A regulamentação do desfile das
escolas de samba no Brasil e a exigência de “motivos nacionais”
Monique Augras – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) (dica de @ladyrasta, Twitter, 19/2/2012)
Enviado
pelo pessoal da Vila
Vudu
“A ordem na
desordem? É um tema nacional” - João do Rio,
1908
Ao longo da história
do carnaval, a persistência da temática nacional nos enredos apresentados pelas
escolas de samba tem sido interpretada ora como característica por assim dizer
natural dessa modalidade de expressão da cultura popular, ora como conseqüência
da atitude repressora das autoridades frente a essa mesma cultura, geralmente
imputada à ditadura do Estado Novo.
Osório et alii
(1970, p. 7) ilustram claramente a primeira vertente quando, ao apresentarem os
resultados de uma pesquisa sobre a retórica do samba-enredo, comentam: "sua
característica mais marcante é o uso exclusivo dos temas nacionais. As escolas
de samba, através de suas criações, louvam a pátria em seus mais diversos
aspectos".
Exemplo oposto é
fornecido por A. M. Rodrigues, autora de polêmica dissertação de mestrado em
ciências sociais, publicada sob o título de Samba negro - e espoliação
branca (1984), que chega a afirmar que "em 1939 o DIP impõe que só temas
sobre a História do Brasil poderão ser abordados pelos sambas-enredo, sem
tratamento crítico, evidentemente. Isso provocará sensíveis alterações nos
sambas, bem como nas festas e nos desfiles" (p. 38). Ora, o DIP foi criado em
27.12.39 e a lei que o institui não contém a menor referência a samba ou temas
correlatos. O livro de E. Carone sobre o Estado Novo (1977), citado por
Rodrigues em apoio à sua afirmação (nota 31), apenas assinala a data de criação
do DIP e o seu campo de ação. Por mais relevante que seja o trabalho de
Rodrigues, nesse ponto é preciso reconhecer que a autora expressa a opinião
tradicional, sem apresentar dados factuais que a
justifiquem.
Do mesmo modo, a
interessante publicação Nosso Século traz, em seu n° 25, de 1980, os
seguintes comentários em relação à censura do Estado Novo: "Submetidos à censura
prévia eram também os préstitos carnavalescos, os ranchos, blocos e escolas de
samba que, por imposição do governo, deveriam ter um sentido nacionalista e
patriótico" (p. 197, grifo meu).
Ao planejar o
projeto de pesquisa sobre o discurso do samba-enredo, com a finalidade de
analisar os mecanismos pelos quais a informação histórica, elaborada pelas dites
culturais e transmitida pelas instituições, é submetida a processo de
reinterpretação no nível da cultura popular, esbarrei na necessidade de
esclarecer esse ponto. O material de que então dispunha só deixava aparecer a
exigência de tema nacional no Regulamento da Competição das Escolas de Samba de
1947, vale dizer, durante o governo Dutra.
Impunha-se iniciara
pesquisa com o levantamento sistemático do regulamento do concurso das escolas
de samba, desde o seu início, nos anos 30.
As fontes primárias
desse levantamento, realizado de maio a agosto de 1991,(1) consistem
principalmente em artigos de jornais referentes ao desfile de escolas de samba,
ranchos e blocos(2) de 1935, data do primeiro concurso oficial instituído
pela Prefeitura do Distrito Federal, até 1945. Fontes secundárias foram
fornecidas pelos diversos autores que tratam da história das escolas de samba
(vide bibliografia). Procurou-se localizar, com a maior precisão possível, o
regulamento do concurso, a identificação dos quesitos a serem julgados e, é
claro, a referência explícita à presença de temas
nacionais.
A
regulamentação do concurso das escolas de samba
No início deste
século, numa das reportagens que mais tarde seriam agrupadas na coletânea A
alma encantadora das ruas (1987), João do Rio comentava a paradoxal
associação da explosão dionisíaca e da estrita hierarquização que organizava o
funcionamento dos cordões. Quem via o desfile dos cordões, no entanto, pouco
percebia dessa ordem. À medida que cordões, blocos e ranchos vão proliferando,
ao longo das primeiras décadas, a opinião assusta-se e clama por maior controle.
As escolas de samba que, conforme a tradição, vêm a constituir-se no fim dos
anos 20,(3) ganham rápida visibilidade e, por conseguinte, exige-se que o
seu desfile na praça Onze seja logo regulamentado.
O modo mais eficaz
de enquadramento dos grupos e agremiações, cuja razão de ser é a diversão e a
livre expressão da alegria, é sem dúvida a premiação. Premiar o desempenho de
determinado grupo permite reforçar padrões de representação e dissuadir outros
grupos de trilhar caminhos desviantes. Sob a aparcncia de valorizar a cultura
popular, o concurso institui uma hierarquia de valores, estéticos alguns,
políticos quase todos, que, ao legitimar certas atuações e desqualificar outras,
acaba assegurando a manutenção de um modelo estável e de fácil
fiscalização.
Concursos são
organizados já em 1932. O jornal Mundo Sportino patrocina o desfile das escolas
de samba na praça Onze, no dia 7 de fevereiro. Dezenove escolas compareceram,
mas apenas cinco foram classificadas: Mangueira em primeiro lugar, seguida de
Vai Como Pode, empatada com Linha do Estácio; Para o Ano Sai Melhor em terceiro
e Unidos da Tijuca em quarto (Silva e Santos, 1980, p. 62). No ano seguinte, o
desfile passa a fazer parte do programa oficial elaborado pela Prefeitura do
Distrito Federal e pelo Touring Club. O prefeito Pedro Ernesto já destina
pequena verba para o concurso. A Mangueira sagra-se
bicampeã.
Desta feita foi o
jornal O Globo que patrocinou o desfile e estabeleceu a lista dos quesitos para
orientação da comissão julgadora: poesia do samba, enredo, originalidade, e
conjunto (Id., Ibid.). É a primeira vez que a letra do samba é oficialmente
levada em conta. De acordo com Silva e Santos (1980, p. 55) é também nesse
desfile que aparece o primeiro samba-enredo da história, apresentado pela Unidos
da Tijuca (terceiro lugar). Um repórter de O Globo, ao comentar o evento, saudou
a apresentação "de um samba principal que estava de acordo com o enredo". Até
então, era costume as escolas desfilarem com dois sambas, uma na ida e outro na
volta, sem a preocupação de relacionar tais sambas com o enredo, ou seja, o tema
do desfile.
Em 1934, foi a vez
da Mangueira apresentar um samba intitulado "Homenagem", que o próprio autor,
Carlos Cachaça,(4) em depoimento recolhido por Marília T. Barbosa da
Silva e Lygia Santos, iria mais tarde classificar como samba-enredo, já que o
mesmo "desenvolvia na letra o enredo visualmente, apresentado, `O sonho de um
poeta' " (Silva e Santos, 1980, p.112).
Aos poucos o uso ia
se generalizando. A denominação de "samba-enredo", no entanto, só apareceria na
década de 50, de acordo com José Ramos Tinhorão, que julga poder atribuir a
crescente importância desse quesito à "progressiva estruturação das escolas no
sentido de encenar dramaticamente os seus enredos, sob a forma de uma ópera-balé
ambulante" (1975, p. 171).
Por vários motivos,
o ano de 1934 representa importante marco na história do samba. O prefeito Pedro
Ernesto é homenageado com um desfile especial, no campo de Santana, no dia 20 de
janeiro, festa de São Sebastião, padroeiro da cidade. A cooptação é claramente
assumida. Em 6 de setembro do mesmo ano é fundada a União das Escolas de Samba,
com o propósito de alcançar o mesmo status das grandes sociedades, dos ranchos e
dos blocos.s Seu presidente, Flávio Paulo Costa, em 30.01.35, endereça carta ao
prefeito, onde explicita as finalidades da União, que pretende nortear "os
núcleos onde se cultiva a verdadeira música nacional, imprimindo em suas
diretrizes o cunho essencial da brasilidade. (...) Explicadas que estão as
finalidades desta agremiação, sob vosso patrocínio, composta de 28 núcleos, num
total aproximado de 12 mil componentes, tendo uma música própria, seus
instrumentos próprios e seus cortejos baseados em motivos nacionais, fazendo
ressurgir o carnaval de rua, base de toda a propaganda que se tem feito em torno
da nossa festa máxima" (História das Escolas de Samba, vol. 3,1976, p. 40, grifo
meu).
