desfile obedecerá exclusivamente á orientação da P.D.F. representada pela Secretaria da Administração, respondendo pela Secretaria do Prefeito.
Art. 2°- Só poderão tomar parte as escolas de samba que se inscreveram até 14 de fevereiro às 12 horas, sendo a referida inscrição acompanhada da descrição do enredo, protocolada na Secretaria do Prefeito.
Art. 3° - Tratando-se de um certame que visa elevar o nível moral das escolas de samba, assim como aumentar o brilho dos festejos carnavalescos da cidade, a P.D.F. aceitará, para esse desfile, todas as agremiações organizadas, desde que se apresentem no estilo do carnaval carioca e que estejam inscritos.
(...)
Art. 6° - Há inteira conveniência na maior divulgação dos enredos, ficando as concorrentes com inteira liberdade na distribuição dos jornais desta capital". (Os demais artigos estipulam os quesitos-enredo, harmonia (musical e coral), bateria, samba, e bandeira-assim como a contagem de pontos e o montante dos prêmios) (A Manhã, 15.02.42, p.15).

14. A praça Onze já era alvo das demolições empreendidas para a abertura da avenida Presidente Vargas, e este foi o último ano que serviu de palco para o desfile.

15. O mesmo processo pode ser observado em relação à umbanda (Ortiz, 1978), cuja "oficialização" em muito se assemelha à das escolas de samba, como já foi assinalado por Queiroz (1984).

16. Vale observar que, dos 12 mil componentes da União das Escolas de Samba em 1935, passou-se, em menos de dez anos, para 30 mil.

17. Constam os nomes de Edison Carneiro, Arthur Ramos, Francisco Mignone, Dorival Caymmi, Jorge Amado, Anibal Machado, Aydano do Couto Ferraz e tantos outros...

18. Em 1950 apareceu a União Cívica das Escolas de Samba, que atuou sem ser reconhecida oficialmente pelo Departamento de Turismo e Certames e foi extinta em 1952; em 07.09.51 foi criada a Confederação Brasileira das Escolas de Samba (CBES), dissidência da UGESB e da FBES, que, em 20.09.73, passou a ser a representante máxima das entidades que congregam as escolas de samba do Brasil; em 05.03.52 surgiu a Associação das Escolas de Samba do Brasil, que mais tarde mudou o nome para Associação das Escolas de Samba do Estado da Guanabara e, com a fusão em 1975, tornou-se a AESCRJ: Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, atuando até hoje, malgrado o poder crescente da mais nova agremiação, a Liga Independente das Escolas de Samba, LIESA, fundada em 23.07.84 (RIOTUR, Memória do carnaval, 1991, pp. 178-9).

19. Curiosamente, é também ao governo Dutra que se deve creditar a decadência das grandes sociedades carnavalescas e o conseqüente aumento da visibilidade do desfile das escolas de samba. "As Grandes Sociedades haviam sido uma espécie de clubes masculinos de jogo de azar, aberto no decorrer do ano todo. A proibição do jogo (em 1946) foi um golpe mortal para suas atividades lucrativas e apressou o desaparecimento paulatino de seus desfiles carnavalescos" (Queiroz, 1984, p. 901).

20. Mais especificamente, essa parte: "Ao longe soldados e tambores/alunos e professores/ Acompanhados de clarim/Cantavam assim:/ Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Esta brisa que a juventude afaga/Esta chama que o ódio não apaga/Pelo universo é a evolução/Em sua legítima razão" (Valença, 1981, p. 93).

BIBLIOGRAFIA
CABRAL, S. (1974), As escolas de samba: o quê, queira, como, quando e por que. Rio de Janeiro, Fontana.

__________ (1975), "Getúlio Vargas e a música popular brasileira" Ensaios de Opinião. São Paulo, Inúbia, pp. 36-41.

CARONE, E. (1977), O Estado Novo (1937-1945). Rio de Janeiro/São Paulo, Difel.

CELSO, A. (1921), Por que me ufano do meu paiz (1900). Rio de Janeiro, Livraria Garnier.

CHINELLI, F. & SILVA, L. A. M. (1991), "O vazio da ordem: relações políticas e organizacionais entre escolas de samba e o jogo do bicho". Boletim do Laboratório de Pesquisa Social. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, n° 2, junho, 29 páginas.

