John Lanchester |
15/12/2011, John
Lanchester, London Review of
Books, vol. 33, n. 24, p. 18
Traduzido pelo
pessoal da Vila Vudu
Não há, em toda a
literatura universal, ensaio que tenha recebido mais belo título que “O
Assassinato Considerado como Uma das Belas Artes” (1827), de Thomas de Quincey.
Ocorre-me agora que, se de Quincey vivesse hoje, talvez se interessasse por
escrever uma continuação: “O Desastre Financeiro Considerado como Uma das Belas
Artes”. O material básico talvez não seja tão cativante, mas abunda. Como Warren
Buffett já disse mais de uma vez, “Só na maré vazante se vê a bunda de quem nada
sem roupa.” Crises financeiras e econômicas sempre arrastam com elas um surto de
escândalos e “revelações”. Estamos em plena maré vazante (e vazando) e,
francamente, fica-se sem saber por onde começar, tantos são os
casos.
Na Grã-Bretanha,
nosso primeiro ultraje, mostrou as vergonhas do banco Northern Rock, que quebrou no outono de
2007, primeira amostra do que seriam as subsequentes quebradeira e Grande
Recessão. A novidade mais recente foi a venda do Rock ao Virgin Money, por £747 milhões (1,174
bilhão de dólares). Se os lucros do banco sobem, os dividendos a serem pagos aos
contribuintes podem chegar até a £1 bilhão (1,572 bilhão de dólares). Dado que o
custo de nacionalizar o banco foi £1,4 bilhão (2,201 bilhões de dólares), e dado
que só se vendeu a parte “boa”, quer dizer, a parte do banco que se supõe que
seja mais solvente, o negócio, embora esteja nas manchetes, não foi lá grande
coisa. No melhor cenário, o contribuinte perde £400 milhões (629 milhões de
dólares). Antes dos desastres de 2008, parecia muito dinheiro, mas quanto mais
se examinam os números, pior a coisa fica.
Por trás da aparente
simplicidade da compra do Rock por Richard Branson, do Virgin, jaz uma história
muito mais complicada: praticamente todo o dinheiro para o negócio veio do sócio
de Branson, W.L. Ross & Co.,
especialista em companhias em dificuldades e ações em baixa (um dos codinomes de
Wilbur Ross é “O Rei das Falências”): £260 milhões de W.L. Ross; £50 milhões de
Virgin Money; £50 milhões de um fundo
de investimentos de Abu Dhabi. Considere-se antecipadamente perdoado, caro
leitor, se não percebeu que, nessa conta, ainda faltam vários milhões para
completar os £747 milhões do negócio. Quer dizer: e o resto do dinheiro?
Resposta: o negócio foi, de fato, pago com o próprio capital do novo banco,
coisa em torno de £400 milhões (650 milhões de dólares). Ao tempo de seus
últimos resultados, o banco Rock tinha 30% de fundos próprios de base
(orig. Tier One). Esse número é
um quociente de segurança dos bancos; mostra quanto o banco tem de dinheiro
próprio: quanto mais alta a porcentagem, mais sólido o banco; os bancos
britânicos, hoje, devem estar com 10% de fundos próprios. O Virgin prometera que
o novo banco teria 15% de fundos próprios, muito abaixo da margem que se
considera segura. Tudo isso significa que muito dinheiro, do negócio, é dinheiro
vivo para o comprador. Os compradores estão usando o próprio patrimônio do banco
Rock, para ajudar a comprar a banco.
É transação frequente no mundo da finança, mas não é negócio que gere
tranquilidade para um público já farto, cansado, nauseado, de tantas complexas
engenharias financeiras.
