quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Padre Daniel, de Pernambuco para o mundo



Publicado em 15/12/2011 por Urariano Motta

Recife (PE) - Não pensem que exagero no meu provincianismo do Recife. Mas existe qualquer coisa em Pernambuco que faz do seu território um chão fértil para bons e ótimos poetas. Nem quero aqui chover no molhado e lembrar João Cabral, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena, todos amados pelo mundo culto do Brasil. Não. Me refiro a outros grandes que o mundo inteiro desconhece, que até nisso Pernambuco é um exagero: ótimos poetas não são ignorados somente no estado, são de Pernambuco calando para o mundo.

Quem me desacompanha até hoje tem visto o que escrevi sobre um poeta fundamental da língua, Alberto da Cunha Melo, que os leitores de muitos estados e jornalistas nas redações do sudeste perguntam: “quem? quem?”. Aqui e ali, na medida de minha força e tempo, lembro Geraldino Brasil, quem?, Miró, Valmir Jordão, quem?, Valter Fernandes, quem? Isso para não lembrar a dívida que tenho com os poetas Everardo Norões, Marcus Accioly... Pois hoje lembro ligeiro – e com um sentimento de desconforto por antes dele não ter falado – o poeta e homem de espírito e graça de nome Daniel Lima. 

No Recife, os afortunados conhecem-no por Padre Daniel, professor da UFPE, antiacadêmico por natureza. E dele falam aventuras dignas de Cervantes e de Camões, o Camões popular, cantado em rimas de cordel. Vou resumir duas ou três, no limite estreito deste espaço.

Uma vez, padre Daniel recebeu o original de um romance de professor da universidade para ler. O diabo é que o livro era ruim demais e além da conta. O que fazer, como falar a verdade ao colega sem ferir a gentileza? Eis o que Daniel lhe disse:

- Ilustre amigo, o teu romance é inferior a teu talento.

E ganhou, ainda assim, um secreto inimigo. Em outra, na época da ditadura, um militante socialista o visitava na residência, e foram conversando em voz baixa até o quintal. De repente, padre Daniel observa ao visitante:

- Está vendo o vizinho aí no muro? Ele sempre está me espionando.

Ato contínuo, disparou na carreira contra uma bananeira no terreno, e lá nela deu-lhe uma peitada com os braços abertos. Caiu sentado. Surpreso, o jovem correu para ele. E Daniel, baixinho:

- Não foi nada. O vizinho desconfia que sou doido. Agora tem a certeza.

Pois é este homem, de quem sempre se esperou generosidade, a quem uma vez fui vender uma assinatura do jornal Movimento, e ao me receber sedento de álcool e angústia num sábado, assinou o jornal e me fez sair bêbado do uísque guardado “para visitas especiais”. Pois é este homem que há muito escrevia poemas e guardava, por timidez ou medo, quem sabe, de não escrever ótima poesia, pois é este homem que agora recebe o prêmio máximo da Biblioteca Nacional, para o seu primeiro livro. Aos 95 anos. Como demora o reconhecimento para essa gente de Pernambuco. Se lesse essa frase, padre Daniel diria:

- Como demora o reconhecimento. E às vezes nem sai.

Ó Daniel, o que é que pode dizer um ingrato que há séculos não vai na tua casa? Na última, no último decênio do século XX, estranhei a cor da tua pele, quando te disse:

- Padre, não sei se é a minha memória. Mas eu o lembrava mais escuro.

Ao que ouvi:

- É não, amigo. A gente quando envelhece vai ficando mais branco.

Então entrei e ouvi a crítica amiga a um rascunho de romance que eu havia deixado. Lá para as tantas, com a verdade do álcool perguntei:

- Padre, como foi a sua luta para se manter na castidade?
- Foi difícil. Mas depois dos 80 está fácil.  

Pois é este homem, que no vigor dos seus 95 anos, com o sexo sob controle (já sei, Daniel, que dirias “sob controle, mas nem tanto”), pois é este padre rebelde que surpreende todo o Brasil com a poesia magnífica, fecunda, cheia da graça e da verdade do seu pensamento.

Como nesta expressão de beleza:

“Nada será jogado no vazio.
Nem mesmo o vazio da vida, 
porque é vida. 

Nem mesmo o gesto inútil, 
pois-que é gesto. 

Nem mesmo o que não chegou a realizar-se, 
pois-que é possível. 

Nem mesmo ainda o que jamais se realizará, 
porque é promessa. 

E o próprio impossível 
é vontade absurda de existir. 
E nisso existe”

Ou aqui, ao fim, por enquanto:

“Minha mãe era anoitecida.
Às vezes orvalho, às vezes estrela.
De repente, ria. De repente, chorava.
Falava sozinha enquanto trabalhava.
Resmungos, ou não sei se filosofia.
Descascava batatas, partia cebolas e sonhava
‘Para não perder tempo’, dizia. 

Com que seria que minha mãe sonhava?”

A poesia e todos nós estamos em festa.


Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação

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