9/12/2011, *M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo
Coletivo da Vila
Vudu
A partir de uma observação
aparentemente imotivada na 2ª-feira, os EUA elevaram as eleições parlamentares
russas de 5/12 passado ao status de questão central das relações EUA-Rússia. A
dramática escalada retórica põe abaixo as sempre repetidas sugestões do governo
de Barack Obama, de um “reset” nas relações.
Num movimento discreto, Pequim cuidou
de manifestar sua compreensão a Moscou. As intersecções desses movimentos terão
impacto em vários aspectos da situação regional e internacional no próximo
governo.
Para recapitular: quando a secretária
de Estado dos EUA Hillary Clinton comentou o resultado das eleições
parlamentares russas, ainda durante a Conferência Bonn II na Alemanha, na
2ª-feira, visava diretamente ao Kremlin; disse que estava “preocupada” com
aquelas eleições e que o “povo russo, como todos os povos, merece ter a voz
ouvida e os votos contados”.
Clinton falou antes, até, de serem
divulgados os resultados oficiais. Em vastas porções da Rússia os resultados só
chegaram na 4ª-feira. As urnas mostraram que o partido governante, Rússia Unida
[ing. United Rússia (UR)]
sofrera duro revés, tendo perdido 77 assentos, nos 450 do Parlamento; ficou
limitado a uma maioria simples de 238 votos.
Mas Clinton falou como se o Kremlin
tivesse orquestrado uma vitória ao estilo dos soviéticos, de 98% dos votos –,
quando a mídia ocidental interpretava o resultado na direção exatamente oposta,
como grande “derrota” do primeiro-ministro Vladimir Putin (já candidato à
presidência nas eleições de 4 de março). Para Clinton, o Kremlin teria calado a
voz do povo, para perpetuar-se no poder.
Estranhamente, Clinton não só nada
fez para fazer esquecer aqueles comentários como, até, repetiu-os no dia
seguinte, em mais uma fustigada contra os líderes russos, bem ali à porta de
entrada da Rússia – em Vilnius, Lituânia –, na presença de toda a comunidade dos
estados pós-soviéticos e da Velha e Nova Europa. Clinton ter escolhido como sua
plateia a Organização da Segurança e Cooperação da Europa [ing. Organization of Security and Cooperation
in Europe (OSCE)] foi movimento muito claramente simbólico, porque esse
corpo regional é herdeiro dos famosos Acordos de Helsinki de1975, legado da
Guerra Fria.
O que teria provocado o ataque dos
EUA? Explicação simples poderia ser que Clinton aproveitou a chance para jogar
lama contra Putin, para tornar sua eleição à presidência da Rússia, dia 4 de
março, o mais difícil e controversa possível.
Uma primavera em pleno
inverno
Verdade
é que há várias indicações, nas últimas semanas, de que Washington está
incomodada com a alta probabilidade de Putin voltar à presidência da Rússia, no
atual período formativo da política mundial. Putin significa uma Rússia
assertiva – Rússia que negocia com firmeza para influenciar eventos mundiais,
Rússia que cimentará a cooperação com a China, Rússia que fatalmente se oporá ao
projeto, crucial para os EUA, de um novo Oriente Médio sob renovada hegemonia
dos EUA, em novas condições de “democracia”.
O Ministro das
Relações Exteriores da Rússia ridicularizou, sem lhe dar destaque, o comentário
de Clinton. Até que, afinal, se ouviu a reação de Moscou, quando Putin falou, na
4ª-feira, depois de dar tempo para que a secretária de Estado dos EUA dissesse
tudo que lhe ocorresse dizer. Putin bombardeou Clinton. Disse ele:
Observei a primeira
reação de nossos colegas dos EUA. A secretária de Estado pôs-se imediatamente a
avaliar as eleições. Disse que foram injustas e manipuladas, antes até de
receber informações dos observadores de instituições democráticas e de direitos
humanos que acompanharam as eleições em nosso país. A secretária falou
diretamente a alguns personagens que já estão na Rússia. Enviou-lhes um sinal. E
eles, lá, com o apoio do Departamento de Estado dos EUA, puseram-se a trabalhar
ativamente. [1]
E não parou aí.
Putin disse também que “centenas de milhões” em dinheiro estrangeiro foi usado
para influenciar o resultado das eleições na Rússia. E que, nessas
circunstâncias, a Rússia tem de proteger sua soberania:
Quanto se vê dinheiro de fora usado
para promover atividades políticas noutro país... Todos nós temos um problema.
Esse tipo de ação agride todos nós. Consideramos bem-vindos todos os
observadores estrangeiros que desejem acompanhar o processo eleitoral na Rússia.
Mas se começam a tentar influenciar o resultado, aparelhando organizações dentro
da Rússia, que se apresentam como organizações locais, mas recebem dinheiro de
fora... Não se pode aceitar. Teremos de encontrar meios para aprimorar nossas
leis, de modo a fazer com que estados estrangeiros que visem a influenciar nossa
política doméstica possam ser acusados e devidamente julgados pelos crimes que
pratiquem.