Grandiosidade,
brasilidade, propaganda: a carta fundadora da União das Escolas de Samba
mostrava total sintonia com o discurso getulista. Três dias depois Pedro Ernesto
publicava o decreto oficializando a presença das escolas de samba no carnaval
carioca e, sobretudo, reconhecendo a União como sua legítima
representante.(6)
Ainda estavam longe,
contudo, de receber o mesmo tratamento das demais agremiações. A avenida estava
reservada às grandes sociedades, aos ranchos e, particularmente, ao corso,
exibição das elegâncias burguesas no domingo de carnaval. Mas, pelo menos,
deixavam de desfilar por conta própria. Ganhavam reconhecimento e apoio oficial.
Em troca, enquadravam-se nas regras do jogo. Uma das condições exigidas para o
recebimento de dotações era a legalização das agremiações na polícia (Tinhorão,
1975).
A iniciativa de
Pedro Ernesto, ao criar o registro policial, o incentivo da subvenção, a
premiação do concurso, marca claramente a intervenção do Estado no mundo do
samba. Tudo deixa supor que a transformação progressiva do desfile, da estrutura
das escolas de samba e, particularmente, a importância cada vez maior do
samba-enredo, caminham pari passu com a expectativa oficial. Não se trata de um
processo linear de repressão e dominação, mas sim da construção mútua de nova
modalidade de expressão popular.
O primeiro concurso
promovido pela Prefeitura, nos dias 2, 3, 4 e'5 de março de 1935, contou com o
patrocínio e a divulgação do jornal A Nação. O requerimento, publicado uma
semana antes, indicava quatro quesitos: originalidade, harmonia, bateria e
bandeira. O julgamento de conjunto foi excluído "para que todas as escolas
(pudessem) concorrerem igualdade de condições" (A Nação, fevereiro de 1935,
página reproduzida por Silva e Santos, 1980, p. 75). Tampouco foi levado em
conta o quesito do concurso de 1933, referente à "poesia do samba": "os
argumentos apresentados na reunião de ontem pelos representantes da Escola
Vizinha Faladeira foram tão fortes que fizeram cair o item dos vereadores"
(ibidem).
Os versadores eram
na verdade repentistas, que improvisavam os versos na hora do desfile. "Os
versos de improviso (...) como poderiam ser julgados dentro do tumulto de uma
festa de massa? Não, não era possível. Assim o samba subiu. Mas os versadores
caíram. Os argumentos da Escola de Samba Vizinha Faladeira foram aceitos porque
se adequaram às necessidades do consumo, do público estranho, das gravadoras,
dos horários rígidos das autoridades" (Silva e Santos, 1980, p. 831). Um dos
preços a pagar para obter o apoio oficial e o reconhecimento social era a perda
da espontaneidade. O samba-enredo, atrelado à temática do desfile, seria um dos
produtos dessa tendência padronizadora.
No concurso de 1935
só poderiam se inscrever agremiações filiadas à União das Escolas de Samba.
Foram 25 a desfilar. Desta feita, quem se
classificou em primeiro lugar foi a Vai Como Pode (que logo depois passaria a se
chamar Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela), apresentando o enredo "O
samba dominando o mundo". De acordo com Silva e Santos, "o reconhecimento pelas
autoridades públicas do seu verdadeiro valor causara tanta alegria aos
batalhadores do samba que quase todos os motivos dos seus préstitos desse ano
faziam referência à vitória do samba" (1980, p. 84). Como se viu, era uma
vitória ambígua. O tema fantasioso da dominação do mundo pelo samba soberano
disfarçava a real domesticação pelo enquadramento oficial.
Daí para diante, o
desejo de brilhar acompanharse-á da preocupação com obedecer às regras do jogo.
Em certo sentido, pode-se observar que o desenvolvimento das escolas de samba
até chegar à atual feição de "maior espetáculo da Terra" é pautado por episódios
sucessivos de docilidade, resistência, confronto, negociação, pondo em cena
diversas modalidades de solução para o conflito entre o desejo e a necessidade,
entre a expressão genuína e o atendimento às exigências de diversos
patrocinadores - sejam eles ligados ao Estado, à indústria turística ou à
contravenção.(7)
Ainda que trabalhos
recentes - oriundos em sua maioria da década de 80, quando o empenho com
resgatar os diversos aspectos da cidadania amiúde produziu um discurso
maniqueísta opondo cultura popular, espontânea e pura, à atuação do Estado,
repressora e alienante - tenham enfatizado o mundo do samba em termos de
resistência, é forçoso reconhecer que as coisas jamais foram tão simples assim.
Como bem observou Maria Isaura Pereira de Queiroz, "a `legalização' das Escolas
de Samba e a concessão de subvenções para a realização dos desfiles deixam de
ser uma vitória das massas para se tornar instrumentos utilizados pelas camadas
superiores, no sentido de reforçar sua preeminência sobre a população suburbana.
O desfile nas avenidas centrais do Rio deixa de parecer a afirmação de um
direito conquistado e apresenta-se como recompensa concedida diante de um ‘bom
comportamento’ manifesto" (1984, p. 906).
Desde as origens até
nossos dias, o objeto precípuo das agremiações populares, e não apenas as
carnavalescas,(8) tem sido a sobrevivência. O enquadramento nos ditames
dos patrocinadores, em vez de adesismo indiscriminado, expressa sobretudo
saudável pragmatismo.
Aos sambistas dos
anos 30 não faltava jogo de cintura. Em 1933, Pedro Ernesto havia
fundado 0 Partido Autonomista do Distrito Federal, "com a clara intenção de
conquistar votos de favelados, sambistas, e pobres em geral" (Chinelli e Silva,
1991, p. 10). A resposta não se fizera esperar: ao manifestar a sua adesão ao
nacionalismo getulista, a União das Escolas de Samba apresentava-se como
interlocutora capaz de congregar massas populares (não por acaso, certamente,
insistiu no número de 12 mil componentes). De um lado, consolidava o
relacionamento entre morro e poder público, assumindo as feições do clientelismo
populista, como bem assinala Queiroz: "A tolerância e mesmo a benevolência que a
Prefeitura do Rio de Janeiro demonstrou então para com as Escolas de Samba sem
dúvida decorreu dessas circunstâncias. Inúmeros testemunhos se referem às
verdadeiras transações que se operaram entre fundadores de Escolas de Samba,
chefes políticos de diversos níveis, candidatos a vários postos, altos
funcionários em busca de prestígio. Destes solicitavam os fundadores das Escolas
melhorias e privilégios para elas, contra certo número de votos no momento das
eleições; e obtiveram o que desejavam" (1984, p. 901).
Por outro lado,
interiorizava as normas que iriam nortear a modernização da sociedade
brasileira. Para ingressar na União era preciso obedecer ao modelo das
sociedades civis nacionais. "Desde o início, a racionalidade da organização foi,
portanto, erigida como critério para sua admissão à Associação, o que vale
dizer, ao desfile" (Id., Ibid., p. 900). A estrutura burocratizada e quase
empresarial que hoje organiza o "maior espetáculo da Terra" é conseqüência
lógica do processo iniciado em 1935.
A
exigência de temas nacionais
A partir da
oficialização de 1935, alguns jornais vão informar, a cada ano, qual o
regulamento do concurso. Em 23.02.36, o Jornal do Brasil transcreve (p.
8):
"Regulamento das
Escolas de Samba
1 ° - O julgamento
terá início às 21 h, sendo julgadas as escolas de acordo cova o
comparecimento.
2°-As escolas
enviarão até o dia 22, véspera do concurso, os seus enredos e os dois sambas que
serão cantados na cornpetição até as 22 horas, na sede da União das Escolas de
Sarnba, à rua José Higino, n° 69, sefn o que a comissão julgadora não se
responsabiliza pelo julgamento.
(falta...) são dois,
sendo uni cantado no ato da entrada até o coreto da comissão julgadora e o
segundo na retirada.
4°- Só é permitido o
espaço de 15 minutos para a exibição.
5°-Não será
permitido o uso de instrumentos de corda, nenz de sopro, por estarem estes
instrumentos fora do nosso ritmo.