CONCONE, M. H. V. B. & NEGRÃO, L. (1984), "Umbanda: da repressão à cooptação". Umbanda e política. Rio de Janeiro, ISER/Marco Zero, pp. 4379.

COSTA, H. (1984), Salgueiro: academia do samba. Rio de Janeiro, Record.

DaMATTA, Roberto. (1978), Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro, Zahar.

EFEGÊ, J. (1965), Ameno Resedá, o rancho que foi escola. Rio de Janeiro, Letras e Artes.

GOMES, A. M. (1982), "O redescobrimento do Brasil". Estado Novo - ideologia e poder. Rio de Janeiro, Zahar, pp. 109-50.

MATOS, C. (1982), Acertei no milhar-Samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

MALIN. M. & FLAKSMAN, D. (1984), "Dutra, Eurico Gaspar". Verbete do Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro, FGV/CPDOC, vol. 2, pp. 1.126-55.

NOSSO SÉCULO. (1980), n° 25, Ed. Abril, pp. 193-208.

OLIVEIRA, J. L. (1989), Uma estratégia de controle: a relação do poder do Estado com as escolas de samba do Rio de Janeiro de 1930 a 1985. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, IFCS[UFRJ.

ORTIZ, R. (1978), A morte branca do feiticeiro negro. Petrópolis, Vozes.

OSÓRIO, B. B. et alii (1970), "A retórica do samba-enredo". Revista do Livro, XIII (42), pp. 7-21.

QUEIROZ, M. L. P. (1984), "Escolas de samba do Rio de Janeiro ou a domesticação da massa urbana". Ciência e Cultura, 36 (6), pp. 892-909, junho.

RIO, João do. (1987), A alma encantadora das ruas [1908]. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura.

RIOTUR. (1991), Memória do Carnaval. Rio de Janeiro, Oficina do Livro.

RODRIGUES, A. M. (1984), Samba negro, espoliação branca. São Paulo, Hucitec.

SILVA, M. T. B. & OLIVEIRA F°, A. L. Silas de Oliveira, Rio de Janeiro, Funarte.

SILVA, M. T. B. & SANTOS, L. (1980), Paulo da Portela. Rio de Janeiro, Funarte.

SILVA, M. T. B. et alii (1980), Fala Mangueira!. Rio de janeiro, José Olympio.

SODRÉ, M. (1979), Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro, Codecri.

TINHORÃO, J. R. (1975), Pequena história da música popular. Petrópolis, Vozes.

TUPY, D. (1985), Carnavais de guerra –o  nacionalismo no samba. Rio de Janeiro, A. S. B.

VALENÇA, E. & VALENÇA, R. (1981), Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba. Rio de Janeiro, José Olympio.

VALENÇA, R. (1983), Palavras de purpurina - Estudo lingüístico do samba-enredo (1972-1982). Dissertação de mestrado, Niterói, UFF.

VELLOSO, M. P. (1987), Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro, FGV/CPDOC.

ZAUDER, F. (org.). (1976), História das escolas de samba. Rio de Janeiro, Rio Gráfica Ed., vols. 3, 4 e 5.

Jornais e revistas consultados:

Localização: Biblioteca Nacional (microfilmagem)

Correio da Manhã - (cód. PR-SPR 130); período: de 1936 a 1945.

O Cruzeiro - (cód. PR-SPR 8 45); período: de 1936 a 1939 e de 1942 a 1945.

Diário Carioca - (cód. PR-SPR 9 45); período: de 1937 a 1945.

Diário da Noite - (cód. PR-SPR 397 (1-); período: de 1937 a 1938 e de 1944 a 1945.

Diário de Notícias -(cód. PR-SPR 4 (1-418) NP); período: de 1937 a 1938 e de 1940 a 1945.

O Jornal - (cód. PR-SPR 136 (1-) N/P); período: de 1936 a 1945.

A Manhã-(cód. PR-SPR7 (1-70); período: de 1942 a 1945.

A Noite - (cód. PR-SPR 155); período: de 1937 a 1945.

Jornal do Brasil - (cód. C PR-SPR 9); período: de 1936 a 1945.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.