Pepe Escobar |
23/11/2011,
Pepe Escobar, Al-Jazeera,
Qatar
Traduzido
pelopessoal da Vila
Vudu
Celebremos
o fim de um 2011 cheio de eventos, com uma fábula.
Era
uma vez o começo do século 21. A águia, o urso e o dragão
arrancaram as luvas (forradas) e, agora, danaram a brigar, numa Nova Guerra
Fria.
Obama alterou o foco military dos
EUAdo Oriente Médio para a Ásia em clara tentativa de “conter” a
China
|
O
urso então se pôs a pensar: e se, no final, eles roubarem todo o meu espaço de
segurança e eu for deixado à míngua, geopoliticamente?
No
jovem século 21,
a discórdia mãe de todas as discórdias entre a águia e o
urso tem a ver com os mísseis de defesa. Nem a própria águia sabe se aquela
engenhoca imensamente cara algum dia servirá para alguma coisa. E mesmo que
sirva, se funcionar, será financiada provavelmente por um dragão relutante que é
dono, hoje, de mais de US $1,5 trilhão da dívida da águia.
O
urso tem dito e repetido que a instalação de interceptores de mísseis e radares
naquela parte do mundo em que cego guia cego – a Europa – é ameaça ao mundo. A
águia diz que não, não, não se preocupe, a coisa está lá só para nos proteger
dos amaldiçoados bandidos persas.
Mas
o urso não se convenceu. Assim, em mensagem global de televisão, com legendas em
inglês, o urso anunciou que já instalou no enclave de Caliningrado no Mar
Báltico, um sistema novo de alarme que monitora mísseis lançados seja da Europa
seja do Atlântico Norte. E que logo - logo pode vir também o sistema Iskander de
mísseis antibalísticos.
O
urso está frustrado. Diz que muitas vezes ofereceu-se para cooperar com a águia
e seus seguidores, para que desenvolvessem juntos um sistema – e deu em nada. O
urso insiste que a porta continua aberta para um acordo. Terão de voltar a
conversar – depois da sangrenta campanha eleitoral de 2012, na Águia-lândia.
Enquanto isso, o dragão observa.
“Ora, se um cego guiar outro cego...”[1]
Quase
duas décadas depois do que o Top Urso Putin definiu como “a maior catástrofe
geopolítica do século 20” , o próprio Top Urso Putin propôs uma
URSS light – numa União Eurasiana, um corpo
político/econômico já subscrito pelo Cazaquistão (“Leopardo das Neves”) e pela
Bielorrússia, ao qual logo se unirão os ainda filhotes eurasianos Tadjiquistão e
Quirguistão.
Quanto
ao Turcomenistão e ao Uzbequistão, estão preocupados demais com como equilibrar
a pressão que sofrem dos dois, da águia e do urso. E há ainda a Ucrânia. Quem a
Ucrânia escolherá: o urso, ou os cegos que guiam cegos?
A
águia quer coisa completamente diferente: uma Nova Rota da Seda que a águia
controlará. A águia parece esquecer que a Rota da Seda original ligou o dragão
ao Império Romano durante séculos – e jamais houve ali qualquer tipo de
intromissão de forças de fora da Eurásia.
A
águia está literalmente furiosa, porque o Top Urso dos próximos seis anos
(talvez 12) será, outra vez, Putin. E o urso tenta manobrar a seu favor o
inexorável ímpeto do dragão, rumo ao primeiro lugar global.
Por
isso o urso está apostando num espaço econômico “de Lisboa a Vladivostok” – quer
dizer: íntima cooperação com aquela turma cega, destroçada pela crise, onde cego
guia cego. O problema é que os cegos são, eh, cegos, e não estão conseguindo
movimentar-se ou agir como bloco.
A águia, enquanto isso, subiu alucinadamente a aposta.
Lançou o que, para todas as finalidades práticas, resume-se a cercar o dragão
com uma muralha armada (“ordenei à minha equipe de segurança que dê alta
prioridade à nossa presença e às nossas missões no Pacífico-asiático” [2]).
A
águia está fazendo vários movimentos que se resumem a incitar as nações que
cercam o Mar do Sul da China, para que antagonizem o dragão. Ainda mais, está
reposicionando inúmeros de seus brinquedos – submarinos e porta-aviões
nucleares, jatos de combate – aproximando-os cada dia mais do território do
dragão. O nome do jogo, segundo o Ministério de Armas Mortíferas da águia, é,
precisamente, “reposicionamento”.