6°-As escolas
concorrentes só terão direito a um prêmio. No caso de fazer jus a mais prêmios,
a comissão julgadora decidirá pelo prêmio maior. "
Os prêmios
contemplavam os quesitos de harmonia (800$000), samba (500$000), bateria
(300$000), enredo (100$000), além de mais cinco prêmios de
consolação.
Vê-se que, em 1936,
ainda estava em uso a apresentação de dois sambas, um na ida e outro na volta. O
último artigo estipula que "para facilitar às escolas a apresentação do enredo e
os dois sambas, a comissão julgadora os receberá na hora do desfile da
respectiva escola". Não havia mesmo espaço para o improviso, e o tempo de
apresentação era inacreditavelmente exíguo. Outro dado relevante é a exclusão
dos instrumentos de corda e de sopro, vigente até os nossos
dias.
Mas na questão que
nos preocupa, ou seja, a exigência de tema nacional, nada consta. Curiosamente,
o mesmo jornal, ao organizar e reproduzir os respectivos regulamentos do
concurso dos ranchos e do "cortejo dos blocos de repartições federais e
municipais", esclarece:
- art. 20 (do
concurso dos ranchos): "É de inteira liberdade a escolha dos enredos, sejam em
motivos nacionais ou estrangeiros" (publicado no dia 05.02.36, p. 14, e repetido
até o dia 22.02.36).
- art. 5 (do cortejo
dos blocos): "O enredo para cada conjunto é obrigatório, podendo versar em
motivos nacionais ou estrangeiros" (publicado no dia 16.02.36, p. 21 e repetido
até o dia 23.02.36).
- art. 6 (idem):
"Entende-se por conjunto o seguinte: harmonia, arte, enredo, indumentária,
cenografia, originalidade, estandarte e humorismo" (idem).
Seria estranho que
as escolas de samba, recémchegadas no cenário carnavalesco, sofressem maior grau
de restrição. Na verdade, como vimos, a questão do tema nacional é abordada pelo
regulamento, só constando de documento redigido pelos próprios sambistas, na
carta dirigida ao prefeito pelo presidente da União, em janeiro de
1935.
Nos carnavais dos
anos seguintes, em 1937,1938 e 1939, o JB reproduzirá o mesmo
regulamento, referente aos ranchos e aos blocos das repartições federais e
municipais.(9) Este último caso é bastante interessante. Em pleno início
do Estado Novo, funcionários públicos ainda gozavam de inteira liberdade para
compor seus enredos; era-lhes garantido até mesmo o livre exercício do
humor.
O desfile das
escolas de samba do carnaval de 1937 realizou-se no dia 7 de fevereiro, a partir
das 21 horas. Não encontramos o regulamento, mas, aparentemente, nele constavam
exigências a respeito do quesito "tempo": "Até as 2:30 da madrugada, quando a
polícia deu por terminado o desfile, somente 16 escolas tinham passado perante
os julgadores que se viram, nessas condições, obrigados a suspender o desfile"
(O Jornal, 09.02.37). Ainda que houvesse uma comissão julgadora, era fácil
verificar quem mandava de fato no desfile. Diz a tradição que a polícia ordenou
que as luzes fossem apagadas.
Em 1938 não houve
julgamento das escolas de samba: "Não foi efetuado porque só compareceu um dos
três juízes da comissão designada pela diretoria de turismo" (O Correio da
Manhã, 03.03.38). O único regulamento que conseguimos localizar dizia
respeito ao concurso oficial de marchas e sambas, não se aplicando portanto às
escolas. Mas vale a pena transcrever o artigo 3: "Serão afastadas do concurso as
que contiverem alusões políticas, religiosas ou que sejam atentatórias à moral"
(JB, 22.02.38). Mal fora implantado o Estado Novo, a censura entrava em
ação.
Em 1939, O Jornal
proclama: "Venceu a Escola de Samba Portela - milhares de pessoas na Praça 11"
(23.02.39). Traz também a notícia que tanto contribuiria para alicerçar a
tradição que atribui à ditadura getulista a exigência do tema nacional: "A
Escola de Samba Vizinha Faladeira foi desclassificada. Utilizou-se do enredo da
lenda".
A lenda em questão
era Branca de Neve, tema sobre o qual Walt Disney lançara, alguns anos antes, o
primeiro desenho animado de longa-metragem.
Em seu excelente
livro sobre o Salgueiro, Haroldo Costa situa claramente a origem da exigência de
brasilidade. É mais uma vez interna aos círculos do samba:
"Em 1938, Eloy
Antero Dias (...) era o presidente da União das Escolas de Samba, que naquela
oportunidade tentava ordenar os desfiles através de um regulamento cujo artigo
primeiro era assim redigido:
Artigo 1 °-De acordo
com a música nacional, as escolas não poderão apresentar os seus enredos no
carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou
carretas, assira corno não
serão permitidas histórias internacionais em sonhos ou imaginação" (1984, pp.
41-2, grifo meu).
À medida que a União
das Escolas de Samba se vinha enquadrando nos moldes das demais sociedades
civis, endurecia as suas exigências. Como sói acontecer em regimes ditatoriais,
a censura era por assim dizer introjetada.(10) A proibição do recurso a
"sonhos ou imaginação" chega a doer. Qual será o espaço do samba-enredo se não
for o imaginário? No seu afã de cooptação, o artigo 1° do regulamento editado
pela própria União encerrava potencialidades suicidas. Restava contudo o sonho
nacional. E este, sem sombra de dúvida, era uma das marcas da ideologia
estadonovista.
Mas é claro que o
seu nacionalismo exacerbado não se criou a partir do nada. Farta corrente nesse
sentido perpassa o discurso dos intelectuais ao longo da década de 20 (Venoso,
1987). Não há motivo para supor que as classes populares escapassem desse
processo.
Jota Efegê (1977, p.
52) cita o artigo de Coelho Neto que, em 1924, incentivava o rancho "Ameno
Resedá" a desenvolver enredo com temas nacionalistas:
"(...) o seu exemplo
imitado, com o que não só lucrarão os ranchos, tendo fartas novidades para
explora; com o Povo que aprenderá alegremente, em espetáculos artísticos, a
arear o Brasil através da poesia de suas lendas, dos episódios de sua história e
dos feitos dos seus heróis".
Incentivar é uma
coisa; proibir que se siga outro caminho é bem diferente. A exclusão da Vizinha
Faladeira não deixa, no entanto, de constituir fato curioso. Não fora essa mesma
escola que, em 1935, apresentara argumentos para alijar os "versadores" do
concurso? Iniciara o processo de enquadramento do samba e, poucos anos depois,
iria tornar-se a sua primeira vítima. Nem todo mundo deve ter lamentado a
desqualificação da Vizinha Faladeira.
Em todo caso, parece
fora de dúvida que a exigência de tema nacional não partiu do DIP. Nem foi
preciso. O Estado Novo surgiu em meio a uma forte ideologia nativista. A União
das Escolas de Samba, no seu desejo de ser aceita, de granjear para o samba a
aprovação dos poderosos e o apoio do Estado, dificilmente poderia manter-se
imune a esse clima.
Os autores da
recente publicação da RIOTUR, Memória do carnaval (1991), chegam à mesma
conclusão:
"A princípio, os
temas versavam quase que exclusivamente sobre a História do Brasil. Foi a fase
dos enredos ufanistas-nacionalistas, levando a uma crença geral de que havia
obrigatoriedade do uso dos mesmos pelas Escolas. Na verdade, o costume se firmou
porque o primeiro regulamento do desfile, sob a exclusiva responsabilidade do
poder público, foi feito no limiar do Estado Novo, em 1939, estabelecendo não
uma imposição, mas um clima para tal" (p. 309).
Esse texto, apesar
de esclarecedor, mantém certa ambigüidade. Como se viu, o primeiro regulamento
do desfile oficial é bem anterior e, ao acreditar no depoimento de Haroldo Costa
- que se apóia também na autoridade de Sérgio Cabral(11) -, foi redigido
pelas mais ilustres figuras "da galeria dos sambistas históricos". De qualquer
maneira, a ponderação de Memória do carnaval constitui valiosa contribuição ao
esforço de derrubar uma das mais sólidas lendas sobre a obrigatoriedade dos
temas nacionais.