É resposta muito
forte. E há aí quatro pontos a observar:
(1) É uma rara acusação direta, pessoal,
contra a secretária de Estado (acusada de incitar a opinião pública russa,
interessada em desestabilizar o país);
(2) Putin circunscreveu o Departamento
de Estado, como célula específica, dentro do governo Barack Obama; e acusou-o de
operar segundo agenda específica;
(3) Putin sugeriu, muito claramente, que
os EUA não escaparam à vigilância da inteligência russa, que sabe de seus passos
no país; e
(4) afirmou bem claramente que haverá
mudanças.
Clinton não pode
reclamar de Putin tê-la atacado pessoalmente. A campanha que o Departamento de
Estado moveu contra Putin assumiu tom extremamente agressivo nos últimos dias,
excepcional, mesmo nas sempre tumultuadas relações EUA-Rússia. Há uma quinzena,
a Radio Liberty/Radio Free Europe (RFE/RL) exibiu matéria sobre a vida pessoal
de Putin, com o claro objetivo de detonar um tsunami anti-Putin nas redes
sociais na Rússia. Não há registro de a mídia oficial russa jamais ter descido a
tais abismos de mau gosto, nem no auge do escândalo que envolveu Bill Clinton e
Monica Lewinsky.
A melhor explicação
para os movimentos agressivos da secretária de Estado parece ser outra: os EUA
já sabem que a inteligência russa reuniu provas de que, sim, os EUA estão ativos
dentro do território russo e da política nacional. A matéria denuncista, baseada
em intrigas pessoais contra Putin, parece ter sido tentativa diversionista,
esforço para salvar a águia que se deixou prender, ela mesma, na arapuca que a
águia tentou armar para prender o urso.
A mesma intenção
transparece também nos esforços de Clinton para fazer, das eleições na Rússia,
questão crucial para o progresso da democracia no século 21. Desse ponto de
vista, o governo Obama fez papel patético. Só lhe restou a ridícula alternativa
de tentar encenar uma neo-Praça-Tahrir em Moscou.
Segundo números
do New York Times, na 5ª-feira
pela manhã, mais de 32 mil pessoas haviam clicado numa página de Facebook, garantindo que cercariam o
Kremlin. O jornal argumenta, matematicamente: “Metade deles lá compareceram,
para protagonizar o maior movimento de protesto político em Moscou, desde a
queda da União Soviética”.
O advento de uma
Primavera Árabe em Moscou, em pleno inverno russo, terá consequências facilmente
previsíveis. Pequim também observa esse curioso fenômeno atmosférico, nada
natural. O New York Times “informa” que Putin “luta para não perder o
pé, depois de seu partido, Rússia Unida, ter sofrido grave derrota nas eleições
do domingo”. Mas observadores sempre atentos, em Pequim, chegaram a conclusão
completamente diferente.
É Putin,
estúpido!
No mesmo momento em
que Clinton falava, em Bonn, na 2ª-feira, o porta-voz do Ministério das Relações
Exteriores da China, Hong Lei, chegava a conclusões diametralmente opostas.
Disse ele:
“Nós
[China] entendemos que as eleições terão efeitos positivos para a unidade da
sociedade russa, para a estabilidade nacional e para seu desenvolvimento
econômico”.[2] Disse que a China respeitava a
decisão do povo russo e que trabalharia com os russos para construir e fazer
avançar uma “ampla parceria coordenada” entre os dois países.
A China decidiu
tomar posição, sem subterfúgios, já no início da 2ª-feira, apesar de Pequim já
saber do revés eleitoral que o partido Rússia Unida sofrera nas urnas. A rede de
notícias Xinhua publicou uma nota de cautela:
Embora tudo leve a
crer que vencerá as eleições parlamentares, a Rússia de Vladimir Putin
enfrentará inúmeros desafios, no caso de ter de conviver com maioria muito
reduzida. Alguns analistas falam do estado lamentável da economia russa, como
justificativa pela queda no apoio popular. Para muitos, o partido não teria
conseguido reduzir a corrupção e não cumpriu as promessas de melhorar a
eficiência do governo. Sobretudo na Internet, em salas de bate-papo e
fóruns online ouvem-se muitas críticas ao governo de
Putin.
Mas no dia seguinte a rede Xinhua publicou matéria
extensa, em que reage com firmeza aos ditos dos EUA e ao que Pequim descreve
como “caricatura forçada e conclusão errada, segundo a qual o partido governante
na Rússia liderado pelo primeiro-ministro Vladimir Putin, teria sido derrotado
nas eleições para a
Duma”[3].
