quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Pepe Escobar: "A guerra de sombras na Síria"


Pepe Escobar

1/12/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online 
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

O alvo é a Síria – prêmio estratégico de mais valor que a Líbia. O cenário estratégico está pronto. As apostas não podem ser mais altas. Líbia 2.0 “igual a” Síria? Parece mais Líbia 2.0 remix. Sob o mesmo argumento R2P (Responsability to Protect, responsabilidade de proteger) – e, estrelando, a população civil bombardeada até virar “democrática”. Mas sem resolução do Conselho de Segurança da ONU (Rússia e China vetarão, se a proposta aparecer). Em vez disso, entra em cena a Turquia, soprando, para fazê-las crescer, as chamas da guerra civil. 

A secretária de Estado EUA Hillary (“nós chegamos, nós vimos, ele morreu”) Clinton definiu o cenário, numa TV da Indonésia, há poucas semanas, quando profetizou que haverá “uma guerra civil” na Síria, com uma oposição bem financiada e “bem armada” cravejada de desertores do exército sírio. 

Agora, cabe à OTANCCG fazer acontecer. OTANCCG é claro, é uma simbiose agora já completada de membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Grã-Bretanha e França, dentre outros) e seletas petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo (Qatar e Emirados Árabes Unidos). 

Portanto, todos já se podem banhar na luz gloriosa de mais um paraíso mercenário. 

A guerra da OTANCCG 

Os líbios (antigamente, os “rebeldes”), com o consentimento explícito do chefe do Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdul OTAN, também conhecido como Jalil, já despachou para a Síria, via Turquia, 600 mercenários altamente motivados, ainda intoxicados pela euforia de haver derrubado o regime de Gaddafi, para alistarem-se no Exército da Síria Livre [ing. Free Syria Army (FSA)]. O que foi feito imediatamente depois de um encontro secreto, em Istanbul, entre o Conselho Nacional de Transição (líbios) e os ‘rebeldes’ sírios (o recentemente rebatizado Conselho Nacional Sírio) [1]. 

Os líbios “dedo nervoso” [no gatilho] têm livre acesso ao arsenal saqueado do exército líbio e às armas gentilmente “doadas” pela OTAN e pelo Qatar. Já se pode traçar delicioso paralelo com a Casa de Saud nos anos 1980s – que deu luz verde para que os islâmicos mais linha-duríssima fossem fazer guerra no Afeganistão, em vez de ficarem “em casa” infernizando a Arábia Saudita. 

Quanto ao Conselho Nacional de Transição, mal esperava a hora de mandar para longe do Oriente Médio aqueles guerreiros mercenários tão desempregados quanto explodindo de testosterona; melhor bem longe, que infernizando o norte da África. E quanto à Turquia, país-membro da OTAN, na ausência de guerra (culpa dos insuportáveis russos e chineses), a melhor escolha restante é confiar em exércitos mercenários para fazer o serviço. 

A pressão nunca diminui. Diplomatas em Bruxelas confirmaram ao jornal Asia Times Online que agentes da OTANCCG já instalaram um centro de operações em Iskenderun, na província de Hatay, na Turquia. Aleppo, cidade crucialmente importante, no noroeste da Síria, é bem próxima da fronteira turco-síria. A história-máscara & cobertura para esse centro de comando é que lá estaria para construir “corredores humanitários” até a Síria. 

Apesar de todos esses “humanitários” serem membros da OTAN (EUA, Canadá e França) e membros do CCG (Arábia Saudita, Qatar e Emirados Árabes Unidos), são apresentados à sociedade como inocentes “monitores” e como se nada tivessem a ver com a OTAN. Desnecessário dizer que esses “humanitários” são soldados especialistas em guerra em terra, mar e ar, e engenheiros especialistas. Missão: infiltrar-se no norte da Síria, especialmente em Idlib, Rastan, Homs – e principalmente, custe o que custar, em Aleppo, a maior cidade da Síria, com mais de 2,5 milhões de habitantes, a maioria dos quais são sunitas e curdos. 

Já antes de surgirem essas notícias de Bruxelas, o semanário satírico Le Canard Enchaine  [2] na França, e o diário turco Milliyet haviam noticiado que comandos do serviço secreto francês e do MI6 britânico estão treinando o ‘exército livre’ sírio em táticas de guerrilha urbana na cidade de Hatay no sul da Turquia e em Trípoli, no norte do Líbano. E que houve contrabando de armas em massa para dentro do território sírio – de pistolas a metralhadoras e outras armas automáticas israelenses. 