Nos anos seguintes,
as notícias encontradas são esparsas no que diz respeito ao desfile dos ranchos,
blocos e escolas de samba. Em janeiro de 1940, a Federação das Pequenas
Sociedades Carnavalescas publica no JB uma nota oficial denunciando a má vontade
da Prefeitura, que, ao que parece, impediu o desfile dos ranchos e blocos (JB,
17.01.40, p. 13). Mas houve concurso de escolas de samba, cuja comissão
julgadora, designada pelo próprio prefeito Henrique Dodsworth, deu o primeiro
lugar à Mangueira. Eram cinco os quesitos: samba, harmonia, conjunto e enredo
(Diário Carioca, 10.02.40, p. 11).
O mesmo controle
direto pela Prefeitura mantém - se em 1941 e 1942. O júri das escolas de samba é
nomeado pelo secretário-geral de administração, "respondendo pela secretaria do
prefeito" (JB, 23.02.41, p. 9). Em 1941 houve desfile de blocos e ranchos
organizado pelo JB e, mais uma vez, é assegurada a liberdade de escolha dos
"motivos":
art. 11 - "Os
motivos dos cortejos podem ser nacionais ou estrangeiros" (regulamento publicado
pelo JB nos dias 16, 22 e 23 de fevereiro de 1941).
Em
1942, a
imprensa cobre com certo destaque o apoio concedido pela Prefeitura ao desfile
dos ranchos, blocos e escolas de samba.(12) Houve mais uma vez uma
comissão específica para julgar estas últimas, que deviam inscrever-se na
Secretaria do prefeito, "juntando ao pedido os enredos desenvolvidos em seus
conjuntos" (A Manhã, 12.02.42, p. 14). Os quesitos (samba, harmonia, bateria,
bandeira e enredo) são fartamente divulgados (edições do dia 15.02.42 de A
Manhã, O Jornal, e A Noite). A Manhã publica in extenso o Regulamento da
Competição instituída pela Prefeitura do Distrito Federal que, mais uma vez,
nada diz a respeito de temas nacionais.(13) O clima nativista, contudo,
fica explícito em artigo de A Noite, intitulado "Inabalável, a Praça
Onze":(14) "Esse espetáculo grandioso desta vez será julgado, pois as
Escolas de Sambas (sie) se apresentarão com enredos e com músicas
características, com letras e ritmos nascidos lá no morro" (14.02.42, p.
7).
A valorização da
produção cultural do morro vinha-se inserir no resgate do folclore brasileiro.
Nas páginas da revista Cultura Política, criada em 1941 e que
desapareceria junto com o Estado Novo, são constantes os artigos referentes a
folclore e cultura popular. De acordo com a ideologia do Estado Nacional "é a
cultura que põe a política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes de
inspiração popular" (Gomes, 1982, p. 116). Realçar aquilo que se julgava ser
"intrínseco" ao homem brasileiro implicava o interesse pelo samba. É claro que
não se podia deixá-lo proliferar em qualquer direção. Suas origens negras
marcavam-no com o selo do primitivismo. Era necessário educá-lo, dar-lhe formato
mais civilizado, mais condizente com os padrões da moderna
nacionalidade:
"O samba, que traz
ria sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e
arrítmico (sie), ruas paciência: não repudiamos esse nosso irmão pelos defeitos
que contém. Sejamos benévolos; lancemos mão da inteligência e da civilização.
Tentemos devagarinho torná-lo mais educado e social" (A. Salgado, "Radiodifusão
Social", Cultura Política ra° 6, agosto 1941, pp. 79-93, citado por Velloso,
1987, p. 32).
Em 1942 é criada, na
"Hora do Brasil", uma sessão de música folclórica (Velloso, 1987), para
recolher, divulgar e obviamente reeducar esse importante produto da cultura
brasileira. O repentino destaque dado pela imprensa ao desfile das escolas,
justamente quando o seu reduto tradicional, a praça Onze, está sendo demolido,
como que corresponde a essa nova preocupação do modelo oficial. Valoriza-se
destruindo.
Na música popular
difundida pelo rádio, surge o samba "apologético-nacionalista" (Matos, 1982) do
qual o melhor exemplo é a produção de Ari Barroso. No morro, o clientelismo
facilita a absorção de "um nacionalismo ingênuo e ufanista que vinha ao encontro
dos interesses políticos do governo Vargas" (Matos, 1982, p. 47). O desfile
oficial garante a premiação das escolas cujo samba conseguiu "civilizarse". Se o
ritmo ainda permanece indômito, há pelo menos um elemento de fácil controle, que
é a letra. Os radialistas insistem no seu papel civilizador, na luta necessária
contra o primitivismo: "Há muita coisa interessante para ser abordada, como há
também muita maneira inteligente de livrar o nosso povo das idéias africanistas
que lhe são impingidas pelos maestrecos e poetaços chamados do morro" (Silvio
Moreaux, "Notas radiofônicas", 1942, citado por Cabral, 1974, p. 116). Como se
sabe, o povo é bom e ingênuo. São os poetaços que lhe impingern temáticas
africanas. Por sorte, as elites getulistas estão atentas, para garantir-lhe o
acesso à verdadeira autenticidade. O projeto cultural do Estado Novo inclui a
exigência do branqueamento.(15)
Nessa perspectiva,
parece que são os anos 1941-2 que melhor cristalizam a importância do enfoque
histórico nacionalista no mundo do samba. A letra, de mais fácil percepção pelas
elites normalizadoras, ganha destaque. O seu papel é de sublinhar as
características nativistas, civilizadoras e progressistas do enredo. E no
preciso ano de 1942 que a Portela sagra-se vencedora, com um samba que fala por
si só. Sem dúvida atentos às recomendações dos radialistas e inspirados na
melhor tradição nativista do século XIX, que por assim dizer recriou a figura do
índio como expressão máxima da identidade brasileira, os autores não vacilaram
em afirmar a origem indígena do samba:
"Samba foi uma festa
dos índios
Nós o aperfeiçoamos
mais
É unia
realidade
Quando ele desce do
morro
Para viver na
cidade
Samba, tu és muito conhecido
No mundo
inteiro
Samba, orgulho dos
brasileiros
Foste ao
estrangeiro
E alcançaste grande
sucesso
Muito atos orgulha o
teu progresso
(citado por Tupy,
1985, p. 102)
Dois anos antes, em
agosto de 1940, desembarcara no Brasil um maestro americano que, capitaneado por
Villa Lobos, vinha recolher músicas populares do Brasil, "cuja relação anexa
especificava: sambas, batucadas, marchas de rancho, macumbas, emboladas etc."
(Silva et alii, 1980, p. 69). Foram editados dois álbuns de discos com o título
Columbia presents - Native Brazilian Music - Leopold Stokowski, mas no Brasil
ninguém teve acesso a essas gravações. Mais uma vez o samba dominava o mundo sem
que os sambistas tirassem real proveito com isso.
O carnaval de 1942
parece ter marcado o apogeu do reconhecimento oficial do samba. Alguns meses
mais tarde, porém, o Brasil entrava em guerra. Os carnavais de 1943, 1944 e 1945
sofreriam sérias mudanças, marcadas pela constante intervenção do Estado. O
patrocínio do desfile das escolas passou às mãos da Liga de Defesa Nacional e da
União Nacional dos Estudantes. Em 1943, o tema já vem estipulado: é o "Carnaval
da Vitória", que obedece ao slogan "colaboro, mesmo quando me divirto" (JB,
06.03.43, p. 9). Desta vez, a visibilidade das escolas é bem maior: desfilam no
domingo. A segunda-feira está reservada aos ranchos e blocos e a terça encerra o
carnaval com cortejo cívico, com carros alegóricos. Será premiado o samba "cuja
letra melhor se adaptar à vitória" (Ibid.). No dia seguinte, o JB insiste: "É a
primeira vez que o carnaval se realiza possuído de um caráter nitidamente
patriótico (...) A Liga de Defesa Nacional e a União Nacional dos Estudantes,
com o apoio dos poderes públicos, organizam o grande programa do carnaval da
Vitória, transformando a tradicional festa num esplêndido veículo de preparação
psicológica do povo para a luta contra o nipo-nazi-fascismo" (07.03.43, p. 8,
grifo meu). O patriotismo está realçado. O carnaval ganhou propósitos
propagandísticos. A censura atua com toda a clareza, como mostra a Portaria do
chefe de polícia, publicada em 02.03.43:
"XI - São proibidas
as canções cujas letras ofendam à moral e ao decoro e as que se refiram ao
Governo e à sua orientação político adrnittistrativa;
XII - Não serão
permitidas, item toleradas em passeatas ou quaisquer agrupamentos carnavalescos,
críticas ou alegorias ofensivas à orientação seguida pelo Governo, em face da
situação internacional" (JB, 02.03.43, p. 8).