Comentário nuançado, deixa claramente
sugerido que a questão que incomoda os EUA não é alguma “democracia” na Rússia,
mas o próprio Putin:
Para muitos, a visão de mundo de
Putin seria “antiocidental” (...) Muitos políticos norte-americanos não têm
qualquer interesse em ver, no comando do poder russo, um “sujeito durão” (...) a
Casa Branca não deu sinais de entusiasmo ante a ideia de ter de negociar, outra
vez, com o “espinhento” presidente Putin (...) As eleições na Rússia estão
alinhadas com os interesses dos russos e de modo algum incorporam quaisquer dos
interesses dos países ocidentais. A reação da Sra. Clinton é
compreensível.”
A rede Xinhua
observou que as políticas da Rússia nem sempre consideraram os interesses locais
e que, várias vezes, Moscou optou por ações alinhadas “à prática ocidental”; mas
mesmo nesses momentos, a ação dos russos só muito raramente manteve “adequação
perfeita” às agendas ocidentais. Assim sendo, as pressões ocidentais sobre a
Rússia sempre continuam. O comentário está atribuído a Li Hongmei, colunista do
jornal People's Daily.
Muito obviamente, a China não perde
de vista o grande quadro da dinâmica do poder na cena mundial. Pequim jamais
ocultou que tem Putin em alta estima, considerado defensor consistente dos
imperativos que regem os laços estratégicos sino-russos. Mas o atual momento de
acrimônia nas relações entre EUA e Rússia acontece em momento também crucial
para a China.
Em inúmeras frentes, é hoje vital
para a política regional chinesa manter coordenação coesa com a Rússia. Ao longo
do mês de novembro, altos funcionários das relações exteriores da China
estiveram nada menos que quatro vezes em Moscou para consultas.
A coordenação entre russos e chineses
é sempre de alto nível. O veto “conjunto” no Conselho de Segurança da ONU, na
Resolução sobre a Síria, é evento sem paralelos. E os dois países continuam a
bloquear uma Resolução adotada na Comissão de Direitos Humanos da ONU, que
transfere a Comissão, de Genebra, para o Conselho de Segurança em New York.
Pequim ajudou Moscou a conseguir que os BRICS adotassem, como posição comum, a
posição russa sobre a Síria.
Sobre o Irã, também, os dois países
têm conseguido conter os movimentos dos EUA para impor sanções adicionais. (O
enviado russo à ONU Vitaly Churkin sugeriu recentemente que é hora de o Conselho
de Segurança da ONU suspender até as sanções hoje vigentes.) Na questão
Ásia-Pacífico, a Rússia mantém-se ao lado da China, conforme a declaração
conjunta dos dois países, adotada em setembro do ano passado.
Rússia e China opõem-se, ambas, ao
estabelecimento de bases militares dos EUA-OTAN no Afeganistão. Os dois países
têm interesse em garantir a autonomia estratégica do Paquistão. Trabalharam
juntos na recente Conferência de Istambul (2/11), para bloquear os progressos do
projeto “Nova Rota da Seda”, menina dos olhos de Clinton. A água alcançará o
ponto máximo, provavelmente, quando o enviado da Rússia à OTAN, Dmitry Rogozin,
viajar a Pequim (e a Teerã) para discutir o programa de mísseis antibalísticos
de defesa (ABM), que pressiona significativamente as relações
EUA-Rússia.
Pequim acompanha, atenta e
silenciosamente, uma sombra EUA-Rússia que dança sobre o programa ABM; e as consultas que Rogozin
conduzirá serão feitas a partir dos sinais silenciosos de que Pequim quer
conversar. Rússia e China têm interesses específicos nessa questão dos mísseis
antibalísticos, mas qualquer grau de coordenação, por inicial e tateante que
seja, ainda assim delineará novo paradigma na segurança
internacional.
Sobretudo, Pequim conta com que
Putin, de algum modo, contribuirá para levar a bom termo, o mais rapidamente
possível, as negociações, ainda inconclusas, num negócio de gás, de um trilhão
de dólares. Com o estabelecimento de uma base militar dos EUA na Austrália; com
a presença dos norte-americanos reforçada em Cingapura; e com os EUA trabalhando
para conquistar países asiáticos, para que se realinhem e revitalizem a velha
liderança americana, as preocupações dos chineses com a própria segurança
energética estão-se tornado agudas.
Em resumo, a
trajetória da atual acrimônia entre EUA e Rússia; e o sucesso que Putin obteve,
na reação forte contra a furiosa campanha que os EUA moveram contra sua eleição
na Rússia, são temas da mais alta importância para os chineses.
Se a águia for
realmente apanhada na arapuca que imaginou que estivesse preparando para o
urso... o dragão verá aí motivo para muito júbilo.
Notas dos
tradutores
[1] No New York Times, 9/12/2011, em: “Putin
Contends Clinton
Incited Unrest Over Vote” (em
inglês).
[2] 5/12/2011, Xinhuanet,
Pequim, em: “China
to further ties with Russia after its parliament election:
spokesman” (em
inglês).
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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