O
dragão, por sua vez, vê uma águia estropiada, que fala grosso tentando adiar um
irreversível declínio e que, para isso, tenta intimidar, isolar ou, no mínimo
sabotar, a irreversível caminhada do dragão de volta ao lugar onde esteve ao
longo de 18 dos recentes 20 séculos: o trono do rei da
selva.
É
parada duríssima para a águia. Virtualmente todos que mantêm a coesão da Ásia
entretêm conexões complexas, de longo alcance, com o dragão e com a diáspora
dragônica.
Por
toda a Eurásia, pode acontecer de muitos atores já não se impressionarem muito
com o império da águia, mesmo que apareça armado até os dentes. Sabem que sob as
novas leis da selva, o dragão simplesmente não pode – e não será – reduzido ao
status de ator coadjuvante.
O
dragão não parará de expandir-se na Ásia, América Latina, África e até nas
pastagens infestadas de desemprego, onde cegos guiam cegos em plena
crise.
Acima
de tudo, só o dragão, se for excessivamente provocado, tem poder para fazer
explodir o apavorante déficit da águia, degradar o crédito da águia, prender a
águia num ninho de papéis podres, e causar estrago de dimensões tectônicas no
sistema financeiro mundial.
E
assim, depois de pausa de uma década – desperdiçada numa alucinada “guerra ao
terror” inventada pela águia, e que, na prática, foi ataque sem limites contra
terras e povos muçulmanos – a
realpolitik voltou ao batente. Esqueçam aqueles jihadis esfarrapados: agora, os manda-chuvas vão
acertar suas diferenças.
A
águia demorou uma década para dar-se conta de que a Ásia será o centro político
e econômico de um novo mundo multipolar.
Mas
a nova estratégia da águia já conseguiu transformar o urso, de cliente cordato
(durante todos os anos 1990s e 2000s), em virtual inimigo. O tal “reset”
de Obama é mito. O urso sabe que não há
reset algum – e o dragão já sabe que, se houver reset, será reset do confronto declarado.
Quanto
mais a águia o ameaçar, mais o urso se aproximará do dragão. O urso e o dragão
têm muitos laços estratégicos em todo o planeta, para que se deixem intimidar
pelo massivo Império de Bases da águia, ou por sua precária “coalizão de
vontades”, muitas das quais, relutantes.
O
dragão, por seu lado, sabe que a Ásia não precisa dos Hellfires da águia, embora, claro, com
certeza, receberia com prazer alguns dos produtos da águia, sólidos, de boa
tecnologia. O problema é que a águia está com poucos produtos a oferecer.
Se
o que se vê é o melhor que a ex-poderosa águia tem a oferecer – ou guerra contra
o Islã, ou esforços para intimidar no grito, ao mesmo tempo, o urso e o dragão –
não há dúvidas: eis o retrato de um império sem projeto. A Ásia não é tola:
nunca aceitará o desafio para uma Nova Guerra Fria que enfraquecerá, primeiro, a
própria Ásia.
E
mesmo agora, quando ainda se ouvem os ecos dos primeiros tiros de provocação
para uma Nova Guerra Fria, a águia já corre o risco de perder mais um cliente: o
Paquistão.
E
há a Pérsia. A águia persegue os persas desde o dia em que os persas livraram-se
do procônsul da águia, o Xá, em 1979 (e, isso, depois de a águia e a pérfida
Albion já terem esmagado a democracia persa, para lá impor o Xá – comparado ao
qual, Saddam é um Gandhi – em 1953). A águia quer de volta todo o petróleo e o
gás natural que o Xá lhe fornecia. Dizem o urso e o dragão: não dessa vez, cara
águia de cabeça pelada.
Assim
chegamos ao fim da fábula – mas não da disputa. Como todos deveriam ter
previsto, não há moral nessa fábula. Todas as almas e mentes sensíveis devem
desejar, isso sim, por mais que continuemos condenados a padecer sob o aguilhão
do acaso, que essa Nova Guerra Fria nunca, nunca,
esquente.
Notas
dos tradutores
[1]
Bíblia,
Mateus 15:14.
[3] Orig. “Some like it hot” -
Filme de 1959, dir. Billy Wilder. “Quanto mais quente
melhor”, em português.
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