A mesma portaria
será repetida nos anos seguintes (JB, 02.02.45, p.10). A gravidade da hora é
aproveitada para justificar o endurecimento do controle. Estão longe os
primeiros anos do Estado Novo, quando ainda se garantia aos blocos das
repartições federais e municipais o livre exercício do
humor.
A temática
patriótica, impingida pela Liga da Defesa Nacional e pela União Nacional dos
Estudantes, é portanto contemporânea dos "Carnavais de Guerra" (Tupy, 1985). A
exigência é apresentada como contribuição ao esforço bélico do
país:
"O desfile de amanhã
será dos mais interessantes. Dele participarão vinte e duas escolas de samba,
compreendendo cerca de trinta mil pessoas.(16) De todos os subúrbios, de
todos os morros, de todos os recantos da cidade virão escolas, com suas danças
típicas, suas orquestras, sua apresentação característica. Ao lado dos
estandartes, legendas de guerra, bandeiras de guerra. Tambores junto de cuícas.
Marchas, sambas, músicas de carnaval de crítica ao Eixo, de incitação à luta, de
combate ao inimigo comum. Em todos os morros, o arttbiente de entusiasmo é
marcante. O povo sabe porque luta" (O Jornal, 06.03.43, pp.
1-2).
O carnaval que
tradicionalmente expressa um momento de inversão dos valores e comportamentos
(DaMatta, 1979) fora transformado em festa ordeira reforçadora dos valores
vigentes.
Nos carnavais de
1944 e 1945 algumas atividades foram mantidas, mas "sem a féérie da avenida Rio
Branco" (JB, 24.02.44, p. 9). Houve concurso das escolas de samba, nos mesmos
moldes que em 1943, mas obteve pouca divulgação na
imprensa.
Em 1946, nova
explosão de patriotismo: é verdadeiramente o carnaval da vitória. Todas as
agremiações carnavalescas exaltam a vitória dos aliados. Em outubro de 1945
acabou a ditadura de Vargas. Em 1° de fevereiro de 1946 assume o presidente
eleito, Eurico Gaspar Dutra. O momento político é de euforia liberal. No domingo
de carnaval, o Diário Trabalhista publicou o regulamento da União das Escolas de
Samba, cujo artigo 6° especificava:
"É dever das escolas
enviar à diretoria da União os relatórios dos enredos, poesias e sambas que
serão cantados em concursos, afim de que este faça entrega à comissão julgadora
três (3) dias antes do sábado, no máximo, para facilitar o julgamento" (citado
em Silva e Oliveira F°,1981, p. 67).
Nada consta acerca
de uma possível exigência de temas nacionais. O artigo 2° adverte que "quando as
escolas apresentarem enredos históricos" não devem deixar de incluir, mesmo
assim, "um conjunto de baianas, para não perdermos a nossa condição de
Escolade-Samba" (Ibid.). Os enredos históricos, como se vê, estão sendo
colocados como uma possibilidade, entre outras. A preocupação do artigo é,
antes, de evitar a descaracterização da escola de samba, os instrumentos de
sopro permanecem proibidos e, se há possibilidade de apresentar carros
alegóricos, estes devem ser puxados à mão "para que não saia de nossas
finalidades e seja sempre um carnaval diferente das grandes sociedades ou
ranchos" (Ibid.). Era preciso marcar a diferença. Nada de carros
mecânicos, reservados à elite. Samba não mais era coisa de malandro, mas sim de
trabalhador braçal.
Foi a Portela a
vencedora desse carnaval da vitória, mantendo uma liderança que vinha exercendo
ininterruptamente desde 1941, e que só seria quebrada pelo surgimento da Império
Serrano, vitoriosa por vários anos consecutivos a partir de
1948.
Mas o ano de 1946
viu também acontecer um grande racha no mundo do samba. A União das Escolas de
Samba (UES), que, com o passar do tempo, transformara-se em União Geral das
Escolas de Samba do Brasil (UGESB), apoiou a realização de grande desfile em 15
de novembro do mesmo ano, patrocinado pelo jornal Tribuna Popular, órgão
oficial do Partido Comunista Brasileiro, recém-legalizado. De acordo com Silva e
Oliveira F° (1981, p. 69), a iniciativa partira de Vespasiano Lyrio da Luz,
secretário político do Comitê do Centro do PCB c membro da Comissão
Metropolitana da Imprensa Popular, que desejava "sensibilizar a massa proletária
das escolas de samba, angariando-lhes o apoio para o partido". O desfile deu-se
no campo de São Cristóvão e congregou 22 escolas.
De acordo com o regulamento
estabelecido pela UGESB, os quesitos foram: bandeira, harmonia, bateria, samba,
conjunto e, pela primeira vez, evolução da porta-bandeira e exibição do
mestre-sala. Quem ganhou foi a escola Prazer da Serrinha, avaliada por uma
comissão que incluía vários estudiosos do folclore e arte popular. (17)
Mas o samba que maiores aplausos arrancou foi "Prestes, cavaleiro da esperança",
de autoria de José Brito. Vários compositores haviam resolvido homenagear o
então senador Luiz Carlos Prestes. Na ocasião da entrega do prêmio, Vespasiano
Luz fez um discurso exaltando a capacidade de organização das escolas de samba e
incentivando a criação de pequenas escolas profissionais em cada sede. Era um
plano louvável. Mas, em certo sentido, não deixava de retomar a velha tradição
de enquadramento do samba. Estado nacional ou PCB, em ambos os casos se tratava
de usar os sambistas para alcançar a massa popular. O processo de domesticação
prosseguia, sob nova bandeira.
A reação dos setores
anticomunistas não se fez esperar. Em 2 de janeiro de 1947 era fundada a
Federação Brasileira das Escolas de Samba (FBES), por Oyama Brandão Teles,
jornalista político do Correio da Manhã, que se tornou o secretário da nova
entidade, sob a presidência de Ortivo Guedes. Mas quem de fato daria as cartas
na Federação seria Irênio Delgado, jornalista de A Manhã, "figura de proa da
poderosa Associação dos Cronistas Carnavalescos e amigo particular do ainda mais
poderoso prefeito do Distrito Federal, general Angelo Mendes de Moraes, homem de
confiança do presidente Dutra" (Silva e Oliveira F°, 1981, p.
71).
Por sua vez, o major
Frederico Trota, que havia dado seu apoio para que fosse criada a Federação,
resolveu patrocinar a fundação de outra entidade, a Confederação das Escolas de
Samba, em 4 de janeiro do mesmo ano.
Nos anos seguintes
essas associações iriam coexistir.(18) O que mais nos interessa aqui,
porém, é a recuperação, por assim dizer, do desfile das escolas de samba pela
Prefeitura do Distrito Federal. Em 1946 vingou uma brevíssima autonomia, que
devolvera o controle à União das Escolas de Samba. Em 1947, conseqüência
provável do incipiente namoro com o PCB (cujo registro logo seria cassado), o
mundo do samba voltava ao enquadramento oficial. Dessa vez o regulamento foi
elaborado pela comissão de festejos da Prefeitura. O artigo 1° não deixava
margem para dúvidas:
"Art. 1 °- O desfile
obedecerá exclusivamente à orientação da Prefeitura do Distrito
Federal, representada pela comissão de festejos designada pelo sr. Prefeito do
Distrito Federal, de acordo com a portaria n° 20, de 17 de janeiro do corrente
ano. Para o julgamento da presente competição, a comissão de festejos designará
a comissão de julgamento" (citado por Silva e Oliveira F°, 1981, p.
73).
