Robert Fisk |
10/12/2011, Robert
Fisk, The Independent,
UK
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
Escrevendo
da região que produz a maior quantidade de clichês por palmo quadrado em todo o
mundo – o Oriente Médio – talvez eu devesse fazer uma pausa e respirar fundo
antes de dizer que jamais li tal quantidade de lixo, de tão completo e absoluto
lixo, como o que tenho lido ultimamente, sobre a crise financeira
mundial.
Mas...
que seja! Nada de meias palavras. A impressão que tenho é que a cobertura
jornalística do colapso do capitalismo bateu novo recorde (negativo), tão baixo,
tão baixo, que nem o Oriente Médio algum dia superará a acanalhada subserviência
que se viu, em todos os jornais, às instituições e aos “especialistas” de
Harvard, os mesmos que ajudaram a consumar todo o crime e a
calamidade.
Comecemos
pela “Primavera Árabe” – expressão publicitária, grotesca, distorcida, que nada
diz sobre o grande despertar árabe/muçulmano que está sacudindo o Oriente Médio
– e os escandalosos, obscenos paralelos com os protestos sociais que acontecem
nas capitais ocidentais. Fomos inundados por matérias sobre os pobres e
oprimidos do ocidente que “colheram uma folha” do livro da “Primavera Árabe”;
sobre manifestantes, nos EUA, Canadá, Grã-Bretanha, Espanha e Grécia que foram
“inspirados” pelas manifestações gigantes que derrubaram regimes no Egito,
Tunísia e – só em parte – na Líbia. Tudo isso é loucura. Nonsense.
A
verdadeira comparação, desnecessário dizer, ficou esquecida pelos jornalistas
ocidentais, todos ocupadíssimos em não falar de rebeliões populares contra
ditaduras, tanto quanto ocupadíssimos em ignorar todos os protestos contra os
governos ocidentais “democráticos”, desesperados para separar as coisas,
dedicados a sugerir que o ocidente estaria apenas colhendo um último alento dos
estertores das revoltas no mundo árabe. A verdade é outra.
O
que levou os árabes, às dezenas de milhares e depois aos milhões, às ruas das
capitais do Oriente Médio, foi uma demanda por dignidade, a recusa a aceitar os
ditadores & famílias e claques de ditadores que, de fato, viviam como se
fossem donos de seus respectivos países. Os Mubaraks e os Ben Alis e os reis e
emires do Golfo (e da Jordânia), todos acreditavam que tinham direitos de
propriedade sobre tudo e todos. O Egito pertencia à Mubarak Inc.; a Tunísia, a Tunisia à Ben
Ali Inc. (e à família Traboulsi)
etc. Os mártires árabes, das lutas contra as ditaduras, morreram para provar que
seus países pertencem a eles, ao povo.
E
aí está a real semelhança que aproxima as revoluções árabes e ocidentais. Os
movimentos de protesto que se veem nas capitais ocidentais são movimento contra
o Big Business – causa perfeitamente justificada – e contra
“governos”.
O
que os manifestantes ocidentais afinal entenderam, embora talvez um pouco tarde
demais, é que, por décadas, viveram o engano de uma democracia fraudulenta:
votavam, como tinham de fazer, em partidos políticos. Mas os partidos,
imediatamente depois, entregavam o mandato democrático que recebiam do povo, do
poder do povo, aos banqueiros e aos corretores de “derivativos” e às agências
“de risco” – todos esses apoiados na fraude que são os “especialistas” saídos
das principais universidades e
think-tank sdos EUA, que mantêm viva a ficção de que viveríamos
uma “crise de globalização”, e não o que realmente vivemos: uma falcatrua, uma
fraude massiva, um assalto, um golpe contra os eleitores.
Os
bancos e as agências de risco tornaram-se os ditadores do ocidente. Exatamente
como os Mubaraks e Ben Alis, os bancos acreditaram – e disso continuam
convencidos – que seriam proprietários de seus países.
As
eleições no ocidente, que deram poder aos bancos e às agências de risco,
mediante a colusão de governos eleitos – tornaram-se tão falsas quanto as urnas
que os árabes, ano após ano, eram obrigados a visitar, décadas a fio, para
“eleger” os proprietários deles mesmos, de sua riqueza, de seu futuro.
Goldman
Sachs e o Real Banco da Escócia converteram-se nos Mubaraks e Ben Alis dos EUA e
da Grã-Bretanha, cada um e todos esses dedicados a afanar a riqueza dos
cidadãos, garantindo “bônus” e “prêmios” aos seus próprios gerentes pervertidos.
Isso se fez no Ocidente, em escala infinitamente mais escandalosa do que os
ditadores árabes algum dia sonharam que fosse exequível.
Não
precisei – embora tenha ajudado – de
Inside Job, de Charles Ferguson, essa semana, na BBC2, para
aprender que as agências de risco e os bancos nos EUA são intercambiáveis: o
pessoal que lá trabalha muda-se sem sobressalto, dos bancos para as agências,
das agências para os bancos... e todos, imediatamente, para dentro do governo
dos EUA. Os rapazes “do risco” (a maioria, rapazes, claro) que atribuíram grau
AAA aos empréstimos e derivativos podres nos EUA estão hoje – graças ao poder
vicioso que exercem sobre os mercados – matando de fome e medo os povos da
Europa, ameaçando-os de “rebaixar” os créditos europeus, depois de se terem
associados a outros criminosos do lado de cá do Atlântico, associação que já se
construía desde antes do
crash financeiro nos
EUA.
Acredito
que dizer menos ajuda a vencer discussões, mas, perdoem-me: Quem são esses
seres, cujas agências de risco metem mais medo nos franceses hoje, que Rommel em
1940?
Por
que os meus colegas jornalistas em Wall Street nada me dizem? Como é possível
que a BBC e a CNN e – ah, santo deus, também a
al-Jazeera – tratem essas
comunidades criminosas como inquestionáveis instituições de poder? Por que nada
investigam – Inside Job já abriu o caminho! – desses escandalosos
corretores duplos?
Fazem-me
lembrar o modo igualmente acanalhado como tantos jornalistas norte-americanos
cobrem o Oriente Médio, delirantemente evitando qualquer crítica direta a
Israel, imbecilizados por um exército de lobbyistas pró-Likud, dedicados a explicar aos leitores
e telespectadores por que devem confiar no “processo de paz” norte-americano
para o conflito Israel-Palestinos, porque os “mocinhos” são os “moderados” e
todos os demais são os “bandidos” “terroristas”.
Os
árabes, pelo menos, já desmascararam todo esse
nonsense. Mas quando os manifestantes contra Wall Street fazem o
mesmo, imediatamente passam a ser “anarquistas”, os “terroristas” sociais das
ruas dos EUA que se atrevem a exigir que os Bernankes e Geithners sejam julgados
pelo mesmo tipo de tribunal que julga Hosni Mubarak. Nós no Ocidente – nossos
governos eleitos – criamos nossos ditadores. Mas, diferentes dos árabes, ainda
mantemos intocáveis os nossos ditadores, intocáveis.
O
chefe de governo da República da Irlanda (em gaélico irlandês Taoiseach), Enda Kenny, solenemente
informou ao povo essa semana que seu governo não é responsável pela crise em que
se debatem todos os irlandeses. Todos já sabiam, é claro. O que ele não contou
ao povo é quem, então, seria o responsável. Já não seria mais que hora de ele e
seus colegas primeiros-ministros da União Europeia contar o que sabem? E quanto
aos nossos jornalistas e repórteres?
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