Em resumo: o negócio
do Virgin garante grandes prejuízos
para os contribuintes, usa técnicas financeiras exóticas, semelhantes às que
causaram o colapso do banco Northern
Rock (agora “resgatado”) e “cria” um “novo” banco consideravelmente menos
sólido que o banco que antes havia. Sob todos os aspectos, é resultado ainda
pior que a alternativa preferida de muitos: criar um banco prioritariamente
imobiliário. Ou, melhor dizendo: é pior sob todos os aspectos, exceto um: é
negócio possível bem aqui e bem agora. Depois que se anunciou o “resgate” do Virgin, circulou no Parlamento que a
Comissão Europeia, em troca pela permissão para estatizar o banco Rock, havia
imposto um limite de prazo para que o banco permanecesse como propriedade do
Estado. (A ideia era que o fato de o Rock
Northern passar a ser propriedade do Estado permitia ao banco oferecer
garantias aos clientes – e fazer investimentos de risco – contra as quais nenhum
banco privado poderia competir.) A data limite para que o Rock fosse devolvido à iniciativa
privada era 2013. Ante essa restrição, e somada ao fato de que não havia sobre a
mesa ofertas sérias para criar um banco imobiliário, o governo teve de escolher
entre um pássaro na mão e um distante rufar de asas no mato. Não creio que
tenham tido muita escolha. O contribuinte, compreensivo, foi garfado, mas não se
ouviu falar de novo escândalo, por causa do inexorável desdobramento do desastre
que sobreveio, em 2007, quando o banco Rock implodiu.
Parece-me que De
Quincey, do ponto de vista estético, teria preferido o escândalo do MF Global nos EUA. O personagem
principal dessa história é Jon Corzine, cujo nome não é muito conhecido fora dos
EUA. Foi o principal executivo do Goldman
Sachs, responsável por levar o banco, de parceria privada, para a Bolsa de
Valores, fazendo, no processo, um dos maiores lucros de todos os tempos no mundo
do capital, para todos os sócios do Goldman. Como principal executivo do
Goldman, sabe-se que Corzine tinha o hábito de cumprimentar os colegas dizendo
“Paz!” (Gosto de pensar que, se eu trabalhasse com ele, cada vez que ele
dissesse “Paz!”, eu responderia: “Dinheiro!”), Corzine embolsou $400 milhões.
Embolsada a sua parte, Corzine deixou o banco e mergulhou na política do Partido
Democrata; com sua fortuna, comprou para usufruto pessoal um assento de senador
pelo Estado de New Jersey, como se
faz. Foi senador de 2001
a 2006; depois, foi governador de 2006 a 2010, quando perdeu,
na tentativa de reeleger-se, para o Republicano Chris Christie. Então, já tendo
feito o percurso do dinheiro para a política, Corzine voltou ao dinheiro:
tornou-se presidente de um fundo de derivativos chamado MF Global, com o objetivo declarado de
converter a empresa em rival do Goldman.
Muitos já tentaram
derrotar o Grupo Goldman. Nenhum caso
teve final feliz. O MF Global fazia
corretagem, e corretores, na essência, vivem de comprar e vender coisas em nome
de clientes. (A empresa nasceu de um desmembramento do Grupo Man, que patrocina o Prêmio Corretor Man, em 2007. James Man foi o mercador e
corretor de açúcar que, em 1784, conseguiu o contrato para fornecer rum à Real
Marinha Britânica; a firma deixou de negociar com açúcar e passou a dedicar-se
ao rum e outras commodities,
obteve outros contratos futuros, passou aos derivativos em geral e, afinal,
chegou aos serviços financeiros.) Firma assim jamais crescerá suficientemente,
ou suficientemente depressa para rivalizar com os grandes bancos de
investimentos. Corzine, então, por sua conta, arrastou a empresa para os
negócios de trading. A esse
título fez investimentos gigantescos – leia-se: especulou – em bônus da dívida
soberana da União Europeia. Foi como ter apostado pesadamente no futuro dos
zepelins, no dia em que o Hindenburg partiu para a última viagem.
Quando sobreveio a
crise na eurozona, o valor daqueles investimentos desabaram; para continuar nos
negócios, o MF Global teria de poder exibir muito mais dinheiro do que tinha.
Não exibiu dinheiro algum e, dia 31/10, o MF Global requereu falência – e foi
exatamente aí que essa história obscena, mas, afinal, rotineira, converteu-se em
grande escândalo. O que se viu foi que, além de a empresa estar quebrada, o MF Global tampouco sabia dizer que fim
dera ao dinheiro dos clientes pelo qual lhe competia zelar. Na primeira
avaliação, faltavam $600 milhões de dólares; hoje, fala-se em rombo de mais de
$1,2 bilhão. Atenção: aí não se computam as perdas da empresa: só dinheiro de
clientes. E nesse pé estão hoje as coisas.