O regulamento ainda
esclarece que o certame "visa elevar o nível moral das escolas de samba". Para
tanto, espera que todas se submetam às regras ditadas pela
Prefeitura:
"Art. S°-A PDF, por
intermédio da comissão de festejos, de acordo com o Art. 1 °, compete designar a
comissão de julgamento, devendo os concorrentes aceitar, sem apelação, o
veredictum por ela pronunciado" (Ibid.).
Nada poderia ser
mais explícito: trata-se de julgamento, cujo veredicto será sem apelação
possível.
"Art. 6°-Há inteira
conveniência na divulgação dos enredos, ficando os concorrentes com inteira
liberdade de distribuição aos jornais desta Capital. E obrigatório nos enredos o
motivo nacional" (Ibid., grifo meu).
Apareceu então, em
14 de fevereiro de 1947,
a exigência, límpida e inequívoca, de motivo nacional por
parte dos poderes públicos.
No ano seguinte o
regulamento, novamente editado pela Prefeitura, ia fechar ainda mais a questão.
O artigo 6° ganha nova redação:
"Art. 6° - Há
inteira conveniência na maior divulgação dos enredos, ficando os concorrentes
com inteira liberdade para distribuição aos jornais desta capital e ainda
apresentarão do mesmo, cujo motivo é obrigatório obedeça a finalidade
nacionalista" (citado em Silva e Oliveira F°, 1981, p. 77, grifo
meu).
No prazo de um ano,
o motivo nacional transformara-se em obediência à finalidade
nacionalista. É que em maio de 1947 o governo Dutra cancelara o registro do
Partido Comunista Brasileiro. No fim do ano, iniciara-se a caça aos comunistas.
Redação e oficinas da Tribuna Popular, que havia organizado o grandioso desfile
das escolas de samba no Campo de São Cristóvão, foram empasteladas em outubro. O
Cavaleiro da
Esperança,
homenageado naquela ocasião pelos versos de José Brito, (ou de Paulo da Portela,
dizem alguns), via sua prisão decretada em S de janeiro de 1948 e passava à
clandestinidade. Dois dias depois, senadores e deputados comunistas perdiam o
mandato. No campo das relações exteriores, o governo Dutra alinhara-se
decisivamente com os Estados Unidos, onde se desencadeara a caça às bruxas. No
plano interno, o Acordo Interpartidário garantia a quase inexistência da
oposição (Malin e Flaksman, 1984). Na perspectiva da "união nacional", o
nacionalismo exacerbado estava na ordem do dia.
O nacionalismo dos
tempos de Dutra nada tinha a invejar do nacionalismo getulista. Censura e
autoritarismo não faltavam.(19) Durante o Estado Novo, o pragmatismo dos
sambistas levara-os ao policiamento interno e à recusa de temas alienígenas. Nem
houve necessidade de censura externa. Reinava a cooptação.
Findo o governo
getulista houve apenas um breve momento de liberdade, logo encerrado pela
repressão. Ninguém poderia acusar o samba de exaltação a Prestes de não
pertencer ao acervo dos temas nacionais. Era preciso reforçar o enquadramento
das escolas de samba em termos inequívocos. Daí a transformação de motivo
nacional em finalidade nacionalista. O comunismo que, por definição, é
"internacional", ficara fora da lei, e os sambistas voltavam a assumir, dessa
vez por força de lei, o papel de guardiões da
nacionalidade.
Do
ufanismo à história mítica as transformações do tema nacional
Se, como escreve J.
R. Tinhorão, era antiga "a tradição da escolha de enredos capazes de estimular o
amor popular pelos símbolos da pátria e as glórias nacionais" (1975, p. 173), a
partir de 1948 havia se transformado em obrigação.
Mas, para os
sambistas, o que iria garantir a imprescindível qualidade nacionalista? Que
temas seriam aconselháveis, ou não? Quais seriam os mais seguros indicadores da
identidade nacional?
Dois campos
ofereciam motivos já legitimados pelo clássico manual do ufanismo brasileiro: a
natureza e a história. Ao enumerar os "motivos da superioridade do Brasil",
Afonso Celso arrolava: grandeza territorial, beleza, riqueza, clima, ausência de
calamidades, excelência do tipo nacional, todas expressões de uma natureza por
demais generosa. E ainda acrescentava aspectos relevantes da história do país:
suavidade do regime colonial, mansuetude do sistema escravista, generosidade do
Brasil para com outros povos. Entre os acontecimentos históricos julgava que,
pelo menos, cinco tópicos estavam por merecer celebração épica: a atuação dos
jesuítas, as investidas dos bandeirantes, a república dos Palmares, a guerra
holandesa, a retirada da Laguna, além, é claro, da independência do Brasil.
Arrolava também nomes de grandes vultos da história, com especial destaque para
D. Pedro I e D. Pedro II.
Ora, ao percorrer
essa enumeração, que leva o autor de "Por que me ufano do meu Paiz." a exclamar:
"que vasta e convidativa seara de glórias!" (1921, p. 121), parece que estamos
listando os temas dos enredos das escolas ao longo do
tempo.
A natureza, ao
oferecer "tudo o que a ardente imaginação possa fantasiar" (Ibid, p. 13), e a
história, cuidadosamente limitada a uns poucos episódios e a períodos que não
ultrapassam o Império, doravante vão constituir as fontes quase exclusivas onde
se apoiarão os sambistas em busca de temas com finalidade
nacionalista.
Até onde foi
possível verificar, a exigência de motivo nacionalista não foi revogada até
hoje. No entanto, ao sabor das transformações sofridas pela sociedade
brasileira, nem sempre esse requisito foi obedecido com a mesma rigidez. Houve
momentos em que até mesmo um discurso enfatizando episódios do período colonial
despertou a desconfiança das autoridades. Foi o caso do samba-enredo de Silas de
Oliveira, "Heróis da Liberdade", cantado pela Império Serrano em 1969. Era o
primeiro carnaval depois do Ato Institucional n° 5 e os versos de Silas pareciam
evocar temas subversivos.2° Felizmente, o compositor "tranqüilizou as
autoridades, fazendo-as ver que o samba era histórico e apenas por coincidência
poderia se relacionar com o que se estava passando no país naquela hora"
(Valença e Valença, 1981, p. 93).
Mas o argumento
histórico nem sempre era suficiente. As autoridades não queriam ver exaltar
apenas as glórias passadas. Julgavam que a Revolução de 1964 se ombreava
facilmente aos grandes feitos dos antepassados. 0 progresso atual deveria ser
enfatizado. Em 1970, Amauri Iório, então presidente da Associação das Escolas de
Samba da Guanabara, que fora a Brasília pedir auxílio pecuniário para as
entidades que representava, recebeu críticas do Planalto quanto às
"apresentações das entidades carnavalescas, com temas antigos, sem a mínima
relação com os assuntos que interessam ao progresso atual do país" (JB,13.10.70,
p. 16). Não bastava evitar temas melindrosos. Era exigido um adesismo
explícito.
Nesse aspecto, a
palma cabe sem dúvida à Beija Flor de Nilópolis que, em 1975, desfilou cantando
um samba de Bira Quininho (Ubirajara Braz Augusto), "0 Grande Decênio" que, como
o nome indica, tinha por objetivo festejar os dez anos da Revolução de 1964. É
impossível resistir à tentação de transcreve-lo na
íntegra:
"É de novo
carnaval
Para o samba este é
o maior prêmio
E o Beija-Flor vem
exaltar
Com galhardia o
grande decênio
Do nosso Brasil que
segue avante
Nas asas do
progresso constante
Onde tanta riqueza
se encerra (Bis)
Lembrando o PIS e o
PASEP
e também o
FUNFURAL
Que ampara o homem
do campo
Com a segurança
total (Bis)
O comércio e a
indústria
Fortalecem o nosso
capital
E no setor da
economia
Alcançou projeção
mundial
Lembraremos
também
O Mobral, sua
função
Que para tantos
brasileiros
Abriu as portas da
educação".
Nem as demais
escolas nem o público apreciaram muito esse samba, até hoje citado como
ilustração exemplar da mais escancarada cooptação. Mas a Beija Flor "recebeu uma
série de telegramas de felicitações de Ministérios (a Marinha Mercante, o Mobral
e o Gabinete da Presidência da República)" (Oliveira 1989, p.
81).