Não é segredo para ninguém na Síria que gangues armadas – de salafistas a assaltantes e ladrões de rua – têm atacado o exército regular, a polícia e até cidadãos nas ruas, desde os primeiros dias dos movimentos de protesto. Dos cerca de 3.500 mortos nos últimos meses, muitos civis e mais de 1.100 soldados do exército sírio foram assassinados por essas gangues armadas. 

E há também os desertores. Portanto, o regime de Assad não erra, ao dizer e repetir que a atual tragédia síria é, em grande medida, incitada por gangues armadas e pagas – sem incluir ainda os mercenários que estão chegando agora – a serviço de potências estrangeiras; nesse ponto, o regime de Assad acerta quase completamente. 

Em Homs, fonte local informa a Asia Times Online que, no que tenha a ver com o “Exército da Síria Livre”:

“... é perfeitamente visível que não passam de versão “midiática” para dar cobertura a criminosos de vários tipos. Fizeram até um vídeo (convenientemente legendado!). deles mesmos em Baba Amr, no qual aparecem como perfeitos imbecis:
Mas sejam quem forem aquelas crianças e aquele pessoal em geral, não há dúvida de que boa parte dos sunitas os apoiam. E, sim, eles têm alguma conexão com a comunidade, ricos e pobres. Uma professora cristã que leciona numa escola privada perto de Homs para alunos predominantemente sunitas, teve o carro parado numa rua e roubado por uma dessas gangues. Quando chegou a Homs, deu alguns telefonemas e logo seu carro foi devolvido. Quer dizer: as gangues de assaltantes que agem nos arredores da cidade têm conexões com os ricos da cidade: não foi difícil identificar os assaltantes e fazê-los devolver o carro da professora. É assim que o dogma da “revolução” está implantado em Homs. A ideia de que haveria um “exército da Síria livre” está bem disseminada e tem relativo apoio. E só os pobres das áreas mais desassistidas como Baba Amr, Bayada e Khalidiyya bastariam, como apoio, ao tal “exército”.”

Capturem os votos de sempre 

Como fez na Líbia, a Liga Árabe cumpre fielmente sua função de capacho da OTANCCG; aprova sanções duríssimas que incluem o congelamento de bens do governo sírio, proíbe negócios com o Banco Central e todos os investimentos árabes na Síria. Em resumo: guerra econômica. Para o jornal libanês L'Orient Le Jour, ação foi “um eufemismo político”. Votaram a favor das sanções 19 dos 22 membros da Liga Árabe – a Síria já estava suspensa. O Iraque – cujo governo é majoritariamente xiita – e o Líbano – onde o Hezbollah é parte do governo – foram os dois únicos países que “se dissociaram” da votação. 

Enquanto isso, também já está em andamento o sinistro jogo oportunista da dança das cadeiras – agora em versão síria. O Conselho Nacional Sírio e seus parceiros islamistas rejeitaram completamente qualquer diálogo com o governo de Bashar al-Assad. O secretário-geral da Fraternidade Muçulmana na Síria Riad Chakfi deu uma de ‘rebelde líbio’ e suplicou que o exército turco invada o norte da Síria, para criar uma zona ‘tampão’. Exilados também sinistros, como o ex-vice-presidente Abdelhalim Khaddam (exilado em Paris) e outro vice-presidente, Rifaat al-Assad (exilado na Espanha), vivem da fantasia de que a Fraternidade Muçulmana (que será o principal poder numa “nova” Síria) permitirá que ambos assentem-se no trono. 

Tudo isso é perfeita bobagem – porque o nome do jogo numa “nova” Síria será “Casa de Saud”. A Casa de Saud é o nexo mais crucial que interliga: a Fraternidade Muçulmana no Egito (a qual se aproxima a passos largos de assumir o poder); o Partido AKP na Turquia (essencialmente, uma fachada da Fraternidade Muçulmana); e a Fraternidade Muçulmana na Síria. Os sauditas são investidores crucialmente importantes na Turquia. Estão-se posicionando também como grandes investidores no Egito. E morrem de vontade de converterem-se em grande investidores também na ‘nova’ Síria.

Por fim, chega-se à questão chave do jogo da Turquia. No dossiê sírio, a Turquia já não é mediadora: converteu-se em militante empenhado e defensor da mudança de regime. Esqueçam a entente Teerã-Damasco-Ancara, que há pouco tempo, em 2010, ainda era realidade. Esqueçam o Soft Power e a muito propagandeada política exterior de “zero problemas com nossos vizinhos” cunhada pelo ministro Ahmet Davutoglu das Relações Exteriores da Turquia. 