Por feliz
coincidência, a quantidade de dinheiro faltante é quase exatamente igual à
quantidade de dinheiro que vazou pelo ralo no nosso terceiro escândalo. Nesse
caso, trata-se da empresa japonesa Olympus, fabricante de câmeras fotográficas.
No início desse ano, a empresa nomeou um britânico, Michael Woodford, para o
posto de novo presidente executivo. Woodford era funcionário da empresa há 30
anos, mas, mesmo nessas circunstâncias, não é frequente que empresas japonesas
indiquem ocidentais para a presidência (só se conhece outro caso: Welshman
Howard Stringer, presidente da Sony.) O primeiro ato de Woodford na presidência
foi interrogar o conselho da empresa sobre vários pagamentos inexplicáveis que a
empresa fizera: $687 milhões pagos a serviços de consultoria, para a compra de
uma empresa britânica de equipamentos médicos, pagamento feito por misteriosos
intermediários nas Ilhas Cayman e em New York; outro pagamento, de $773 milhões,
pela compra de uma empresa de cosméticos, de uma fábrica de contêineres e de um
negócio de disposição final de lixo – negócios que, todos eles, haviam perdido ¾
do valor ao longo de um ano. O total de dinheiro envolvido nessas transações
bizarras alcançava àquela altura 1,4 bilhão de dólares. Em resposta às
interrogações de Woodford, o conselho de administração da Olympus demitiu-o,
acusando-o de não compreender a cultura dos negócios à japonesa. A empresa
reconheceu que autorizara aqueles sinistros desembolsos, que visavam a encobrir
perdas em outros investimentos. A última notícia que se tem sobre o
affair diz que polícia e
autoridades judiciárias investigam agora uma possível conexão entre a Olympus e
a Yakuza – o crime organizado.
A probabilidade de
uma “conexão gângsteres”, e o fato de envolver a maior quantidade de dinheiro,
faz do escândalo Olympus o mais esteticamente denso, dentre os escândalos
recentes. Mas o detalhe provavelmente mais importante de todo o processo está
numa similaridade crucial que une todos esses escândalos.
Três
grandes empresas, em três diferentes ramos, em três diferentes países; como
traço de ligação, a evidência de que, em todos esses casos, alguém que se
aproximasse – qualquer pessoa ou instituição, qualquer terceiro que se
aproximasse –, e que contasse exclusivamente com a informação que a mídia
distribui, jamais conseguiria saber o que realmente se passava naquelas empresas
e naqueles negócios. É precisamente o que De Quincey chama de “uma obscuridade
viciosa” [1].
William Goldman
dizia, de todos que tinham a ver com o cinema como negócio, que “não sabem
de nada!” Tudo bem. Parece
adequado ao cinema como negócio. Mas não pode(ria) ser adequado ao modo como
operam empresas comerciais, cujos sócios são conhecidos, em todas as modernas
economias do mundo desenvolvido. Não pode(ria) ser adequado, mas parece ser
exatamente o que se vê acontecer nesses escândalos “financeiros”: ninguém sabe
nada e, se sabe, não conta e ajuda a esconder . UAU!
Há tantas notícias
tão ruins nas manchetes “de economia” no momento, que parece difícil conseguir
algum alento imediato. Pois aqui fica uma conclusão provisória, que pode ser um
útil alento: todos esses escândalos têm, em comum, que todos eles mostram,
afinal, à vista de todos, que o capitalismo está funcionando muito mal – por
mais que as coisas sejam feitas exclusivamente segundo as regras do próprio
capitalismo contemporâneo e pelos próprios capitalistas. É boa
notícia.
Nota dos
tradutores
[1] DE QUINCEY, Thomas
[1821], Confessions of an English
Opium-Eater (1821), Memórias de um comedor de ópio, Porto
Alegre: L&PM Pocket.
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