Presos entre a
dificuldade de cantar a liberdade (ainda que fosse em Vila Rica) e a repulsa em
exaltar o PIS/ PASEP (ainda que o Planalto apoiasse), compositores e
carnavalescos optaram pela mais desabrida fantasia. É quando o Salgueiro dá
forma aos sonhos faiscantes de Joãozinho Trinta que mistura França e Maranhão no
plano das lendas e conta como o rei Salomão mandou os fenícios explorar o
Amazonas.
Os desfiles de
Joãozinho Trinta entusiasmam o público e a comissão julgadora. "0 rei da França
na Ilha da Assombração" (1974) e "As minas do rei Salomão" (1975 ) dão ao
Salgueiro o primeiro lugar. É grande a ciumeira entre as escolas concorrentes
que, apoiando-se na antiga exigência do regulamento de 1947, logo coi-rém a
denunciar o desviacionismo da bicampeã. 0 rei Salomão nada tem de brasileiro,
bradam os queixosos. Ao que Joãozinho retruca com a citação de vários livros
assinados por respeitáveis historiadores, que assinalavam "a possibilidade de
expedições fenícias no Brasil, patrocinadas pelo rei Salomão (...) Nas
entrevistas à imprensa e nas reuniões com os componentes, João enfatizava que a
escolha do enredo não era uma atitude de efeito, mas sim a continuidade lógica
da ideologia da escola, que sempre se voltara para temas importantes e marginais
em nossa história" (Costa, 1984, pp. 228-9).
Não foi possível
impugnar o enredo. Mas, por via das dúvidas, a Riotur resolveu anunciar de
público que, doravante, o samba só desfilaria com "enredos nacionais": "A Riotur
informou ontem que não aceitará enredos das escolas de samba nos desfiles do
carnaval de 1976 que fujam aos temas nacionais ou que deixem dúvida quanto à
característica nacional, como aconteceu com "As lendas (sie) do rei Salomão", do
Salgueiro, vencedora do desfile deste ano (...) 0 anteprojeto de regulamento tem
dez proibições, entre elas a que disciplina os enredos, que agora só poderão ser
baseados em temas nacionais e não devem ter cunho comercial" (O Globo,
24.05.75). Como se vê, o "agora"é demais. Decorriam exatos 29 anos desde que, no
empenho em disciplinar o samba e salvar a massa popular das ideologias exóticas,
a Prefeitura do então Distrito Federal exigira um compromisso nacionalista e
patriótico.
Mas o samba-enredo
já estava trilhando o seu próprio rumo. O apego aos temas nacionalistas
desgastarase. A mesma escola que se destacara pelo atendimento acrítico às
sugestões oficiais contratou Joãozinho Trinta e sagrou-se campeã em 1976, com o
enredo "Sonhar com rei dá leão", exaltação ao jogo do bicho, tema bem brasileiro
sem dúvida, mas de difícil enquadramento entre os valores da história oficial,
já que, por definição, situa-se à margem da lei.
A partir dessa data
o Brasil irá ser retratado de outra forma no discurso do
samba-enredo.
Conclusão
O ponto de partida
de nossa pesquisa foi a necessidade de situar com precisão a data a partir da
qual os poderes públicos passaram a exigir, das escolas de samba, a apresentação
de enredos desenvolvendo "motivos nacionais" para o seu desfile anual durante o
carnaval. E dizer que, de início, o nosso propósito era exclusivamente empírico,
já que visava assegurar a delimitação de uma amostra de sambas-enredo para a
realização de uma pesquisa mais ampla, dedicada ao estudo do tratamento dado
pelos sambistas aos temas históricos e nacionais. Neste percurso, no entanto,
esbarramos em questões de alcance mais amplo. O estudo da evolução do
regulamento do desfile pôs em evidência diversas facetas dos mecanismos de
intervenção do Estado na produção da cultura popular.
Ao longo dos anos, o
que se viu foram medidas, aparentemente reforçadoras dos valores do samba, que,
ao se multiplicar e aperfeiçoar, acabaram promovendo uma verdadeira
"domesticação da massa urbana" do Rio de Janeiro, para retomar o título do
elucidativo artigo de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1984). No nível dos
sambistas, o progressivo enquadramento das escolas nos propósitos oficiais é
visto de modo positivo, sob o ângulo do reconhecimento e da legitimação. A
formação de associações sucessivas, as regras que as próprias editam, vão ao
encontro dos desejos das autoridades, e até mesmo, como se verificou em relação
à exigência de "motivos nacionais", se antecipam a estes.
Ao que parece, o que
menos interessava às populações marginais do Rio de Janeiro era serem
consideradas como tais. Nesse aspecto, nossas observações, longe de confirmar os
discursos maniqueístas e românticos que vêem na cultura popular a expressão
disfarçada de uma vontade rebelde, estão em plena concordância com as conclusões
de Queiroz, quando, ao estudar o funcionamento das escolas de samba na década de
80, adverte: "A submissão das camadas inferiores não se opera pela reprodução
apenas dos modelos políticos, econômicos e culturais; as afirmações morais
encontradas nos estatutos das Escolas de Samba, as regras de comportamento
exigidas dos componentes e praticadas nas atividades cotidianas, vêm se juntar
aos serviços prestados por elas à população do `seu' subúrbio, e ao novo papel
de casa de espetáculos, que assume a sede. Organização e eficiência são
qualidades indispensáveis para o sucesso de uma Escola de Samba e de uma casa de
espetáculos, e também probidade, trabalho consciencioso. Assim, pelos seus
regulamentos, pelo comportamento dos associados, pelas virtudes diuturnas,
demonstram as Escolas de Samba sua moralidade, sua respeitabilidade, sua
disciplina, e se dissociam sem equívoco de qualquer paralelismo com a desordena,
a vagabundagem, o crifpae". (1984, p. 905, grifo meu).
Ora, toda essa
exibição de respeitabilidade vem culminando nos anos 80, quando as escolas
apresentam o "maior espetáculo da terra", apoiadas precisamente no dinheiro da
contravenção. Esse jogo de cintura, essa paradoxal associação entre norma e
desvio, ordem e desordem, parecem-nos expressar o mais saudável pragmatismo, já
que, no fim das contas, a adequação aos padrões vigentes serve como sempre
serviu, para a manutenção das escolas e para a expansão do seu reconhecimento
pela sociedade mais ampla.
Notas
* O presente artigo
reproduz, com pequenas modificações, o texto do relatório conclusivo da primeira
parte do projeto "Medalhas e brasões: a história oficial no
samba-enredo".
1. Este trabalho foi
levado adiante graças à dedicação de Juliana Beatriz Almeida de Souza, acadêmica
de história em estágio no CPDOC.
2. De acordo com a
recente publicação da RIOTUR, Memória do carnaval (1991), ao longo da história
distinguem-se vários tipos de grupos carnavalescos: a) os cordões, agrupamentos
populares de mascarados; b) os blocos, "conjuntos mais simples, não
dramatizados, sem fantasias elaboradas, sem alegorias", que, com o
desaparecimento dos cordões, foram-se multiplicando; c) os ranchos, que desfilam
sob forma de cortejos. O desfile dos ranchos incluía: abre-alas, comissão de
frente, figurantes, alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e
porta-estandarte, primeiro mestre de canto, coro feminino, segundo baliza e
porta-estandarte, segundo mestre de canto, corpo coral masculino e orquestra
(pp. 169-70). Vê-se que a organização dos desfiles de ranchos foi transposta
para as escolas de samba quase que integralmente. Os autores são unânimes ao ver
nos ranchos uma recriação carioca dos ternos de reis nordestinos, trazidos pelas
levas de baianos que, no fim do século XIX, haviam se fixado na zona portuária
do Rio de Janeiro.
3. No início, a
demarcação entre ranchos e escolas de samba parece sujeita a flutuações, assim
como as respectivas denominações. Jota Efegê (1965) retrata a história do Ameno
Resedá, fundado em 1907 e desaparecido em 1941, e que se auto designava como
"rancho-escola". Por sua vez o famoso Deixa Falar, criado em 12.08.28, e
geralmente apontado como tendo sido a primeira escola de samba (Sodré, 1979),
logo mais, em 1932, passaria a rancho, "categoria considerada como superior"
(Valença, 1983, p. 14). A Vai Como Pode, de Madureira, fundada em 11.04.23, foi
de início um bloco. Quanto à Mangueira, criada a partir de vários blocos já
existentes, foi fundada em 28.04.28 e por conseguinte reivindica também a
primazia (Silva et alü, 1980).