O próprio Davutoglu já anunciou que a Turquia imporá sanções unilaterais à Síria –replay das sanções da Liga Árabe, com congelamento de valores financeiros do governo e nenhuma transação com o Banco Central. Davutoglu insiste que uma zona “tampão” dentro da Síria, ao longo da fronteira coma Turquia, não estaria “na agenda” – mas esse é, precisamente, o trabalho dos tais sombrios “monitores humanitários” da OTANCCG. Desde meados de novembro a mídia turca só faz expor detalhes de planos para implantar uma zona aérea de exclusão no norte da Síria e a supracitada zona ‘tampão’, que deve estender-se até Aleppo. 

Para quê? Perguntem à “profetiza” Hillary Clinton: para fomentar a guerra civil. 

O show, estilo Club Med 

Em seu frenesi para vender o modelo político turco às partes sunitas do mundo árabe (até agora, o CCG ainda não engoliu), a Turquia pode ter errado gravemente no cálculo de suas relações (importantíssimas, cruciais) com Rússia e Irã. Cerca de 70% da energia que a Turquia consome é importada de Rússia e Irã. Sem mencionar que Rússia e Irã estão soltando faíscas de fúria contra a Turquia, que se curvou à pressão da OTAN para autorizar a instalação de uma estação de radar, como parte do sistema de mísseis de defesa. 

A Rússia tem ideias muito claras sobre o cenário sírio. O ministro Relações Exteriores da Rússia foi bem explícito: “Nós absolutamente não aceitamos nenhum cenário de intervenção militar na Síria”. [3]

A reunião, semana passada, dos vice-ministros de Relações Exteriores dos países emergentes BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em Moscou, foi evento imperdível. 

Os BRICS, em resumo, demarcaram as linhas vermelhas. Nada jamais justificará intervenção estrangeira na Síria: “deve-se excluir qualquer interferência nos assuntos internos da Síria, que não se faça estritamente pelos termos da Carta da ONU”. Nada de bomba, bomba, sobre o Irã”. Em vez de bombas, diálogo e negociações. E nada de sanções adicionais, definidas como “contraproducentes”.

Os BRICS veem claramente que o cenário líbio vai aos poucos se metamorfoseando, e já está ganhando feições de outra guerra da OTANCCG, dessa vez na Síria, e só superficialmente diferente. 

Para acrescentar molho à mistura, o porta-aviões russo “Almirante Kuznetsov” – equipado com mísseis nucleares – já deixou o porto de Murmansk e já navega para o Mediterrâneo Oriental, seguido pelo destróier “Almirante Chabanenko” e pela fragata “Ladny”. Chegarão à base naval Tartus, na Síria, em meados de janeiro – e lá se reunirão a outras naves da Frota Russa no Mar Negro. 

Em Tartus vivem 600 militares e técnicos do Ministério de Defesa da Rússia; é um centro de manutenção e reabastecimento da Frota Russa no Mar Negro. Será que os russos convidarão membros da tripulação do Grupo de Ataque George H W Bush – cujas naves também estão hoje no Mediterrâneo Oriental – para uma partida de voleibol?

É justo dizer que muitos sírios desejam coisa diferente do regime Assad – mas com certeza não querem ser alvo de uma variante de “bombardeio humanitário” – nem, menos ainda, querem guerra civil. Os sírios viram o legado da OTAN, na Líbia: praticamente toda a infraestrutura do país foi destruída, cidades foram reduzidas a pó, sob furioso bombardeio, dezenas de milhares de civis foram mortos e feridos; o poder, em Trípoli, acabou nas mãos de fanáticos ligados à al-Qaeda; e espalha-se pelo país o mais alucinado ódio racial. Nenhum sírio deseja massacre na Síria, que seria, no máximo, versão updated do massacre de líbios. Mas... isso, exatamente, é o que a OTANCCG está planejando.



Notas dos tradutores
[1] Ver sobre o mesmo assunto, 29/11/2011, “Rússia posiciona navios de guerra na Síria”, MK Bradrakumar.
[2] 23/11/2011, Claude Angeli, “Une intervention ‘limitée’ préparée par l’OTAN en Syrie”, Le Canard Enchainé, Paris (in Le Point.fr):
“a Turquia pode vir a ficar como base recuada de uma intervenção limitada, prudente e humanitária, pela OTAN, sem ação ofensiva” (...) “Ancara propõe instaurar uma zona aérea de interdição e uma zona ‘tampão’ no interior da Síria, destinada a receber os civis que fujam da repressão do regime sírio e militares desertores”. Fonte bem informada disse a Le Point.fr que a zona de proteção está decidida há cerca de dez dias; e se localizará no norte da Síria. Garantirá proteção às populações civis e também oferecerá eventual apoio, se se fizer necessário, “ao Exército da Síria Livre”, em qualquer ponto do território sírio” .

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