4. As informações
acerca da primazia da "invenção" do samba-enredo, bem como da classificação da
Mangueira no desfile de 1934, estão algo controversas. Em outro depoimento, o
mesmo Carlos Cachaça assegura ter composto "Homenagem" em 1933 (Silva et ali,
1980, p. 45). O desfile no qual a Mangueira brilhou mais uma vez não foi o de
carnaval, do qual não tomou parte, mas sim o do dia 20.01.34, em homenagem a
Pedro Ernesto.
5. De acordo com
Valença (1983, p. 14), o famoso desfile em homenagem ao prefeito foi promovido
pelo jornal O Paiz e não interessava apenas às escolas de samba. Cobrou-se
ingresso e a distribuição da renda auferida dá uma clara indicação do prestígio
então desfrutado pelas diversas agremiações carnavalescas: 35 por cento para as
grandes sociedades; 30 por cento para os ranchos; 25 por cento para os blocos; 7
por cento para as escolas de samba e 3 por cento para o Clube Carnavalesco
Andaraí.
6. "Artigo único -
Os auxílios às escolas de samba para a exibição no carnaval, quando concedidos a
juízo da Administração, serão entregues à União das Escolas de Samba, que os
distribuirá eqüitativamente pelas suas federadas, sujeitas, porém, à
fiscalização por parte da Diretoria Geral de Turismo que, para isso, registrará
a lei da União" (História das Escolas de Samba, n° 3, 1976, p.
40).
7. Ver a esse
respeito F. Chinelli e L. A. M. da Silva, "O vazio da ordem: relações públicas e
organizacionais entre escolas de samba e o jogo do bicho", Boletim do
Laboratório de Pesquisa Social, IFCS/UFRJ, n° 2, junho
1991.
8. Em outro campo, o
do estudo das religiões afro-brasileiras, é igualmente possível assistir a um
processo que evolui da repressão à cooptação (Concone e Negrão, 1985). Queiroz
observa que "dois outros enquadramentos espontâneos da massa popular urbana
nascem também ao mesmo tempo que as Escolas de Samba: os grandes clubes de
futebol e uma nova religião afro-brasileira, a umbanda" (op. cit., nota 34), e
julga que sua "oficialização" atende à mesma exigência de impedir que as
"classes laboriosas" venham a resvalar para a situação de "classes
perigosas".
9. Para os ranchos:
dias 2, 5, 6 e 7 de fevereiro de 1937; 26.02.38; e 03.02.39. Para os blocos:
dias 2 e 6 de fevereiro de 1937; 26.02.38; e 14.02.39. Em 1940, encontra-se a
publicação do regulamento desse último copejo, sem que nele conste o quesito
referente aos motivos do enredo.
10. Cabral (1975, p.
38) relata algo parecido em relação aos meios do rádio. Além da censura oficial,
"havia uma outra, da Comissão de Censura da Confederação Brasileira de
Radiodifusão, isto é, criada pelos próprios proprietários de estações de rádio
para proibir a transmissão de determinadas músicas que escapavam à censura
oficial".
11. À transcrição do
artigo 1 do regulamento de 1938 deve-se acrescentar uma nota legitimadora: "como
citado na História das Escolas de Samba, fascículo 4, de Sérgio Cabral, Rio
Gráfica e Editora S.A." (Costa, 1984, p. 41, nota 1)
12. "Para que o
carnaval carioca se revista de maior brilhantismo, a Prefeitura resolveu
instituir prêmios para as Pequenas Sociedades, Ranchos, Blocos e Escolas de
Samba que melhores préstitos apresentarem. Nesse sentido o sr. Jorge Dodsworth,
Secretário-geral de Administração, sugeriu e obteve do Prefeito Henrique
Dodsworth a criação de dois prêmios (...) para os 1° e 2° colocados das Escolas
de Samba" (O Correio da Manhã, 12.02.42 e A Manha", mesma
data).
13. Art. l°- O
desfile obedecerá exclusivamente á orientação da P.D.F. representada pela
Secretaria da Administração, respondendo pela Secretaria do
Prefeito.
Art. 2°- Só poderão
tomar parte as escolas de samba que se inscreveram até 14 de fevereiro às 12
horas, sendo a referida inscrição acompanhada da descrição do enredo,
protocolada na Secretaria do Prefeito.
Art. 3° -
Tratando-se de um certame que visa elevar o nível moral das escolas de samba,
assim como aumentar o brilho dos festejos carnavalescos da cidade, a P.D.F.
aceitará, para esse desfile, todas as agremiações organizadas, desde que se
apresentem no estilo do carnaval carioca e que estejam
inscritos.
(...)
Art. 6° - Há inteira
conveniência na maior divulgação dos enredos, ficando as concorrentes com
inteira liberdade na distribuição dos jornais desta capital". (Os demais artigos
estipulam os quesitos-enredo, harmonia (musical e coral), bateria, samba, e
bandeira-assim como a contagem de pontos e o montante dos prêmios) (A Manhã,
15.02.42, p.15).
15. O mesmo processo
pode ser observado em relação à umbanda (Ortiz, 1978), cuja "oficialização" em
muito se assemelha à das escolas de samba, como já foi assinalado por Queiroz
(1984).
16. Vale observar
que, dos 12 mil componentes da União das Escolas de Samba em 1935, passou-se, em
menos de dez anos, para 30 mil.
17. Constam os nomes
de Edison Carneiro, Arthur Ramos, Francisco Mignone, Dorival Caymmi, Jorge
Amado, Anibal Machado, Aydano do Couto Ferraz e tantos
outros...
18. Em 1950 apareceu
a União Cívica das Escolas de Samba, que atuou sem ser reconhecida oficialmente
pelo Departamento de Turismo e Certames e foi extinta em 1952; em 07.09.51 foi
criada a Confederação Brasileira das Escolas de Samba (CBES), dissidência da
UGESB e da FBES, que, em 20.09.73, passou a ser a representante máxima das
entidades que congregam as escolas de samba do Brasil; em 05.03.52 surgiu a
Associação das Escolas de Samba do Brasil, que mais tarde mudou o nome para
Associação das Escolas de Samba do Estado da Guanabara e, com a fusão em 1975,
tornou-se a AESCRJ: Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro,
atuando até hoje, malgrado o poder crescente da mais nova agremiação, a Liga
Independente das Escolas de Samba, LIESA, fundada em 23.07.84 (RIOTUR, Memória
do carnaval, 1991, pp. 178-9).
19. Curiosamente, é
também ao governo Dutra que se deve creditar a decadência das grandes sociedades
carnavalescas e o conseqüente aumento da visibilidade do desfile das escolas de
samba. "As Grandes Sociedades haviam sido uma espécie de clubes masculinos de
jogo de azar, aberto no decorrer do ano todo. A proibição do jogo (em 1946) foi
um golpe mortal para suas atividades lucrativas e apressou o desaparecimento
paulatino de seus desfiles carnavalescos" (Queiroz, 1984, p.
901).
20. Mais especificamente, essa parte: "Ao longe soldados e tambores/alunos e professores/ Acompanhados de clarim/Cantavam assim:/ Já raiou a liberdade/ A liberdade já raiou/ Esta brisa que a juventude afaga/Esta chama que o ódio não apaga/Pelo universo é a evolução/Em sua legítima razão" (Valença, 1981, p. 93).
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45); período: de 1936
a 1939 e de 1942 a 1945.
Diário
Carioca - (cód. PR-SPR 9
45); período: de 1937
a 1945.
Diário da
Noite - (cód. PR-SPR 397
(1-); período: de 1937
a 1938 e de 1944 a 1945.
Diário de
Notícias -(cód. PR-SPR 4
(1-418) NP); período: de 1937
a 1938 e de 1940 a 1945.
O
Jornal - (cód. PR-SPR 136
(1-) N/P); período: de 1936
a 1945.
A
Manhã-(cód. PR-SPR7
(1-70); período: de 1942
a 1945.
A
Noite - (cód. PR-SPR 155);
período: de 1937
a 1945.
Jornal do
Brasil - (cód. C PR-SPR 9);
período: de 1936
a 1945.
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